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10 setembro 2012

AS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E ESTADO EM MOÇAMBIQUE


AS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E ESTADO EM MOÇAMBIQUE

Ambiguidades e contradições

Eric Morier-Genoud levanta dúvidas quanto à natureza totalitária do projecto político da Frelimo, posto em prática pelo governo por ela dirigido durante a 1ª República. Morier-Genoud é omisso quanto ao teor desse projecto, deixando no ar a ideia de que se trataria de algo subjectivo, situado entre o “não todo bonito” e o “não todo feio”.
Define-se como sistema totalitário aquele em que um governo exerce controlo absoluto e centralizado sobre todos os aspectos da vida social, política e económica, em que o cidadão está totalmente subordinado à autoridade absoluta do Estado. São sistemas de partido único, em que é proibida a expressão política e cultural contrárias. Não existe nesses sistemas a separação dos poderes executivo, judicial e legislativo.
O projecto da Frelimo não responsabilizava o executivo perante o legislativo, mas perante o partido. Tanto assim é que a Constituição da República Popular de Moçambique foi elaborada pela Frelimo e aprovada pelo seu Comité Central para vigorar como Lei Fundamental do país. A Constituição continha todos os traços comuns aos sistemas totalitários. A nível do poder legislativo, lê-se no Art. 37 da Constituição que a Assembleia Popular, descrita como “o mais alto órgão legislativo da República Popular de Moçambique”, era exclusivamente constituída por membros da Frelimo ou de pessoas escolhidas por esta formação politica.
Na 1ª República, o regime sobrepunha-se à lei, desautorizando os tribunais e impedindo as instituições jurídicas de fiscalizar as acções do governo e de salvaguardar os direitos dos cidadãos. Banidos os partidos políticos da oposição e desmantelado o poder tradicional, o regime aboliu depois as associações recreativas, culturais, desportivas e outras. Os clubes passaram a funcionar sob a alçada dos diversos ministérios. As organizações socioprofissionais estavam submetidas ao partido através de organizações na essência idênticas às corporações que o Estado Novo havia copiado da legislação que vigorou na Itália de 1922 a 1945, como a OTM, a ONJ, a ONP, a OJM, a OMM, ou ainda a Continuadores da Revolução.
O que vem estipulado no citado artigo da Constituição demonstra que a fusão Frelimo-Estado ocorreu com o nascimento da República Popular de Moçambique e não depois do 3° Congresso, como defende Morier-Genoud. O 3° Congresso apenas veio confirmar toda uma prática que decorria desde a proclamação da independência e que começara a ser ensaiada durante o governo de transição. O Art. 3 da Constituição não deixava dúvidas quanto a esse facto: “A República Popular de Moçambique é orientada pela linha política definida pela Frelimo, que é a força dirigente do Estado e da Sociedade”.
Se, como estipula o Art. 19 da Constituição, “na República Popular de Moçambique as actividades das instituições religiosas devem conformar-se com as leis do Estado”, e tomando em linha de conta o facto de a Frelimo ser a força dirigente desse Estado, disso se pode inferir que, no cumprimento das orientações do Comissariado Político da Frelimo contidas na «Circular» de Outubro de 1975, o Estado moçambicano desse andamento ao “combate organizado contra os estandartes do imperialismo”, não havendo razão plausível para aguardar pelo 3° Congresso, nem por uma suposta purificação, quer a nível da cúpula, quer a nível das fileiras do partido.
