Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.
O
candidato do Movimento Democrático de Moçambique (MDM) ao município de Maputo,
Venâncio Mondlane, disse hoje não reconhecer os resultados eleitorais na
capital moçambicana e apelou à recontagem dos votos.
Numa
nota publicada na sua conta no Facebook, Mondlane cita vários casos que, na sua
interpretação, resultaram "na inversão dos resultados a favor do
candidato" David Simango, da Frelimo, partido no poder.
"Onde
claramente o MDM teve duas vezes acima de média, dizem que os editais
desapareceram", acusa o candidato, em nota emitida pelo seu gabinete.
Nota do blog:Na cidade de
Maputo, o MDM fala de total de 70 delegados detidos no momento da contagem de
votos no dia 20 de Novembro. Lutero Simango disse que o partido submeteu ontem
a sua reclamação ao STAE da Cidade de Maputo aguardando que este órgão tome a
decisão. Não quis revelar o total dos delegados detidos, alegando que “isto é
matéria a ser apresentado na justiça”.
Alguns detidos só
foram restituídos a liberdade a partir do dia 23 de Novembro. É de realçar que
esta situação ocorreu um pouco por todo o país. Porquê a Polícia comporta-se
desta maneira? E quem os responsabiliza?
18 novembro 2013
FIR ATACA OS
SIMPATIZANTES DO MDM NO COMÍCIO DE ENCERRAMENTO DA CAMPANHA DO MDM NO BAIRRO DA
MUNHAVA (O MAIS POPULOSO DA CIDADE DA BEIRA)
VEJA ALGUMAS
FOTOS DO DIA 16 DE NOVEMBRO DE 2013
VALENTINA GUEBUZA “INAUGUROU” JACTO DE LUXO
De Maputo a Joanesburgo para assistir a um desfile de moda. O jacto executivo L 39 recentemente adquirido pelo Governo de Moçambique para emprego em viagens de altas entidades, foi usado no anterior fim-de-semana para levar Valentina Guebuza a Joanesburgo. O motivo da viagem foi assistir a um desfile de moda, no qual participou o estilista moçambicano, Taibo Ismael, segundo escreve, na sua edição 797, o África Monitor Intelligence.
Media fax– 18.11.2013
14 novembro 2013
EM BUSCA DA NOSSA IDENTIDADE! AFINAL QUEM SOMOS NÓS?
A
NECESSIDADE DE RESGATAR OS NOSSOS VALORES ÉTNICO-CULTURAIS PERDIDOS A MERCÊ DO
COLONIALISMO, E HOJE, DA MODERNIDADE E DA GLOBALIZAÇÃO
Moçambique é um país “politicamente”independente
(ex-colónia portuguesa) desde o ano de 1975. Antes de sua independência todos os
conteúdos no que concerne ao tipo ou modelo de educação eram absolutamente a
moda portuguesa, o incrível de tudo é que mesmo encontrando-se em solos
africanos, e neste caso concreto, em solos moçambicanos, a Geografia que se estudava
não era moçambicana (não era de Moçambique), isto é, moçambicanos e filhos de
colonialistas portugueses, todos eles eram obrigados a estudar a geografia
portuguesa, enquanto isso a moçambicana constituía uma excepção naquilo que
constituía o programa curricular colonial português.
Além disso, o povo moçambicano oprimido pelo regime
colonial português era obrigado a “civilizar-se”, isto é, tinha que deixar de
ser um homem “selvagem” e passar a comportar-se como um bom português. Para tal
efeito, o moçambicano tinha que se tornar homem em primeira instância, e o meio
para que este conseguisse se tornar homem passava necessariamente em ser
submetido a escravatura, ao trabalho forçado, a humilhação, e não só. Assim, o
moçambicano era obrigatoriamente envergado de cultura, valores, língua e das
conquistas feitas pela “heroicidade”
portuguesa.
Sendo Moçambique uma colónia cuja era directamente
administrada pela sua metrópole, todos os seus filhos-habitantes eram ensinados
a se envergonharem da sua cultura, das suas origem (etnias), da sua identidade,
do seu passado (da sua história), da sua cor, da sua diversidade linguística,
dos seus usos e costumes, da sua tradição, em geral de serem aquilo que eram,
de serem africanos e moçambicanos, de serem filhos de antepassados que cujos na
óptica do colonizador eram selvagens. Portanto ao moçambicano era ensinado a
deixar de considerar como válidos todos os seus valores étnico-culturais
passando assim a considerar como válidos os valores, princípios e regras de
convivência autenticamente portuguesas: é daqui onde surgem os “[2]pele
negra, máscara branca” os assimilados e, os não-assimilados. Os
não-assimilados eram também chamados indígenas. Portanto, no tempo colonial,
havia uma espécie de dois tipos de moçambicanos, por um lado havia os
assimilados cujos comportavam-se como portugueses, a esses era atribuído o
direito de poder circular na cidade, de frequentar jardins, teatros, hospitais,
escolas, praças e outros serviços públicos que o homem branco também
frequentava.
Por outro, existiam os não-assimilados ou simplesmente
indígenas que praticamente constituíam o inverso dos assimilados, isto é, esta
classe de moçambicanos não tinha àqueles direitos que os assimilados e
colonialistas dispunham, ou seja, aos indígenas era reservado nada, ou por
outras palavras, não lhes era reservado algum direitohumano senão a vida isolada e sofrida.
No sistema de ensino colonial português introduziu-se o
ensino rudimentar que tinha como objectivo principal tirar “o moçambicano de uma vida de selvajaria para
uma vida civilizada”isso passava primeiro em despersonalizar o moçambicano, desligando-o do seu
país e da sua origem, levando-o assim a negar, desprezar, a envergonhar-se do
seu povo e da sua classe, a perder a iniciativa criadora (não mobilizar
resistência contra a exploração colonial) e reconhecer como válidos os valores
do colonizador (cf. Cossa & Mataruca sa:152).
O colonialismo pretendia com isso separar alguns
africanos dos seus povos e incutir os valores e mentalidade ocidentais através
da política dos assimilados. Isso fez com que a partir de 1930, o governo
colonial português procedesse à modificação
do sistema educacional, assim passou a controlar directamente o ensino
destinado à população negra, com o objectivo de habilitar o indígena para
trabalhar na economia colonial.
Severino Ngoenha e José Castiano em sua obra “A Longa Marcha duma «Educação para Todos» em
Moçambique” apontam que os africanos eram formados naquelas profissões que
seriam úteis aos brancos e missionários no cultivo de terras e nas obras de
construção. Pois, uma vez nas escolas, estas pessoas podiam se revoltar contra
o sistema. A educação podia aumentar as expectativas de promoção social dos
negros, que podiam resultar em atitudes críticas contra as próprias
instituições coloniais. Assim,
“A escola devia, noutras palavras, ser uma instância de
administração e política colonial. (…) As crianças e as elites escolarizadas
eram endoutrinadas no sentido de reconhecerem a superioridade do branco, de, ao
mesmo tempo, implicitamente, desprezarem a sua cultura, ou no mínimo, de
reduzirem as suas culturas locais de origem a uma esfera privada, fora da vida
pública” (NGOENHA & CASTIANO, 2013:210).
Tal como sublinhei no primeiro parágrafo deste artigo, em
1975 Moçambique alcança a sua vitoriosa independência, fruto de um combate que
durou cerca de 6 (seis) séculos ou então cerca de 500 anos de colonização.
Durante esses cerca de seis séculos ou 500 anos houve uma co-existência da colonização
e resistência contra a mesma, ou seja, desde sempre os moçambicanos resistiram
a opressão colonial.
