ENTREVISTA COM ÓSCAR CARDOSO EX- SUB-INSPECTOR DA PIDE (1965-1974)
Bruno Oliveira Santos (B. O.
S): Como é que viveu o
início do terrorismo em Angola?
Óscar Cardoso (O.C.) : Quando o terrorismo começa em Angola, eu
estava ao serviço da GNR. O terrorismo em Angola não era mais nem menos do que
a cobiça de quatro potências pela África
Portuguesa: a União Soviética, a China, os Estados Unidos da América e o
Vaticano. Os movimentos de libertação
eram apenas marionetas manobradas por terceiros. (...)
B.O.S: O que eram os Flechas?
O.C: Eu fui para Angola em 1966 e, como era normal, fiz um curto estágio em
todos os serviços da delegação - investigação, administrativos, etc. Depois
disso, o director São José Lopes mandou-me fazer um périplo por todas as
subdelegações do território. Isso permitiu-me ter um conhecimento profundo
sobre todos os problemas que havia em Angola. A dado momento, fui para o Luso.
Quem estava a chefiar a subdelegação era o inspector Fragoso Allas, um homem que traiu a PIDE no 25 de
Abril. O Fragoso Allas, que depois esteve na Guiné, dava-se muito bem com o Spínola. No 25
de Abril estava feito com ele. Mas não era o único! O inspector superior
Rogério Dias Coelho, antigo colega de Spínola no Colégio Militar, era outro que
tal. No 25 de Abril já estava indigitado por Spínola para ser o novo
director-geral!
O Fragoso Allas tinha organizado o chamado Corpo de Auxiliares, indivíduos
recrutados e pagos por nós e que eram utilizados como intérpretes, guias e até
mesmo como guardas prisionais. Ora, nessa altura eu conheci um velhote - o
Manuel Pontes Júnior - que me fala nas Terras do Fim do Mundo, cuja existência
eu já conhecia por ser referida em vários livros. Aliás, a designação de Terras
do Fim do Mundo é da responsabilidade do Henrique Galvão, que assim as
classifica no seu admirável livro Outras Terras, Outras Gentes.
B.O.S: Não estava à espera de o ouvir tecer grandes elogios à obra
literária do Henrique Galvão!...
O.C: Eu sei, mas olhe que esse livro é extraordinário! Aliás, as pessoas
estão mal informadas sobre o Galvão. Nos seus últimos anos de vida, ele arrependeu-se
de tudo, estava mesmo muito arrependido de todas aquelas conspirações. Sabe
quem é que pagou o funeral do Galvão? A PIDE. Mas eu estava a dizer que nesse
livro do Galvão há referências às chamadas Terras do Fim do Mundo. Nessas
terras habitavam os Bosquímanos. Eu comecei logo a idealizar o recrutamento
desses homens para o Corpo de Auxiliares, até um bocado influenciado pela tropa
de guardas de fronteira do KGB. Era conhecido o ódio que os Bosquímanos tinham
aos negros. Foram sempre escravizados pelos pretos, trocados e vendidos como se
fossem objectos ou cabeças de gado. Não era preciso gastar praticamente dinheiro
nenhum em alimentação - os Bosquímanos encontravam comida em qualquer sítio. Eram
rápidos, eram pequenos, conheciam bem o terreno.
Enviei um memorando ao São José Lopes a propor o recrutamento daqueles
homens e ele lá me deixou ir para o Cuando-Cubango organizar tudo aquilo. Levei
a minha mulher e um velho Land Rover. Foram os melhores tempos da minha vida!
Os Bosquímanos detestavam mesmo os pretos! Olhe que, ainda em 1969, eram
trocados e vendidos a abatidos pelos negros sem dó nem piedade. Bem, comecei
por recrutar três ou quatro. No início, utilizavam apenas arcos e flechas, sobretudo
flechas envenenadas, o que causava um grande Pânico entre os turras. É por isso que receberam a designação de
Flechas. Comecei a ter bons resultados com a incorporação daqueles Bosquímanos, tão bons
resultados que cheguei a ter mais de 400 flechas treinados, só no
Cuando-Cubango. Mais tarde, criaram-se flechas por toda a província de Angola e em Moçambique.
B.O.S: Eram só Bosquímanos?