Fazendo tábua rasa da «Circular», Morier-Genoud não insere o confisco dos bens das igrejas no “combate organizado”, quando estava cristalinamente claro que o objectivo era o de privar as igrejas de meios, impedindo-as assim de desenvolver a sua acção junto das comunidades dado que estas estavam destinadas a ser arregimentadas. E Morier-Genoud diz peremptoriamente que “quer se queira, quer não, a Frelimo só desencadeou uma luta aberta e total contra as igrejas a partir de 1978”. Ambíguo, afirma que não se tratou de um ‘combate total’, mas de uma combate ‘‘muito específico e limitado’. Ou há combate, ou não há. Se é “específico” e “limitado”, não deixa ser combate.
Mas se hoje Morier-Genoud defende que o combate ‘‘muito específico e limitado” visou estabelecer um equilíbrio entre as várias confissões religiosas, dada a supremacia da Igreja Católica, em 1996 ele defendia uma posição diferente. Num estudo que remonta a 31 de Março desse ano, e assinado conjuntamente com Yussuf Adam , Morier-Genoud dizia que “o Estado socialista tentou submeter as instituições religiosas ao seu poder. “E acrescenta: “Aqueles que não queriam nem um pouco se submeter ao Estado foram deportados com é o caso agora famoso das Testemunhas de Jeová.” Portanto, segundo este estudo, não houve intenção de se conseguir um equilíbrio entre as várias confissões religiosas, mas sim a vontade expressa de submetê-las à vontade do Estado.
Num outro estudo , Morier-Genoud reitera que houve, de facto, um combate contra as igrejas imediatamente a seguir à independência, não para estabelecer um equilíbrio entre as confissões religiosas, mas para aumentar o poder do Estado. Segundo ele, “entre 1974 e 1977, a política da Frelimo teve como objectivo principal a diminuição do poder das igrejas, e o estabelecimento e aumento do poder do Estado. Para esse fim, a Frelimo atacou as instituições religiosas na sua dimensão material e de poder, isto é, como organizações”.
E se hoje Morier-Genoud justifica o sucedido aos membros das Testemunhas de Jeová devido à sua alegada utilização pelas Forças Armadas Portuguesas como tampão na Zambézia para impedir a entrada de guerrilheiros da Frelimo, vindos do Malawi, do estudo de Março de 1996 está subjacente uma razão diferente: a recusa dessa confissão religiosa em submeter-se ao Estado. A versão agora apresentada por Morier-Genoud constitui um novo dado. Ele não indica, porém, as fontes consultadas que permitiriam um cruzamento com aquilo que já é conhecido, isto é, as dificuldades deparadas pela guerrilha na Frente da Zambézia tiveram como causa o facto do regime de Kamuzu Banda não ter permitido que o território malawiano fosse utilizado para incursões militares em Moçambique. Essas fontes poderiam porventura explicar o que terá efectivamente justificado, também em Outubro de 1975, a prisão de Testemunhas de Jeová em Gaza e Maputo, províncias não afectadas pela guerra colonial, ambas distantes da fronteira com o Malawi.
A alegação de que outras confissões religiosas estavam comprometidas com a “PIDE e o imperialismo” merece ser esclarecida para se determinar se a fonte é a «Circular» do Comissariado Político da Frelimo, se foram consultadas fontes independentes, se aos presumíveis culpados foi concedida a oportunidade de se defenderem daquilo que eram acusados, e quem, entre as largas dezenas de missionários presos e expulsos do país na fase do “combate específico e limitado”, trabalhava na realidade para a PIDE ou estava ao serviço do imperialismo.