Mas o porquê do colonialismo? Da escravatura e exploração
humanas? Será uma punição pelo facto de ser negro? (preto tal como era chamado
o negro pelo colonialismo português), de pertencer a um continente descoberto
por eles enquanto faziam as suas navegações marítimas? (época dos
descobrimentos). Porém, quanto à mim, não se trata necessariamente de uma
descoberta, pois nenhum africano se encontrava coberto ou tampado por alguma
coisa. Portanto, o melhor termo não é dizer o povo ocidental descobriu o continente africano e nem os
africanos, mas sim «encobriu-os», ou
seja, não se trata de uma descoberta, mas de um encobrimento: encobriram a
escravatura, a exploração, a humilhação e privação dos direitos humanos dos
africanos. De lembrar que a aquando da sua chegada a África, os europeus diziam
que encontravam-se em solos extra-europeus: eles ainda consideravam que,
enquanto na Europa há leis, em África há caos; enquanto a sociedade europeia
tem história, a africana é a-histórica (pré-histórica); enquanto na Europa há
Estado, em África existem chefaturas; enquanto na Europa há religião, em África
há práticas mágico-religiosas; enquanto na Europa há médico, em África há
curandeiro; enquanto na Europa a sociedade é civilizada, em África estamos
perante uma sociedade selvagem e primitiva – assim considerava ocidente.
O povo moçambicano de antes da independência, ou
simplesmente, o povo moçambicano colonizado tinha de se identificar e se
inspirar nos ideais portugueses. Em certos estabelecimentos ou instituições
tais como hospitais, mercados municipais, restaurantes e entre outros, era
interdita a circulação de moçambicanos que na altura eram chamados por pretos tal como dizia Francisco Langa o mais conhecido por
Chico-Nhoca, personagem real da obra literária do ilustre escritor moçambicano
Albino Magaia intitulada “Yô Mabalane”
de 1983. Como se o preto da pele fosse a essência e ao mesmo tempo nome de cada
homem moçambicano.
As palavras, branco, asiático, goês - caneco,
paquistanês, indiano - monhé, mestiço – mulato e indígena são termos que não
exprimiam unicamente o grupo racial a que pertenciam, mas também o seu lugar na
escala colonial social portuguesa.
A condição para frequentar as praças e serviços públicos,
tal como disse, passava em ter um registo português ou então tornar-se num
“pele negra, máscara branca”, num assimilado: homem de raça branca, mas num
mero faz de contas pois apesar de ter registo português e fazer de contas que
era um homem branco e por isso compartilhava quase que os mesmos direitos com o
colonizador, no fundo continuava negro, africano e moçambicano, quer dizer,
continuava 100% moçambicano como eu.
Conquistada a independência nacional e total a 25 de
Junho de 1975, segundo alguns documentos oficiais, graças a homens tais como
Samora Machel, Eduardo Mondlane, Felipe Samuel Magaia, nasceu a esperança de um
futuro promissor principalmente à juventude daquela época. Todo moçambicano
estava engajado de uma liberdade de sonhar, de sorrir e de poder portar-se de
acordo com os valores da nossa moçambicanidade que já estavam enraizados nas
veias do próprio passado moçambicano. Assim, cabia aos moçambicanos resgatar
tais valores em prol da reconstrução da moçambicanidade que esteve em
detrimento e submissa durante o período do regime colonial português.
É de recordar que, o homem negro moçambicano tinha que,
sobretudo, respeitar o homem branco. Era também obrigado a se sentir
racionalmente inferior ao branco, isto para dizer que o homem negro se sentia e/ou
era um instrumento nas mãos dos homens brancos. Portanto, já deu para notar que
o povo moçambicano não só é heróico pelo facto de ter conquistado a sua
liberdade e independência, mas também pelo facto de ter resistido desde o
início da escravatura e por ser dono de uma rica e emocionante história, quer
de resistência, como de libertação, desde os impérios até a formação de
movimentos independencialistas.
Hoje em dia ainda, assistimos cenas idênticas, ou melhor,
semelhantes àquelas que outrora sucederam. Há casos de moçambicanos que até
hoje e, mesmo depois dos seus antepassados terem morrido com o fim último de
garantir uma vida melhorada às gerações que os procederia, neste caso concreto
nós. Nos dias actuais, há pessoas que se envergonham de ter os pais que têm, de
falar a língua que os pertencem, de vestir aquilo que lhes é digno, de comer
aquilo comem (gastronomia), de seguirem as suas tradições, de viverem onde
vivem, de assumir a sua identidade, de frequentar a religião que frequentam, de
possuir a cor que possuem, de pertencer a etnia que pertencem, em geral de
serem o que são.
Tais pessoas além de negar a sua identidade, ainda nutrem
os ideais do colonizador, dizendo: o homem negro não vale nada, como se o homem
branco valesse mais em relação ao primeiro, pois, ultimamente os homens de cor
negra têm-se estigmatizado entre si mesmos, dizendo-se que ambos não prestam,
isto é, que o homem negro não presta. Mas daí emerge uma pergunta muito interessante,
quem colonizou, oprimiu e pôs a sofrer o outro? Será justo o próprio negro
dizer ao outro igual a si que não presta? E ao dizer que o outro não presta não
estaria a valorar o colonialismo? Não estaria a desvalorizar os nomes e a honra
daqueles que tanto lutaram para libertar esta pátria que, por sua vez, eram
igualmente negros? Portanto todos àqueles que incansavelmente lutam em dizer
que o homem negro não presta ou então não vale nada, não estarão infectados
pela doença da colonização mental Salazariana?
Em certos restaurantes em que está lá a trabalhar um
grupo de serventes negros, quando chega um cliente que por sinal é negro, é mal
atendido, mas quando lá chega o branco é atendido com simpatia e hospitalidade. E, há vezes em que quando
chega o negro em primeiro e o branco em segundo, o último é o primeiro a ser
atendido, funciona assim o provérbio “os últimos serão os primeiros”. Assim, um
servente negro é hospitaleiro em relação ao branco e tolerante em relação ao
negro.
Na nossa sociedade quem não sabe falar a língua de
Camões, isto é, a língua portuguesa, é colocado à parte, ou seja, quem não tem
noções da língua portuguesa é tratado de forma discriminatória, porque no lugar
deste falar português, fala changana,
chope, macua, ndau, sena etc., como se estas línguas não fossem
válidas, e válida apenas a língua portuguesa, que por sinal herdámos do
colonizador, Portugal.
Tal aconteceu uma vez quando estava no interior duma das
bibliotecas existentes na capital Moçambicana (Maputo), na companhia de um
colega, quando resolvemos em nos comunicar em nossa língua materna, mas foi-nos
proibido de continuar a usá-la, isto é, foi-nos pedido, ou melhor foi-nos
obrigado a ter que nos comunicar em português pelos funcionários daquela
estância bibliotecária. E assim o cumprimos. Mas, pouco tempo depois,
resolvemos em nos comunicar em inglês, e para a nossa surpresa, não disseram-nos
nada. E daquele modo descobrimos que naquele lugar e noutras instituições do
país é proibido usarmos as nossas línguas locais, mas as internacionais não.
Tal acontecia ou talvez ainda acontece nas escolas, lembro-me que, quando
estava no ensino primário nos anos 1999-2005 sempre que o professor nos ouvisse
a falar a minha língua materna, o changana,
submetia-nos a um castigo.
Actualmente, nas escolas moçambicanas estuda-se mais a
história dos povos ocidentais do que a história dos povos africanos, razão pela
qual muitos jovens desconhecem o passado histórico de África, e particularmente
de Moçambique. Não sabem dizer com precisão quem era Eduardo Mondlane, Samora
Machel, Felipe Samuel Magaia, qual a data: do início da luta de libertação
nacional; da proclamação da independência nacional; da assinatura do acordo
geral de paz, datas que deviam ser conhecidas por todos moçambicanos pertencentes
à esta pátria amada. Assim, no lugar dos jovens estudarem conteúdos nacionais,
estudam conteúdos ultra-nacionais.
Todos os dias canta-se o desejo de construir a identidade
e orgulho moçambicanos: a moçambicanidade.