O.C: Depois foram incorporados homens de outras minorias. Os Bosquímanos
eram uma minoria do Cuando-Cubango, que
era uma savana quase deserta. (...)
B.O.S: Foram recuperados vários guerrilheiros da FNLA, do MPLA e da UNITA?
O.C: Sim, sim. Muitos dos terroristas andavam lá contrariados - eram
obrigados a fazer aquela guerra para
evitar que as famílias sofressem represálias.
B.O.S: É verdade que Jonas Savimbi foi assistido por médicos do exército
português no princípio dos anos 70?
O.C: É. A UNITA tinha sido abandonada pela China e sabia que não tinha
quaisquer hipóteses de implantação em
Angola sem o nosso apoio. Como aspirava a integrar um futuro governo de Angola, os seus guerrilheiros aceitaram
colaborar com o exército português em diversas acções contra os outros
movimentos. Vários portugueses com interesses económicos na zona do Luso, sobretudo os madeireiros, pagavam à
UNITA para não serem molestados no transporte de mercadorias. Isto ajuda a
compreender as razões pelas quais Jonas Savimbi foi assistido pelo Serviço de Saúde
Militar, no Luso. O oficial encarregado das ligações com Savimbi era o major
Passos Ramos, da Zona Militar Leste. Foi ele quem tratou de tudo. Já não me
recordo da doença de que Savimbi padecia...Julgo que era uma apendicite, mas
não tenho a certeza.
B.O.S: A PIDE teve alguma participação no assassínio de Eduardo Mondlane?
O.C: A carta armadilhada que provocou a morte de Eduardo Mondlane foi
preparada pelo Casimiro Monteiro, que era de facto um grande especialista em
explosivos. Mas o Casimiro Monteiro não agiu sozinho, teve a colaboração do
chefe de segurança do Mondlane, o Joaquim Chissano, actual Presidente da
República de Moçambique. Portanto, esse trabalho foi feito com a própria
Frelimo, que estava muito interessada em eliminar o Mondlane.
Casimiro Monteiro, agente da PIDE que preparou a carta armadilha para Mondlane |
B.O.S: Teve acesso aos relatórios sobre Wiryamu?
O.C: Não conheço essa história. De resto, na província de Tete, que eu
conheci bem, não existia nenhuma terra chamada Wiryamu. Nem existia em
Moçambique nenhuma terra começada por W. Eu não gosto de falar sobre esses
assuntos, numa guerra há sempre massacres... O que lhe posso dizer é que nas
instruções das Forças Armadas, da PIDE e demais forças da ordem havia a
preocupação de evitar os massacres. As instruções eram muito claras: não
molestar a população, evitar todo e qualquer tipo de barbaridad, etc. Era exactamente
o contrário do que sucedia nos manuais dos terroristas, que aterrorizavam a população.
É evidente que há sempre excepções. Um soldado, cansado de fazer a guerra,
farto de ver os seus camaradas estropiados por minas, pode, às tantas, tomar
tudo por igual e cometer um erro qualquer...
B.O.S: Que relações mantinha a PIDE com o general Costa Gomes?
O.C: O Costa Gomes era muito amigo do meu inspector superior, Aníbal de São
José Lopes.
Era tão amigo que, a seguir à revolução, enquanto nós fomos todos presos, o
São José Lopes foi mandado para Timor. O Costa Gomes arranjou maneira de ele ir
para lá e escapar assim à detenção. Nem outra coisa era de esperar. O São José
Lopes conhecia muitos dos podres do Costa Gomes. É que o Costa Gomes prezava
muito o dinheiro e falava-se à boca pequena que gostava muito de umas
pedrinhas, de uns diamantes, de que o solo angolano é fértil...É muito provável
que o São José Lopes estivesse a par de umas negociatas quaisquer. De resto, as relações que mantivemos com o
Costa Gomes, quando ele era comandante-chefe em Angola, foram da maior
cordialidade. Não havia festa para a qual não fosse convidado: o Dia do Flecha,
o aniversário do São José Lopes, e por aí fora. Foi-lhe oferecido o crachat de
ouro da PIDE, que ele aceitou com todo o gosto. Pessoalmente, mantive sempre as
melhores relações com ele. Aliás, o Costa Gomes namorou a minha tia, irmã de minha
mãe, e tratou-me sempre com muito
respeito. Como vê, para além de ter sido meu professor, podia ter sido meu tio.