1975

Aqui não se argumentou, como deduz Morier-Genoud, que “a igreja católica não tinha posição dominante antes da independência”, nem tão pouco se “recus(ou) que havia competição entre instituições religiosas antes de 1975”.  O que aqui se pretendeu salientar, foi que em 1975 o regime colonial, apontado como favorecendo a Igreja Católica em detrimento das demais confissões religiosas, e de perseguição de outras confissões que se lhe opunham, tinha deixado de existir como consequência do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974. Moçambique passara a ser um Estado independente. A Concordata de 1940 e o Acordo Missionário a ela anexo não vinculavam o Estado moçambicano à Santa Sé.
Em Moçambique, desde os meados da década de 60, a própria Igreja Católica havia iniciado uma nova era de relações com as comunidades islâmicas. Como refere Mário Artur Machaqueiro,  “os novos ventos ecuménicos do Concílio Vaticano II levaram a que certas figuras da Igreja Católica em Portugal encetassem uma aproximação às comunidades muçulmanas, renunciando tacticamente a uma evangelização mais agressiva”. O Concílio Vaticano II havia aprovado em Dezembro de 1965 a declaração “Nostra Aetate” (No Nosso Tempo), a qual fazia uma análise da atitude da Igreja Católica para com as religiões não-cristãs, sintetizada no pedido joanino: “Buscai primeiramente aquilo que une, antes de buscar o que divide”. Em Moçambique, salienta Machaqueiro, essa reorientação foi protagonizada, em Setembro de 1966, pelo Bispo de Vila Cabral (Lichinga), D. Eurico Dias Nogueira, através da publicação da “Carta Fraterna aos Muçulmanos”. Num estudo sobre a “problemática neo-islâmica” no Niassa , publicado no ano seguinte, Frederico Peirone, da Consolata, insistia “sobre o dever que terá qualquer missionário de respeitar as leis particulares que regem a comunidade muçulmana...” A partir de então, a Igreja Católica moçambicana fez questão de convidar dignitários islâmicos a participar nas Procissões das Velas realizadas anualmente nas várias dioceses.
Segundo Fernando Amaro Monteiro, a “Carta Fraterna aos Muçulmanos” incentivou o governo a actuar também, e serviu de catalisador em relação ao processo que a seguir se desenrolou.  Ainda de acordo com Fernando Amaro Monteiro , houve um esforço do regime colonial a partir de 1966 de se conseguir uma melhoria nas relações com as comunidades muçulmanas do norte de Moçambique, se bem com o objectivo de retirar à Frelimo uma potencial base de apoio. Esse esforço, segundo o autor, sofreu um impulso com a nomeação de Baltazar Rebelo de Sousa como governador-geral da colónia em 1968. Em 1971, em plena «Primavera Marcelista», o regime vigente aprovava a Lei da Liberdade Religiosa, que pressupunha tratamento igual para todas as confissões religiosas.
Tudo isto, para ilustrar que o ambiente prevalecente em Moçambique à data da independência não justificava as medidas tomadas pelo regime da Frelimo. Tivesse sido intenção do regime estabelecer  relações de igualdade entre as várias confissões, como umas vezes defende Morier-Genoud, não faz sentido que se tivesse reprimido as confissões no seu todo, incluindo as que Morier-Genoud aponta como tendo sido alvo de discriminações e da hostilidade da Igreja Católica durante a época colonial.
Argumenta Morier-Genoud ser ‘parcial’ o exemplo de abertura à comunidade islâmica, pois em simultâneo prendiam-se e assassinavam-se líderes muçulmanos, ignorando ele que perseguidos e reprimidos eram todos os que se opunham ao então regime, incluindo católicos. Os objectores de consciência não pertenciam apenas às Testemunhas de Jeová e tal como elas também pagaram um preço. Os católicos assumiram uma posição contra a guerra colonial. Tornou-se emblemático o caso da Capela do Rato. Foram padres católicos que do púlpito da Igreja do Macúti na Beira denunciaram o massacre de Mucumbura. Esses e outros prelados católicos foram expulsos da colónia, como D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula, tal como os que denunciaram o massacre de Wiriamu. Em várias ocasiões, o jornal da Diocese da Beira, Diário de Moçambique, foi encerrado por decisão do regime colonial para levá-lo à falência, tendo saído muitas vezes à rua com páginas em branco devido a cortes da «Comissão de Censura».
A par de um alegado equilíbrio entre as várias confissões religiosas, o confisco de estabelecimentos de ensino visava ainda, segundo Morier-Genoud, salvaguardar a independência de Moçambique. Quando vista à luz da situação que decorre desde o início da 2ª República, em que o governo iniciou o processo de devolução dos bens confiscados, e a Igreja Católica tem vindo desde então a edificar escolas de ensino primário e secundário, além de universidades de norte a sul do país, e inclusivamente a gerir escolas do Estado, a tese de Morier-Genoud cai pelas bases.
Não houve “má interpretação” do chamado desenvolvimento positivo. Este tem necessariamente de ser analisado em função do “combate organizado” que o precedeu, quer seja na fase específica e limitada, quer seja na fase total. Não se pode dissociar os resultados desse combate de todo o cortejo de violações e atropelos à lei. Independentemente de como que se queira olhar o objectivo a atingir, ele não pode justificar os meios, especialmente quando estes negam direitos fundamentais universalmente reconhecidos.

Notas de Rodapé
1 Yussuf Adam e Eric Morier-Genoud: Religião e o Poder em Moçambique. URL: www.africa.upenn.edu/Newsletters/notmoc75.html
2  Eric Morier-Genoud: Of God and Caesar. The Relation between Christian Churches & the State in post-colonial Mozambique, 1974-81”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 3, 1996, Setembro de 1996.
3 Mário Artur Machaqueiro: Islão Ambivalente – A construção identitária dos muçulmanos sob o poder colonial português », Cadernos de Estudos Africanos, 22 , 2012.
4 Frederico Peirone: A Tribo Ajaua do Alto Niassa (Moçambique) e alguns aspectos da sua Problemática Neo-Islâmica, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa 1967.
5 Fernando Amaro Monteiro: Entrevista dada a António Pacheco in Além-Mar Visão Missionário, Janeiro de 2004, URL: http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEFZyZyFAAXovADxBp
6 Fernando Amaro Monteiro: (Moçambique: Memória Falada do Islão e da Guerra, Almedina 2011) (João Cabrita in Canal de Moçambique, 10/09/2012)



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