Mas, como será possível construir a tão desejada moçambicanidade, se as
gerações presentes desconhecem da heroicidade deste povo? Como poderão estes
ter orgulho de serem moçambicanos, de serem filhos de antepassados
moçambicanos, se nem sequer conhecem a história do seu povo, da sua tribo ou
então da sua etnia? Portanto, quanto à mim, os jovens só terão orgulho de serem
cem por cento moçambicanos quando envergados da heróica história do passado
moçambicano e das resistências levadas a cabo pelas suas tribos no passado
longínquo, médio e recente.
Qual é o jovem que não pode gostar de saber que há muito
tempo, um jovem moçambicano de nome Eduardo Chivambo Mondlane, nascido na
aldeia de Nwadjahane, distrito de Manjacaze, província de Gaza, por sinal numa
zona totalmente rural, pastor de gado como qualquer outra criança daquela
época, numa altura em que era difícil uma criança africana frequentar e
concluir o ensino rudimentar. Apesar da constante perseguição da PIDE, este
jovem fez de tudo e conseguiu estudar mesmo sendo órfão de pai e mãe, o pai e a
mãe morreram quando este tinha dois e treze anos respectivamente. Das várias
bolsas de estudo que este jovem conseguiu ganhar, destaca-se aquela que o
possibilitou de ir aos Estados Unidos, onde, de 1951 a 1956, frequentou o
Oberlin College e a Northwestern University, nessas escolas superiores obteve
sucessivamente os graus de Bacharel, Licenciado e Doutor em Sociologia e
Antropologia. Este jovem foi convidado para trabalhar na secretaria das Nações
Unidas. Diga-se de passagem que, Eduardo Mondlane já tinha a sua vida feita,
mas sentiu a necessidade de compartilhar aquele ambiente de paz e liberdade aos
seus irmãos-compatriotas que estavam em Moçambique, que por sinal, viviam
abalados pelo regime colonial português. Este jovem chamado Eduardo Mondlane,
preferiu deixar os Estados Unidos, a secretaria das Nações Unidas, em fim, a
vida boa que ele tinha, e, voltou a África, voltou a Moçambique para pegar em
armas e lutar para que os seus irmãos pudessem um dia sentir o cheiro e o
conforto de viver em paz, em liberdade, em independência. Um jovem que sabia do
perigo que corria quando saiu dos EUA, ou seja, Mondlane sabia que podia
morrer, pois onde há conflito ou guerra infere-se danos humanos, infere-se a
morte. Portanto, digam-me vocês, qual é o jovem que não sentiria orgulho de
fazer parte de uma pátria de um homem como este, de um homem como Eduardo
Chivambo Mondlane?
Para podermos construir a tão desejada moçambicanidade,
passa necessariamente em conhecermos o nosso próprio passado histórico, não essencialmente
em conhecer o passado histórico alheio: àquele que não nos pertence; assim o
passado histórico alheio tem de ser usado não como objecto de estudo do povo
moçambicano, mas sim como objecto de referência na compreensão da nossa
história, da nossa história entanto que povo moçambicano, entanto que entidades
pertencentes a esta nossa gloriosa pátria amada, Moçambique.
Passados tantos anos de independência e “liberdade”, ou melhor, passados tantos anos de independência
político-administrativa (o que também nem chega a ser), pois, quanto à mim, a
independência que conquistámos em 1975 trata-se de uma independência política e
administrativa que possibilita os moçambicanos a governarem o seu próprio país
criando leis que facultem a paz, a liberdade, a solidariedade, ordem e
segurança num Estado de direito que somos. Assim, trata-se de uma independência
político-administrativa porque até nos dias actuais, vivemos economicamente dependentes
do ocidente, vivemos pedindo “esmola” a Europa. Portanto, vivemos dando sentido
e vida àquela expressão medieval segundo a qual: “o ser humano é independente se for dependente”.
Bem, talvez seja o preço que o ocidente deva pagar por
tantos anos de exploração dos recursos africanos e do próprio Homem africano
que outrora foi usado como um instrumento para a obtenção de capitais. Esse
mesmo Homem africano teve de participar duma guerra que não lhe dizia respeito
(II Guerra Mundial) só, e, exclusivamente, para defender os interesses do
opressor. Além disso, grande parte da grandeza da Europa e da América derivam
da exploração da raça negra. Portanto, o financiamento europeu para os povos ou
países africanos de hoje, trata-se na minha opinião de uma restituição do que é
devido, logo é algo justo, pois para Polemarco discípulo de Sócrates “...a justiça consiste em restituir a cada
um o que lhe convém...” (cf. A República - no livro I nas páginas 10 e 11).
Todavia, o que dizer da forte influência que os líderes
africanos recebem do ocidente? Parece que os líderes africanos não são cem por
cento autónomos nas suas decisões. Se nos consideramos livres e independentes,
então porquê até hoje somos coagidos por forças externas nas nossas decisões
internas, como país, como nação, como povo e como continente?
Passados tantos anos de independência, tal como já referenciei,
muitos africanos ainda se sentem inferiores em relação ao povo ocidental em
quase tudo. Vivem ainda oprimidos. Quando se fala de desenvolvimento, refere-se
aquilo que acontece no mundo ocidental, e, nós africanos temos que imitar
aquele referido desenvolvimento, temos que «nos modernizar». E modernizar-se
refere-se construir edifícios como aqueles que se constroem no ocidente,
vestir-nos como vestem no ocidente, mobilar as nossas casas a moda estrangeira
e com objectos luxuosos. Já agora, somos obrigados a ter que ratificar do novo
acordo ortográfico para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Será que até quando teremos de viver colonizados, escravizados e globalizados
não de maneira directa ou notória, mas de forma indirecta, ou se
quisermos ainda, de forma moderna? Seremos nós “os condenados da terra”?
Não obstante, devido a esta intermitente tendência de
plagiarmos de tudo e um pouco que vem do ocidente, como por exemplo os modelos
de administração, de governação e de desenvolvimento ocidentais, maior parte
dos nossos planos de desenvolvimento tem resultado em fracassos e insucessos.
Neste sentido, enquanto os nossos governantes africanos não enveredarem segundo
as realidades dos seus povos, é verdade que os fracassos jamais cessarão. Além
do mais, é de competência que os governos africanos através dos seus tutelares
da pasta da cultura (Ministério da Cultura) motivem a auto-estima dos seus
povos e a sua auto-afirmação como negros e como pessoas.
É necessário que cada moçambicano, cada negro e cada
africano tenha orgulho daquilo que é, tal como sustenta o filósofo Edward
Blyden citado por Severino Ngoenha[3]
na sua “Das Independências às Liberdades”[4]
(1993). Para Blyden,
«A nossa personalidade e a nossa raça pressupõem a
existência de uma responsabilidade. O dever de cada um, e de cada raça é lutar
pela própria individualidade, para mantê-la e desenvolvê-la. Portanto orai e
amai a vossa raça. Se não fordes vós mesmos, se abdicares da vossa
personalidade, não havereis deixado nada ao mundo. Não tereis satisfação,
utilidade, nada que fascine os homens, porque com a supresão da vossa
individualidade havereis perdido o vosso carácter distintivo. Vereis, então que
ter abdicado da vossa personalidade, significará ter abdicado da missão e da
glória particular a qual sois chamados. Seria de facto renunciar à nossa divina
individualidade, o que seria o pior dos suicídios» (Blyden apud Ngoenha, 1993:68).
Na verdade, não era àquele primeiro o meu propósito
principal neste presente artigo, isto é, o meu objectivo não era contar-vos da
história da colonização em Moçambique. Mas, resolvi descrevê-la de forma
sucinta, uma vez que, o assunto que queria aqui abordar conjectura-se com a
colonização sofrida pelos moçambicanos, ou seja, o actual quotidiano dos
moçambicanos possui sintomas da colonização mental “Salazariana”. Portanto, trata-se fundamentalmente não de uma
discrição da história da colonização em Moçambique, mas dos efeitos que a
colonização mental trouxe e traz até agora às actuais gerações moçambicanas,
que por sua vez, cria barreiras na construção da moçambicanidade e/ou seja, da
identidade moçambicana que tanto a almejamos.
Nota do autor:
O que fiz no presente artigo não se trata de uma narração
da história de Moçambique. Apenas usei da história do nosso passado como
referência para melhor fazer compreender aos ilustres leitores o pulsar do meu cogitar.
O que fiz devia-se fazer, outrossim, com a história ocidental para os
moçambicanos, quer dizer, temos que usar da história ocidental como uma citação
ou referência quando estivermos a estudar ou abordar a história de Moçambique.
Portanto, se quisermos que as gerações vindouras possam ter orgulho deste belo
Moçambique, o nosso objecto de estudo tem de ser em primeira instância, a
heroicidade do povo moçambicano. Um outro aspecto não menos importante, seria
incutir a história de Moçambique em todos sistemas de ensino nacional, ou seja,
proponho que se institua o ensino de história de Moçambique nos ensinos
primário, secundário e não só, mas também no ensino superior e
independentemente do curso ou da faculdade que esteja-se a fazer, quero com
isso dizer, tínhamos que ter no nosso currículo nacional de ensino uma
disciplina que se ocupasse só e exclusivamente da história de Moçambique vigente
em todas as classes, mesmo para àqueles estudantes que estejam a fazer a secção
de ciências do ensino secundário médio (11ª e 12ª classes), bem como aos
estudantes das faculdades de ciências naturais e matemática, pois, é fundamental
que todos nós conheçamos o nosso passado histórico independentemente da classe
ou da especificidade que estejamos a cursar no ensino superior. O melhor homem
é aquele que conhece o seu passado, portanto, a sua história. É urgente dar a
conhecer aos jovens a história do povo unido do Rovuma ao Maputo, do Zumbo ao
Índico cujo colhia e colhe os frutos do combate pela paz, diante do qual,
cresce o sonho ondulando na bandeira, que vai lavrando na certeza do amanhã,
tal como se diz na terceira estrofe do nosso hino nacional, «Pátria amada».
NGOENHA, Severino. Das
Independências às Liberdades. Maputo: Edições Paulistas – África, 1993.
HOFISSO,
Narciso, Sitói, Lucas. A história da minha pátria, 5ª Classe
(antigo currículo). Maputo: Diname, 1986
Cossa, Hortência Mataruca, Simião.
Moçambique e sua história- 12ª
Classe. Maputo: Diname
Ivan Dário Maússe
Estudante de
Filosofia
E-mail:
ivanmausse@gmail.com
facebook:
ivan.mausse@1facebook.com
[1]Estudante de Filosofia na Universidade
Pedagógica
[2]Título do livro de Frantz
Fanon publicado em 1952. Este livro foi escrito para mostrar a interpretação
psicanálitica do problema do negro (ontologia da raça). O ser do negro era
avaliado em meras questões da cor da pele, assim quanto mais clara fosse a cor
da pele signficava que o conteúdo desse mesmo homem era bom, todavia se a cor
da pele fosse escura era sinal de que o conteúdo de tal homem é sujo. Neste
sentido, o negro teve de negar da sua cultura e cor para adoptar a cultura e a
cor do branco através da política de assimilados. Assim, o negro tornava-se num
pele negra e máscara branca porque praticava o imitismo civil, preocupava-se em
se comportar como um branco e como um burguês, renegando-se a si mesmo.
[3]Bacharel em
teologia e Doutor em Filosofia pelas Universidades Urbaniana e Gregoriana de
Roma respectivamente, nasceu em Maputo no ano de 1962, é autor de várias obras
tais como: Pensamento engajado, Por uma dimensão Moçambicana da consciência
Histórica, Duas interpretações
Filosóficas da História do Século XVII. É docente na Universidade
Pedagógica lugar onde lecciona as disciplinas tais Filosofia Africana,
Filosofia pós-modernidade. É também docente em outras Universidades nacionais e
internacionais lugares onde lecciona diferentes disciplinas.
[4]Nesta obra, Severino Ngoenha discute muito a questão
da liberdade e auto-determinação dos povos africanos. Depois de conquistadas as
independências dos países africanos a partir da década sessenta, prevalece o
problema de falta de auto-determinação, ou seja, os líderes africanos não
chegam a ser livres nas suas decisões internas tal como deviam. Até hoje ainda
recebem influência da Europa e do Ocidente quando desenham suas políticas. Isso
reflecte-se nos modelos de governação, razão pela qual há insucessos e
fracassos. Ele próprio diz: “deve-se conceber um modelo de desenvolvimento
endógeno; isto é, deve haver uma interiorização de modelos técnicos pelas
massas e a tomada de iniciativa no âmbito de grupos comunitários como os
distritos” (cf. 171).
11 novembro 2013
OPERAÇÃO PRODUÇÃO FORÇOU MILHARES DE
PESSOAS ÀS “MACHAMBAS” EM MOÇAMBIQUE
Após a independência de Moçambique, o governo tentou
implementar um sistema económico marxista-leninista. Lançou em 1983 a Operação
Produção que obrigou milhares de pessoas a deixar as famílias e a ir para o
Niassa.
Samora Machel, primeiro Presidente de Moçambique, tinha a
braços uma difícil missão após a independência, em 1975: a reorganização do
novo país. A queda do regime colonial português abalou a estrutura do Estado
(uma vez que, até à data, os portugueses controlavam o aparelho produtivo,
económico e burocrático).
Após a independência, registou-se um forte fluxo de pessoas das zonas rurais
para as grandes cidades, à procura de melhores condições de vida mas sobretudo
porque não se sentiam seguras nos campos com o início da guerra civil em 1976.
Assim, o desemprego disparou, os já frágeis serviços de educação e saúde
entraram em ruptura nos centros urbanos (segundo o historiador e antropólogo
brasileiro Omar Ribeiro Thomaz) e diminuiu a capacidade de produção de
alimentos nas zonas rurais.
“Vinte pessoas numa
família e quem trabalha é uma pessoa só. E são adultas! A quantidade é grande
que come.(…) De todas estas zonas vinha dantes o tomate, a couve, o repolho, a
cebola, a batata, o arroz, o milho, o feijão, a mandioca, a alface, a banana,
tudo aquilo que esta cidade consumia. É isto que vamos produzir!”, disse Samora
Machel num discurso.
O primeiro Presidente de Moçambique temia que as pessoas desempregadas,
consideradas improdutivas, enveredassem pela criminalidade e prostituição,
agravando a instabilidade social. Assim, o governo da FRELIMO (Frente de
Libertação de Moçambique) lançou, em 1983, em plena guerra civil, a Operação
Produção.
Milhares de deportados das cidades para os campos
De acordo com estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, o
programa consistia numa ação policial repressiva, destinada a enviar as pessoas
alegadamente improdutivas, marginais e prostitutas, das grandes cidades, para
as zonas rurais com baixa densidade demográfica, em particular para o Niassa.
Deviam dedicar-se ao trabalho no campo, tornando-se cidadãos produtivos para a
sociedade, e aprender a ideologia marxista-leninista.
Ao longo da Operação Produção, as rusgas podiam acontecer a
qualquer momento. Segundo o especialista da Universidade Estadual de Campinas,
no Brasil, as forças de segurança saíam pelas ruas de Maputo ou da Beira, por
exemplo, solicitando comprovativos de trabalho ou estudante aos homens, e os
mesmos ou de casamento às mulheres.
Quem era apanhado sem documentos ficava automaticamente detido e, normalmente
ao final do dia, era transportado em aviões lotados para o norte do país. Os
detidos não tinham como recorrer da decisão num tribunal (como seria normal num
Estado de direito).
A Operação Produção efetou entre 50 a 100 mil pessoas apenas na cidade de
Maputo, segundo estudos de Ribeiro Thomaz.
Operação produção enquadrava-se na construção do Homem Novo
Três, quatro vôos por dia para o Niassa
Maria, nome fictício de uma ativista moçambicana, que pediu anonimato à DW
África e que acompanhou de perto a Operação Produção, recorda a chegada das
pessoas à província do Niassa, a partir de junho de 1983: “a partir das quatro
horas, os aviões chegavam ao Niassa com essas pessoas. E daqui eram
encaminhadas imediatamente para vários centros. Esses centros não eram na
aldeia, eram mato, completamente mato. Cada um recebia os seus instrumentos,
enxada, catana, foice, quando chegasse lá, cortava pau, fazia a sua casa para
viver. (…) Não posso precisar o número, só sei que passou um tempo e que eram
três, quatro vôos por dia. Era muita gente”.
Apanhadas de surpresa nas ruas, deixando tudo para trás,
muitas pessoas chegavam ao Niassa apenas com a roupa que levavam no corpo.
“Foi muito difícil porque faz muito frio aqui. E eles como eram apanhados na
rua, de qualquer maneira, sem agasalhos nem cobertores, viviam assim mesmo.
Muitos deles perderam a vida, não só por causa do frio, mas lá no mato, nos
centros onde eram colocados, pelos animais. Uns foram comidos pelos animais e
outros doentes morriam pelo caminho, talvez na tentativa de fugir”, recorda a
ativista Maria.
Abandonadas à sua sorte
Em vez de encontrarem centros organizados da Operação Produção, as pessoas
eram praticamente abandonadas no mato denso, terra de ninguém.
“Eles eram deixados lá, nos centros para produzir. Mas muitos saíram da cidade,
não conseguiam capinar. E depois essa retirada compulsiva retirou um bocado
moral de fazer alguma coisa e de viver num sítio sem as mínimas condições para
um ser humano. Então, no dia-a-dia, a preocupação era a de procurar comida para
poder sobreviver”, relata Maria.
Zélia, a voluntária na Operação Produção
Sem possibilidade de se despedirem ou de contactarem os seus familiares, a
maioria das pessoas chegava frustrada ao Niassa – à exceção de Zélia Charles.
Natural da Beira, Zélia chegou ao Niassa, em 1983, como voluntária. O marido,
que antes tinha trabalhado nos Caminhos-de-Ferro, fora forçado a integrar a
Operação Produção. Por amor, Zélia pegou nos filhos e foi com ele.
Foram para a zona montanhosa de Cavago, distrito de Sanga.
Mas a guerra civil (entre 1976 e 1992) obrigou tanto Zélia como muitas outras
pessoas a procurarem terreno mais seguro. Fixou-se em Unango, no mesmo
distrito, onde vive até hoje.
Centro de reeducação de Unango, Niasssa
As precárias condições de vida numa província imensa e inóspita, aliadas à
guerra civil, que se estendia a todo o país, tornavam difícil a sobrevivência.
Zélia Charles, que tinha chegado como voluntária na Operação Produção, “não viu
muito sofrimento, mas aquele que foi capturado sofreu”, conta, recordando que
muitas pessoas “dormiam em sacos, nem tinham pratos, levavam papel para receber
a comida e comiam”.
Governo autoriza regresso mas não dá meios
Após a morte de Samora Machel, em 1986, Joaquim Chissano sucede na Presidência
da República. Em 1988, Chissano autorizou o regresso para as zonas de origem
das pessoas que tinham sido forçadas a ir para o Niassa.
Praticamente deixadas à sua sorte, no Niassa, as pessoas puderam contar apenas
com o apoio da Caritas, organização humanitária ligada à Igreja Católica:
“quando o governo autorizou, a Caritas foi assistir com mantas, comida. E foi
nessa altura que víamos esqueletos humanos, pedaços dos corpos humanos, quando
íamos para o terreno distribuir”, diz a ativista moçambicana Maria.
Etelvino Carlos, atual coordenador da Caritas Diocesana de
Lichinga, conta que na época foi fundamental o apoio da Caritas alemã que
“ofereceu um camião, para além de fundos para combustível e para conseguir
comprar alimentação para as pessoas, nas viagens de regresso a Maputo".
"Essas pessoas estavam aqui perdidas e não sabiam como localizar os seus
familiares”, explica Etelvino Carlos.
Com o apoio da Caritas alemã, Maria, que trabalhava para a Caritas Moçambique,
no Niassa, ajudou a preparar as viagens de regresso de muitos moçambicanos,
entre 1988 e o ano 2000.
“Então, no princípio, quando a nossa guerra civil dos 16 anos foi muito
intensa, foi um pouco difícil por via terrestre. Mas [as pessoas] foram por via
aérea. Depois com o término da guerra ou quando abrandou começaram a ir por via
terrestre, porque a Caritas alemã doou um camião para transporte dessa gente. O
carro fez muitas viagens. Viagens difíceis, as vias de acesso eram pouco
seguras. Mas nunca tivemos problemas de ataques pelo caminho”, relata Maria.
Rompimento com o passado
Até ao momento, não se sabe quantas pessoas regressaram do
Niassa às terras de origem. Mas sabe-se que muitas romperam ligação ao passado.
Perderam irremediavelmente o rasto da família e, por vontade própria, voltaram
ao Niassa para recomeçar uma nova vida.
Já sem o marido, Zélia Charles preferiu ficar com os filhos em Unango. Nunca
recebeu qualquer apoio que, com o término da Operação Produção, foi prometido
pelo governo. Até hoje a maioria das pessoas que integrou a Operação Produção
vive da agricultura de subsistência.
Humanismo ou violação dos direitos
humanos?
No entanto, o antigo presidente Joaquim Chissano mantém-se como defensor da
Operação Produção, programa que ele próprio terminou. “Era um bom programa que
visava recuperar delinquentes e marginais. Hoje ridicularizam-nos, dizem que
era um programa criminoso, enquanto estava cheio de humanismo”, afirmou
Chissano a um jornal moçambicano em 2004.
Fora dos círculos da FRELIMO, o programa é visto como tendo violado os Direitos
Humanos e falhado os seus objetivos de reduzir os problemas urbanos e de
aumentar a produção de alimentos nas zonas rurais.
Tanto o processo de reeducação como a Operação Produção marcaram a história de
Moçambique, em particular da província do Niassa, nos primeiros anos
pós-independência. Hoje ainda é um tema sensível entre a maioria da população.
Contudo, Maria, a ativista moçambicana, diz que é "uma página
ultrapassada".
AS FERIDAS ABERTAS
PELO PROCESSO DE REEDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE
Entre 1974 e o início da década de 1980,
milhares de pessoas – entre elas prostitutas, dissidentes políticos e
Testemunhas de Jeová – foram forçadas a ir para campos de reeducação. A
maior parte não voltou.
Os primeiros anos da história de Moçambique
independente foram um período conturbado. Ainda antes da independência de
Moçambique (1975), o governo marxista da FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique) sentia a necessidade de eliminar os comportamentos e costumes
associados ao colonialismo português e ao sistema capitalista, criar uma nova
mentalidade e uma sociedade socialista.
Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, atual chefe de Estado e na época
ministro da Administração Interna do governo de transição, anunciou a criação
de campos ou centros de reeducação. Este tipo de programa foi característica de
outros regimes totalitários socialistas, como o da antiga União Soviética ou da
China, por exemplo.
O plano inicial era reeducar, nas zonas
rurais, as prostitutas das grandes cidades. Na época, o ministro Guebuza
estimou que existiam 75 mil prostitutas só na capital (embora o número
contemple, presumivelmente, mulheres que viviam sozinhas e mães solteiras),
como reporta um artigo do jornal português "A Capital" de 1974.