B.O.S: A PIDE delineou algum plano secreto para matar Amílcar Cabral?
O.C: Não. Assim como lhe disse abertamente que a PIDE colaborou na
eliminação de Eduardo Mondlane, também lhe garanto que nunca existiu nenhum
plano para matar Amílcar Cabral. Quem matou Cabral foram dissidentes do PAIGC,
a PIDE não teve nada a ver com aquilo. Essas histórias estão todas muito mal
contadas. E na altura do 25 de Abril havia já um acordo entre o Nino Vieira e o
nosso governo para aquele vir para Portugal, com a mulher e a filha, cuja
colocação na Universidade estava já assegurada. Ora, quem conta essa história
muito bem é o coronel Vaz Antunes, que estava então na Guiné, num opúsculo
chamado Uma Diligência Interrompida. Os guerrilheiros do PAIGC estavam
cansados, queriam acabar com a guerra e sobretudo não admitiam a sua
subordinação aos cabo-verdianos.
B.O.S: A PIDE era um bom serviço de inteligência?
O.C: Como sabe, todas as Forças Armadas têm serviço de inteligência. Em
África, a PIDE desempenhou essas
funções. O melhor serviço de informação que existia no país era o nosso. A GNR
tinha o seu serviço de informação. A PSP tinha também um serviço de informação,
mas o melhor de todos era o da PIDE. Prestámos
serviços importantíssimos às Forças Armadas. Salvámos muitas vidas. Alguns dos oficiais
que se notabilizaram no 25 de Abril foram salvos pela acção corajosa e abnegada
de funcionários da polícia. (...) Os
militares, por natureza, não gostam de informação. Aquilo para eles é uma
chatice. Mas a verdade é que o nosso serviço de inteligência funcionava muito
bem. É isso que explica que, já
depois do 25 de Abril e tendo em conta que as nossas tropas continuavam a
fazer a guerra, alguns quadros da PIDE foram libertados para integrar a Polícia
de Informação Militar (PIM), então criada.
Os militares revolucionários sabiam perfeitamente que, sem esse serviço de
informação, era impossível continuar a guerra. Há até um caso, naturalmente
pouco conhecido, mas que vale a pena contar: um dos quadros da PIDE chamado
para integrar a nova polícia foi o inspector José Vítor Carvalho. Em 1975, em
pleno PREC, foi promovido a inspector-adjunto!
B.O.S: Os serviços de informação da polícia dispunham de informadores nos
países vizinhos?
O.C: A verdadeira história das nossas relações com esses países ainda está
por fazer. Muito do que se tem dito não corresponde à verdade. O Malawi não nos
era hostil. Era-o o Zaire, teoricamente, mas na prática obtínhamos tudo quanto
queríamos desse país. De resto, dispúnhamos de vários informadores ao mais alto
nível. Na Zâmbia era mais difícil, mas também tínhamos informadores. O mesmo
acontecia no Congo-Brazzaville.
B.O.S: E na Rodésia?
O.C: Na Rodésia não precisávamos de informadores porque colaborávamos
directamente com o CIO (Central Intelligence Organisation). O mesmo se passava
em relação à Africa do Sul: havia uma colaboração estreita com as polícias e os
serviços de informação sul-africanos. Repare que todos os países situados entre
Angola e Moçambique não nos podiam ser hostis porque a sua sobrevivência
dependia dos abastecimentos que chegavam, exclusivamente, pelas linhas-férreas
da Beira e do Lobito.
(...)
B.O.S: Como é que reagiu à publicação de Portugal e o Futuro do general
Spínola? O.C: Muito mal. Ficámos todos com a sensação de que aquilo era o
princípio do fim. Aliás, não foi o Spínola quem escreveu o livro - foi o
coronel Pereira da Costa. O Spínola era um oficial de Cavalaria, era um
eguariço, como se costumava dizer. Tinha um vocabulário de duzentas palavras.
Não tinha capacidade para escrever nada. Talvez as ideias tenham sido
fornecidas pelo Spínola, mas quem redigiu o livro foi o outro.
B.O.S: E como militar?
O.C: Era bom militar.
