Da
obra de João Paulo Borges Coelho, O INÍCIO DA LUTA ARMADA EM TETE, 1968-1969,
transcrevo:
Os
grandes objectivos da Frente de Tete
O
antigo Distrito de Tete desde o início da luta que foi, potencialmente, uma
frente. De facto, tal como em relação a Cabo Delgado e Niassa, também Tete
tinha uma rectaguarda de moçambicanos no Malawi que cedo se ligaram a FRELIMO
para preparar, a partir de 1964, formas de luta armada na região. Todavia, a
incipiente organização militar, o fraco trabalho com as populações no
interior, a posição Governo do Malawi, intransigente na proibição da circulação
de armamento através do seu território, constituiram factores de fracasso da
Frente em 1965, logo após a sua abertura.
Seguiram-se
então três anos em que a situação parecia aparentemente paralisada,
caracterizada pelas dificuldades de actuação do DOI e em que o COREMO [Comité
Revolucionário de Moçambique] figura mais na documentação portuguesa devido a
realização de acções espectaculares. Três anos durante os quais a FRELIMO, o
seu DOI e o seu exército, procuravam crescer. Nesse mesmo período o seu
aparelho manteve-se no Malawi e, em certa medida, até cresceu, dentro dos
limites que o Governo malawiano lhe permitiu. De facto, essa presença era
importante e não poderia ser substituída por uma presença massiva na Zâmbia,
por exemplo, pois garantia uma rectaguarda da Frente do Niassa, sobretudo do
Niassa Austral, uma possibilidade de actuação na Zambézia e uma ameaça
constante à região da Mutarara, fundamental porque abria as portas para o
centro de Manica e Sofala e porque por ela passava a linha férrea
Beira-Moatize, que iria ganhar uma significação particular.
Em
paralelo, a FRELIMO procurava intensamente estabelecer-se na Zâmbia. É natural
que no inicio de 1966 tivesse prevalecido a ideia de descer pelo Niassa Austral
através da região de Mecanhelas, para fazer uma grande base central na
Zambézia, de onde a guerrilha irradiaria para Sul, para Manica e Sofala, e para
Tete, no Oeste, evitando-se assim os obstáculos postos pelo Malawi e
atribuindo-se, portanto, a Mutarara, via de penetração para Tete, mais uma
razão de importância. Porem, as dificuldades de penetração por Mecanhelas e os
desaires ai ocorridos no princípio do ano, inviabilizando esta estratégia,
terão reforçado a importância atribuída à Zâmbia como via de penetração e
rectaguarda da luta na Frente de Tete.
Criadas
as condições de penetração, com um aparelho de actuação reactivado no interior,
com um exército reestruturado, a FRELIMO poderia rapidamente iniciar a luta em
Tete. Esse passo afigurava-se fundamental no quadro da estratégia global da
luta de libertação. De facto, a abertura de mais uma frente iria aligeirar a
pressão feita pelas forças coloniais sobre as restantes, iria permitir que a
FRELIMO chegasse fisicamente junto de mais um grande numero de moçambicanos e,
na frente diplomática, daria uma ideia bem concreta do avanço da luta de
libertação. Depois, uma sólida implantação em Tete permitiria à FRELIMO o
prosseguimento dos seus dois grandes objectivos estratégicos na região:
ameaçar a construção da barragem de Cabora Bassa e abrir uma via de passagem
que permitisse a travessia do rio Zambeze para atingir o Distrito de Manica e
Sofala, no centro do país.
Eduardo
Mondlane, nos inícios de 1968, explicava ao jornal norte-americano "The
Sun" o significado estratégico do projecto de Cabora Bassa1,
que implicava a construção da barragem e a criação de uma extensa zona
irrigada. Esta permitiria a instalação de um milhão de colonos portugueses,
segundo o projecto, que além do desenvolvimento acelerado que operariam na
região, que estava dentro das perspectivas coloniais, constituiriam uma
importante barreira à penetração da guerrilha. Mais importante ainda era a
internacionalização do conflito que a própria construção da barragem
implicaria. Esta, com efeito, para ser rentável, produziria energia também, e
sobretudo, para a Republica da África do Sul, que teria igualmente um papel
importante no financiamento do projecto. Uma vez construída a barragem era, por
tanto, praticamente certa a presença posterior do exército sul-africano na sua
defesa. A FRELIMO procuraria, por isso, impedir ou atrasar o mais possível a
construção do empreendimento, quer sabotando a via férrea Beira-Moatize, por
onde passaria o grosso do equipamento para o projecto, quer aproximando-se o
mais possível do local de construção, visando ameaçá-lo militarmente.
Por
outro lado, se o vale do rio Chire, atravessando a Mutarara, constituía a via
mais curta e mais favorável, do ponto de vista geográfico, para se atingir o
rio Zambeze, o que é certo é que o estrangulamento da zona, que poderia ser
bem defendida, e, sobretudo, os obstáculos criados pelo Malawi, tornavam
impossível o estabelecimento de um corredor seguro que conduzisse a Manica e
Sofala. Era necessária, portanto, através da generalização da luta armada no
território de Tete, a criação de vias de penetração alternativas que
permitissem chegar e atra- vessar o rio Zambeze.
Se
tais objectivos se foram tornando claros nos anos de 1966 e 1967, eles teriam
também que ter em conta as forças que serviriam de base ao seu prosseguimento.
Seguramente que uma parte importante dessas forças se encontrava estabelecida
e organizada no Malawi e na Zâmbia.(pág.s 48 e seguintes)
A
propósito desta matéria igualmente transcrevo a anotação 1 que nos leva a
concluir que até a “recente” descoberta de um jazigo enorme de ferro em Tete já
era conhecido pelos portugueses nos anos 50. Pena que a concretização destes
projectos, por Portugal ou por Moçambique independente, se tenham atrasado mais
de meio século. Assim transcrevo:
1AHM,
FT-Macanga, cx 1032 SCCI, Resenha de Informações, n° 2/68, de
Fevereiro de 1968. Não é possível, a partir deste documento, determinar a
origem do jornal citado, mas é provável que se trate do "Sun" de
Baltimore.
A
seguinte passagem de um outro documento, embora não refira a vertente de segurança,
dá uma ideia global dos objectivos do projecto: "Potencialmente o esquema
de povoamento e utilização da terra mais importante, que vem sendo estudado
desde o princípio da década de 50 é o projecto integrado para o
desenvolvimento do vale do rio Zambeze, baseado no controlo e utilização do
rio. O projecto encara a construção de uma grande barragem em Cahora Bassa, a
norte de Tete, e uma série de barragens me nores pelo rio abaixo, que
permitiriam o desenvolvimento do povoamento e outros objectivos numa área de
140.000 quilómetros quadrados, ou seja, um décimo do território.
Simultaneamente, a energia hidroeléctrica produzida em Canora Bassa seria usada
para desenvolver as reservas de ferro e carvão do Distrito de Tete, e a
construção das barragens tornaria possível a navegação pelo rio entre Tete e
Chinde, na foz do Zambeze, onde se pretenderia construir um novo porto".
Organização das Nações Unidas, XXII Sessão da Assembleia Geral, Relatório do
Comité Especial Sobre a Situação Respeitante à Implementação da Declaração
Sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Colonizados, 11 de
Outubro de 1967, Nova Iorque, p.107.
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