O alvo das rusgas alargou-se depressa. Além de
prostitutas, milhares de outras pessoas como dissidentes políticos, suspeitos
de ligação ao poder colonial português, alcoólicos, autoridades tradicionais
(como régulos e curandeiros) e Testemunhas de Jeová (um grupo cristão que
recusa, entre outros, o serviço militar obrigatório) foram apanhados nas ruas
das principais cidades de Moçambique, em particular em Maputo, Beira e
Inhambane, segundo relatos em jornais internacionais.
Cerca de 10 mil reeducandos em 1980
Os detidos eram, normalmente, encaminhados para os postos da polícia e, sem
qualquer comunicação à família e sem decisão de um tribunal, eram transportados
para centros de reeducação, sobretudo no norte do país. Era como um castigo.
Através do trabalho forçado na agricultura, ou
machamba, como habitualmente se diz em Moçambique, as pessoas deveriam ser
reeducadas e, nesse processo, aprender os princípios do marxismo-leninismo.
Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil
pessoas estariam concentrados em 12 centros de reeducação. O número viria a
crescer nos anos seguintes - segundo estudos do historiador e antropólogo Omar
Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.
Em novembro de 1975 foi anunciada a detenção de três mil pessoas em rusgas
efetuadas nas cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano
Daily News. E em 1982 foi anunciada a suspensão de mais de 500 funcionários
públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação.
O mais terrível
Alguns dos centros de reeducação ocuparam as instalações de antigas bases
militares. Estavam em locais remotos, distantes das comunidades, de difícil
acesso. Conta-se que os fugitivos, quando não eram apanhados pelos guardas, acabavam
por ser denunciados pelos camponeses da região ou devorados por feras.
A maior parte dos centros de reeducação localizava-se na província noroeste do
Niassa, a maior e menos habitada do país.
O centro de M’telela, no Niassa, para onde foram enviados vários
inimigos políticos da FRELIMO, é considerado o mais terrível. Segundo o livro
“Uria Simango - Um homem, uma causa” de Barnabé Lucas Ncomo, dos 1.800
prisioneiros que lá entraram, desde 1975, menos de 100 saíram com vida, até
1983. Em M’telela ou nas imediações terão morrido, por exemplo, Uria Simango e
Joana Simeão, personalidades ligados à fundação da FRELIMO, que viriam a ser
acusadas de traição.
“Lavar a cabeça” de ideias colonialistas
Natural da Beira, Félix Bingala, hoje com 57 anos, veio para a província por
força da reeducação. Conta que foi integrado no programa, em 1975, depois da
visita à cidade da Beira do então ministro da Administração Interna, Armando
Guebuza. O ministro acusou muitos jovens de serem defensores do colonialismo
português.
Na altura com 19 anos, Félix Bingala trabalhava numa loja da
Beira quando foi apanhado numa rusga: “carregaram-me. Entrei no machimbombo,
fui à 5ª esquadra. Dali mandara-me para o Grande Hotel. Logo de manhã,
apareceram muitos machimbombos, carros, e carregaram-me para Sakuze, na
Gorongosa. Atravessei o rio Sakuze. Fomos para o mato. Disseram-nos: aqui têm
de construir cidade, trazer as vossas mulheres para aqui, para tirar as ideias
do tempo colonial, para nos ‘lavar a cabeça’. E ficámos. Era muita gente, toda
a raça estava acumulada ali: moçambicana, mista, portuguesa, havia uma mistura
de pessoas em Sakuze”, recorda.
Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente
ligação com o passado: “desde que estou aqui não tenho possibilidade de
contactar com a família. A minha família até pode dizer: ele já morreu; e eu
ainda estou vivo”, admite.
RENAMO recrutou homens
da reeducação
O
centro de reeducação de Sakuze, para onde Félix foi enviado, em 1975,
localizava-se na Serra da Gorongosa, na província central de Sofala. Durante a
guerra civil (entre 1976 e 1992), a região foi um bastião da RENAMO, a
Resistência Nacional Moçambicana.
Foi lá onde a o principal partido da oposição começou a recrutar
homens para as suas fileiras, retirando-os do domínio da FRELIMO. “A RENAMO
estava a aproveitar estes homens, que já estavam preparados” militarmente, diz
Félix Bingala que nunca foi apanhado nas investidas.
Para escapar às rusgas da RENAMO, a FRELIMO transferiu os reeducandos. Depois
de Sakuze, Félix Bingala foi para outro centro, em Panda, na província sul de
Inhambane, onde, todavia, a RENAMO conseguiu recrutar mais homens. Pelo que em
1978, Félix foi novamente transferido para Majancaze, província de Gaza, onde,
conta, também andaram homens da RENAMO.
Um ano mais tarde, em 1979, Félix Bingala foi encaminhado finalmente para o
centro de reeducação de Msawize, no mato denso do distrito de Sanga, na
província do Niassa.
Antigo Campo de reeducação de Gorongosa
Obedecer para sobreviver
na reeducação
Olhando para trás, Félix recorda com amargura os centros de reeducação: “muitos
moçambicanos perderam a vida, ao serem comidos por leões, ao fugirem”.
Quanto ao quotidiano, o ex-reeducando lembra: “de dia é
trabalho, pegar a enxada para a machamba, ir à pesca, fazer cestas (quem
soubesse), comida para a gente comer. Mas a comida não chegava para tudo e
vinha da província para lá. Houve dificuldades mesmo. Se alguém saísse um
pouco, a população iria amarrar. Nós éramos chamados presos, éramos amarrados,
bem esticados. Tinha que se cortar cabelo “assim”, usar saco, para se saber
quem é fugitivo. Até havia uma cova grande. Se você praticou alguma coisa, você
desce com a escada até lá, tira a escada, fica ali, “caga ali, mija”, de manhã
tira, comida vem, recebe e come. Essa era a punição”.
André Ernesto Embalato, natural de Gaza, passou também por centros de reeducação.
Trabalhava numa pastelaria, em Maputo, quando em 1975 foi apanhado pela polícia
sem documentos de identificação. Esteve igualmente em Sakuze antes de ser
transferido até ao Niassa.
“A vida é de ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia
à ordem era batido. Quando tocava o apito, devia-se correr, se fosse quando se
estivesse a comer devia-se deixar a comida e receber ordem. Se não receber
ordem tem porrada, acontecia assim”, diz André Ernesto Embalato.
Ouvir o Contraste "As feridas abertas pelo processo de
reeducação em Moçambique"
Na reeducação as pessoas
regeneravam-se ou perdiam a vida?
O centro de Msawize durou pouco tempo mais desde que Feliz Bingala lá chegou,
em 1979. Por ordem do governo, começou a trabalhar na empresa agrícola de
Unango, no mesmo distrito de Sanga. A empresa estatal recebeu forte apoio da
Alemanha Oriental comunista. Depois entrou em falência e Félix Bingala começou
a trabalhar na horta, vendeu os seus produtos até conseguir dinheiro para pagar
a viagem para Lichinga, a capital provincial do Niassa. Em 1984 encontrou apoio
na organização Caritas, ligada à Igreja Católica, onde trabalha até hoje como
guarda.
Entretanto, o programa de reeducação tinha
terminado. Face à pressão da opinião pública internacional, o Presidente Samora
Machel ordenou inquéritos confidenciais sobre as condições de vida nos campos,
em finais de 1981, que acabariam por conduzir à suspensão do “processo
reeducativo”.
Na época, Joaquim Chissano ocupava a pasta do Ministério dos Negócios
Estrangeiros e viria a suceder na Presidência da República, após a morte de
Samora Machel, num acidente de avião em 1986.
Chissano elogia ainda o processo reeducativo, como disse numa entrevista, em
2012 , à DW África: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de
reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A
pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que
tinham roubado ou até tinham assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar
onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a
sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios”.
"Ainda bem que
terminou"
Contudo, opinião
diferente tem tanto quem passou pelos centros de reeducação como quem
acompanhou o fim do programa do governo.
Uma ativista moçambicana, que pediu o anonimato, viveu de perto, no Niassa, o
fim do processo reeducativo assim como do programa que se seguiu, a Operação
Produção (de trabalhos forçados).
Segundo a ativista“ falar abertamente nesse assunto é um pouco difícil, porque
é considerada uma questão política e também foi um projeto menos sucedido que
trouxe a perda de muitos cidadãos. (…) Houve feridas abertas, famílias
separadas, pais e filhos, muitos perderam a vida. Não foi bem sucedido esse
plano. Ainda bem que terminou, porque hoje em dia não vem ninguém para o Niassa
para ser reeducado”.
LIVRO DE UNGULANI BA KA KHOSA – “ENTRE AS
MEMÓRIAS SILENCIADAS”
Um dos mais emblemáticos e conceituados escritores
moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa acaba de lançar, em Maputo, o seu sétimo
livro intitulado “Entre as Memórias
Silenciadas”, onde reedita algumas memórias silenciadas dos campos de reeducação.
O lançamento da obra de Ungulani Ba
Ka Khosa, tido como um dos melhores escritores africanos do século XX, esteve
sob a chancela da Alcance Editores e contou com o alto patrocínio da maior
operadora de telefonia móvel, a mcel.
Trata-se de um livro que retrata um
místico de memórias, desde os tempos idos até aos actuais com principal enfoque
aos campos de reeducação.
Tal como o próprio autor afirma,
“mais do que retratar as pequenas e grandes misérias da primeira República, o
livro, no meu entender, revela os desencontros de uma geração que já não se
exalta com os feitos de uma revolução que não consegue renovar o seu discurso.
Uma pátria é feita de identidades, de discursos múltiplos. Os meus personagens
procuram um chão sólido".
Para Ungulani, a sua obra pode ser
interpretada por alguns leitores como um “avivar de páginas recentes e triste
da nossa história”, acrescentado que as memórias do seu livro são bastante
sensíveis.
“Falo de homens que não estão
contentes com seus destinos. Quase todos, ricos ou pobres, geniais ou
medíocres, célebres ou obscuros, gostariam de ter uma vida diferente da que
vivem”, salientou.
VIRGEM MARGARIDA, FILME DE
LICÍNIO DE AZEVEDO
Virgem Margarida" tem como enredo a
história real de uma camponesa virgem moçambicana, internada à força num campo
de reeducação para prostitutas, como os muitos que surgiram no país no período
logo após a independência, cujo objectivo era construir o "homem/mulher
novos".
ENTREVISTA
COM LICÍNIO AZEVEDO SOBRE O FILME VIRGEM MARGARIDA
Em finais 1975, prostitutas de norte a sul de
Moçambique foram levadas para centros de reeducação na convicção de que,
através de muita disciplina e trabalhos forçados impostos por militares da
pureza revolucionária, corrigissem a “má vida” e se transformassem na “mulher
nova” socialista. Mas um equívoco destabiliza as mulheres rusgadas na boémia da
rua Araújo em Maputo: Margarida, que nunca esteve com homem, seria igualmente
levada. Todas se unem contra a opressão machista e põem a nu as injustiças da
“Operação Produção”. Estreou dia 9 no Festival de Cinema de Toronto, e passará
por Londres, Rio, Amiens, Córdoba e Dubai antes de brindar as salas
portuguesas. Licínio Azevedo, realizador brasileiro radicado há quase 40 anos
em Moçambique, conta-nos da sua admiração por estas mulheres e das peripécias
de um filme que traz a lume um episódio negro do período pós-independência,
quando o governo da Frelimo quis reeducar milhares de “anti-sociais”,
dissidentes intelectuais, Jeovás, homossexuais, criminosos, mães solteiras e
prostitutas, fazendo-os desaparecer misteriosamente para lugares recônditos de
antigas bases da guerrilha, em pleno mato, onde muitos sucumbiram aos castigos
e maus tratos. Em 1981 Samora Machel inicia a suspensão do processo
reeducativo. Que aconteceu aos reeducados?
Como surgiu a ideia de contar a história dos
centros de reeducação de prostitutas?
As prostitutas foram as primeiras a dar vivas à
revolução. Tenho acompanhado os 37 anos de Independência em Moçambique enquanto
documentarista e sempre me interessou o tema da mulher. É o caso do meu
filme A Última Prostituta, um documentário clássico de
entrevistas, a partir deuma fotografia de Ricardo Rangel, com dois
militares a escoltarem uma prostituta. Na altura chamou-me a atenção o depoimento
sobre uma camponesa que tinha ido à cidade comprar o enxoval e, indocumentada,
foi levada por engano para os campos. Construí o filme Virgem Margarida a
partir dessa história contada por reeducandas: uma virgem num centro de
reeducação entre 700 prostitutas.
Mulheres aguardando envio aos campos de reeducação (cenas do filme Virgem Margarida)
Olhando para aquela época, como subjaz a ideia
de homem e mulher novos? O que poderia ter de apelativo a limpeza de costumes,
contra a indigência e degeneração?
Eu cheguei a acreditar que, através da
revolução, era possível purificar o ser humano, criar uma nova sociedade. Agora
quero compreender o lado humano destes processos, a contradição dos grandes
ideais que, por vezes, se transformam em tragédias pois as pessoas que os
dirigem são mais fracas do que os mesmos. No filme, um dos conflitos é o percurso
entre as prostitutas e as guardas dos centros de educação, encarregues de
reeducar as outras mulheres, que eram militares e camponesas da luta pela
independência, com uma visão tão deturpada do país que nem sabiam o que era a
prostituição. Os próprios soldados que faziam as capturas, acabados de chegar
da guerrilha, não estavam habituados à cidade e equivocavam-se com uma saia
curta ou um vestido mais ousado. Levavam mulheres para os campos só porque se
vestiam de maneira diferente, usavam batom, ou não tinham documentos. No filme
temos por exemplo a amante, a namoradinha com a mãe em casa, a dançarina mãe de
família que deixou os filhos pequenos sozinhos e a virgem.
Mulheres no campo de reeducação (cenas do filme Virgem Margarida)
Vemos um país internamente desconhecido, com
mulheres do sul, norte, urbanas, rurais, que se vão transformando nesse
convívio em “mulheres de uma só nação”. O filme reflecte sobre a libertação
da mulher?
É sobre os antagonismos da sua libertação.
Remete para a emancipação das mulheres africanas em situações distintas:
alfabetizadas ou não, a mulher colonizada e a mulher revolucionária, que
percebe a disciplina imposta pelo homem. A reeducação funciona em vários
sentidos, todas se “purificam” num certo dualismo: as prostitutas purificam-se
porque aprendem coisas como a importância da liberdade e do trabalho, as
militares libertam-se das hierarquias superiores. A adolescente virgem torna-se
uma espécie de santa: todas a querem proteger ou ser protegidas por ela,
profunda conhecedora do mato, ao contrário das mulheres urbanas sem relação com
o mundo rural. A reeducação de prostitutas, militares e camponesas foi afinal
um processo de mútuo conhecimento, que as leva a unirem-se para
se libertarem.
Na união final, parece haver um grito feminista
que contrapõe o moralismo que quer reeducá-las para serem boas esposas e mães,
aprendizes dos ofícios femininos. Ou seja, os argumentos para a reeducação não
contradizem em parte o objectivo de acabar com a exploração da mulher
pelo homem?
O filme joga com essa dualidade. As camponesas
acusam as prostitutas na sua incapacidade de serem boas esposas, “mulheres da
má vida, vocês não sabem varrer o chão, não sabem cozinhar”, já elas vão buscar
água para os seus maridos e reflectem a sociedade tradicional moçambicana.
A desconstrução torna-se mais clara quando as
militares percebem a fragilidade daqueles a quem devem obediência cega, pois se
até o dirigente da Frelimo não cumpria o que mandava fazer.
Sim, o verdadeiro grito revolucionário provem
das militares quando dizem “filho da puta, passou para o lado do inimigo”.
Revoltada, usa a linguagem das prostitutas, coloca-se contra os homens, pois o
militar afinal é um símbolo masculino reaccionário. Já elas dão continuidade à
revolução, depois de perceberem que estão a ser julgadas, de maneira indecente,
pelo lado machista da revolução. A militar torna-se a verdadeira juíza
da revolução.
De onde vem a sua reflexão sobre
a prostituição?
Da minha infância. Vivia numa fazenda no Brasil
e houve um episódio curioso. Os meus pais viajaram e fiquei com um tio. Eu
tinha quatro anos e ele, bonitão tipo actor americano da época, tinha 18.
Levou-me a uma zona de prostituição ao longo da estrada, meteu-se numa
confusão, veio a polícia e fugiu, deixando-me ali. E de repente vi-me sozinho
com aquelas senhoras que me cuidavam. Só me lembro de um sofá vermelho e moças
de fatos bonitos e cabelos compridos a darem-me boa comida e bebida. Anos
depois soube que aquelas mulheres eram prostitutas. Vi muitos filmes do
Fellini, e sempre tive um grande respeito por estas mulheres. Imagino quando se
vêem numa situação de filhos para criar, com pouca escolaridade, classe social
baixa, seria incapaz de julgá-las.
A
personagem Rosa é uma trabalhadora do sexo emancipada, não tem nenhum
dependente, é forte, com princípios, faz valer a sua palavra,
como aparece?
Em cada personagem misturo várias que conheci, a
Rosa surgiu-me a partir de uma entrevistada. Era rebelde e muito forte, bem
mais marginal e menos lúcida. A Rosa do filme é anarquista, põe em causa a
autoridade, mostra o ridículo da disciplina militar. Ao longo do processo é ela
que adquire mais consciência de classe, transforma-se numa revolucionária
esperta. Não sei o que poderia acontecer-lhe depois do filme, mas com certeza
não voltaria à prostituição.
O que aconteceu a estas mulheres depois
dos campos de reeducação?
Duraram praticamente dois anos. Algumas voltaram
para Maputo, outras ficaram por lá, casaram com homens da região, fizeram
família. Hoje têm cerca de 60 anos. A ida foi bem organizada, já a volta uma
grande confusão.
É quase inexistente o confronto com a história
recente do país, como se houvesse uma sacralização do período pós-independência
que não permite mexer nas suas ambiguidades. Este filme vai ser problemático
em Moçambique?
As pessoas não estão habituadas a ter uma visão
crítica do passado, o que é essencial para evoluir. Não me interessam as
consequências ou o feedback do filme, quero apenas mostrar e quando vejo uma
história bonita, escrevo-a. Em Virgem Margarida, o contexto
político existe mas não é o mais importante. O próximo filme vai ser a partir
de um livro meu, O comboio de sal e açúcar, também mostra
atrocidades de um lado e de outro da guerra civil.
Qual era o seu envolvimento político
em 1975?
Trabalhava na Guiné-Bissau, só cheguei a
Moçambique em 1978 e nem sequer conhecia o processo dos campos de reeducação,
só passados dois anos é que se começou a falar disso. Mas à priori até
acharia benéfico, na minha visão idealista da época, porque também dizia um não
redondo à exploração sexual do colono às mulheres moçambicanas. Só depois,
confrontado com as condições reais dos campos, percebi que é preciso mais do
que boas ideias.
Em outros filmes seus mostra esta atenção para
acontecimentos paralelos a grandes processos históricos, enfoque maior para a
realidade rural de Moçambique?
Gosto do campo por estar mais relacionado com as
tradições e porque percebo melhor os problemas das mulheres. A realidade urbana
em geral é muito violenta, gostaria de contar histórias relacionadas com crime
mas é difícil conseguir dinheiro para tal, precisamos de buscar coisas que
toquem o coração dos financiadores.
Esta longa-metragem é a continuação do
trabalho documental?
A minha formação é jornalismo, trabalhei na
revista Versus, influenciado pelo novo jornalismo da escola
americana. Na Guiné Bissau escrevia histórias da guerra numa perspectiva
ficcionada. Quando vim trabalhar para o Instituto de Cinema de Moçambique foi
fácil a passagem para o documentário. Há continuidade enquanto cineasta e
escritor, pois os meus filmes estão ligados àquilo que escrevo, e a minha
ficção vem do documentário. Tento criar uma linguagem particular para
documentário com estrutura dramatúrgica de ficção. O Grande Bazar é
umaficção misturada com documentário, filmado no meio das pessoas.
O Desobediência é um filme para televisão com dinheiro para
realização de documentário. Inscrevi-o em festivais de documentário e negaram
dizendo que era ficção. Depois ganhou o FIPA de ficção. Acabou por ser uma
ficção por responsabilidade dos festivais.
Como foi dirigir uma grande produção com equipa
técnica de múltiplos países e duzentas mulheres em cena?
Deve ter relação com a história da minha família
com muitos militares, habituei-me a comandar as tropas. Gosto muito de dirigir,
desde que haja um objectivo bem determinado, e uma ideia bem construída.
Comparando com outros realizadores acho que não sou autoritário, ouço opiniões,
deixo os actores improvisarem bastante, criando falas e cenas. É uma
contribuição que espelha uma boa relação entre o realizador e os actores, ambos
sabemos a ideia do filme e eles entendem como o estou a filmar. Não tenho
receio de falar com 200 pessoas, quer dizer, sou tímido mas não posso mostrar.
Havia dez nacionalidades diferentes envolvidas do começo ao fim do filme.
Moçambique, África do Sul, Zimbabué, Angola, Brasil, Portugal, França, Itália,
Alemanha, ex-Jugoslávia. Esta mistura de gente e estética podem criar o cinema
de periferia, em oposição ao cinema americano em que é todo
muito formatado.
Onde filmaram?
As filmagens foram feitas em vários locais
diferentes do país, numa zona inóspita. Escolhi Sussundenga, na Província de
Manica, no centro do país.O mesmo lugar do documentário A
Ponte, reserva Chimanimani, onde fica o Monte Benga, o mais alto ponto de
Moçambique. Descobri um rio maravilhoso, o Mussapa Pequeno, que escolhi pois
precisava de um rio sem crocodilos onde duzentas mulheres nuas pudessem tomar
banho. Fiquei maravilhado, nunca vi tantas mulheres bonitas tomando banho
juntas. Filmámos fora da vila onde os homens não tinham acesso. Sempre gostei
de trabalhar com mulheres, avisei logo que não queria fazer um filme sobre mulheres
só com homens na equipa.
E as actrizes? Imagino que não tenha sido fácil
para os maridos deixarem as suas mulheres irem para o mato gravar um filme sobre prostitutas…
Quase não havia actrizes profissionais.
Explicámos-lhe tudo muito bem, pediu-se autorização. A Margarida Cardoso gravou
a reunião com os maridos para o filme Licínio Azevedo – Crónicas
de Moçambique.
O que pode trazer este filme para a produção
audiovisual em Moçambique? Como foi o processo do filme?
Foi difícil e moroso.É uma produção
bem conseguida mas um esforço enorme e grande luta da produção. É preciso ter
nervos de aço para aguentar uma produção com dinheiro saindo aos pinguinhos durante
anos, tudo a complicar-se e conseguir agilizar os compromissos. Isto acontece
devido ao facto de Moçambique não ter fundos próprios para fazer cinema, de
toda esta dependência do exterior. Quando pedimos sujeitamo-nos, não se pode
fazer nada. Pondo na balança, o pobre paga mais caro. O nosso filme poderia ter
sido feito com 500 mil dólares e gastámos um milhão apenas porque o dinheiro
demorou, e por estar tudo atrasado paga-se mais caro. É uma falta de visão um
país como Moçambique, que há uns anos tinha dinheiro para o cinema,
negligenciá-lo hoje em dia.