B.O.S: Acha que sim?! Então não era só fachada? O Spínola era vaidoso como
um pavão, dispunha de vários sacos azuis
para pagar a sua própria propaganda. Olhe, é à custa disso que ainda hoje o
julgam um grande estratega militar...
O.C: Eu conheço essas histórias, mas pelo menos em Angola foi um bom
coronel. Era, sobretudo, um militar com prestígio, tinha carisma, era o homem
que aparecia lá em cima com pose autoritária, com as luvas e o pingalim... Sabe
que as Forças Armadas vivem também da fachada, dos tambores, das cornetas.
B.O.S: Os missionários causavam-lhe problemas?
O.C: Em África, existiam missionários católicos e missionários
protestantes. De um modo geral, aqueles que nos eram mais favoráveis eram os
católicos. Entre os missionários protestantes havia de tudo - uns eram agentes
da CIA, outros do MI6, alguns do próprio SDECE francês... Lembro-me de que na
missão de Catata, perto de Serpa Pinto, existia um missionário que era- soubemo-lo
através de intercepção de correspondência - um agente da CIA. Escrevia cartas para
os Estados Unidos descrevendo a situação, o ambiente da população, as
tendências da população, os ataques,
etc. Por tudo o que ele escrevia percebia-se que era hostil à presença portuguesa.
Eu fiz esse missionário mudar rapidamente de ideias com a ajuda de alguns flechas.
Vesti os flechas com fardas da UNITA e organizámos um ataque à missão:
provocámos uns distúrbios, partimos uns vidros. O certo é que o missionário
mudou logo de ideias em relação à presença dos portugueses em África. Lembro-me
também de que existia no Cuando-Cubango, numa terra chamada Chama Vera, uma
congregação de frades franceses, na qual seguimos a mesma estratégia. Eles até estavam
a fazer uma obra engraçada. Olhe, eram os únicos brancos que falavam correctamente
o dialecto dos Bosquímanos! Mas a verdade é que também apoiavam claramente os
terroristas: davam-lhes roupas, alimentação, etc. E, repare, numa altura em que
nós tínhamos já alguns conflitos com a Santa Sé, a simples expulsão desses missionários não
era a melhor solução. Era preciso fazê-los mudar de ideias. Organizámos também
um ataque, vestindo os flechas com as fardas dos terroristas, e os padres decidiram ir embora... Mas não se julgue que as
missões tinham apenas aspectos negativos. Lembro-me muito bem da madre
Cristina, da missão do Cuchi, uma missão linda, muito bem organizada. A madre Cristina
era brasileira e dirigia naquela missão várias freiras, que tinham a seu cargo
a educação de inúmeras meninas. Uma ou outra vez, os terroristas chegaram mesmo
a entrar na missão, tendo mesmo violado algumas meninas (...), podemos dizer que os
serviços de informação dos diversos países infiltravam agentes seus em diversas
missões. Os americanos, os ingleses, os franceses, todos faziam isso. E se calhar
o Vaticano também lá devia ter alguns! Aliás o Vaticano tem o serviço de
informações mais bem organizado do mundo inteiro!
B.O.S: Qual era a situação militar nas três frentes de guerra, em Abril de
1974?
O.C: Na Guiné, havia um cansaço geral das duas partes. Era a mais dura das
frentes de guerra. De qualquer modo, a situação não era desastrosa para os
portugueses, como alguns tentaram fazer crer. Havia graves divergências no seio
do PAIGC, onde a facção caboverdiana, mais intelectualizada, dominava os
guineenses, que não se conformavam com essa situação.
Ao contrário do que se diz, nem os terroristas dominavam a maior parte do
território, nem as nossas tropas abandonavam algumas zonas em favor do inimigo.
O que se passava é que a Guiné não tinha população em várias áreas do interior
e, a partir de determinada altura, entendeu-se retirar os militares que
ocupavam essas zonas desertas. Os historiadores de pacotilha que temos vêem
nessas retiradas a prova de que o nosso exército estava completamente batido.
Não é verdade! Em Moçambique, a situação estava controlada. Havia alguns problemas
com os Macondes, mas dominávamos o território.
Em Angola, a guerra estava ganha. A UNITA cooperava connosco, o MPLA estava
falido e não fazia guerrilha e a FNLA limitava-se a fazer algumas incursões
esporádicas no norte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário