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30 maio 2012

"Escravos sem dono": a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista


"Escravos sem dono": a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista

Omar Ribeiro Thomaz

Universidade Estadual de Campinas



RESUMO

Nos dezessete anos que se seguiram à independência, boa parte da população moçambicana foi objeto de deslocamentos forçados, ora como conseqüência de projetos específicos de desenvolvimento ou expedientes repressivos levados a cabo pelo regime socialista, ora em função da cruel guerra civil na qual mergulhou o país. Entre os projetos de desenvolvimento, destacam-se as grandes empresas agrícolas que tinham como propósito concentrar a população camponesa do país, ou mesmo operações de deportação massiva de indivíduos classificados como"improdutivos" para regiões longínquas, onde deveriam transformar-se em mão-de-obra rural; milhares de indivíduos foram ainda objeto de expedientes repressivos, os quais se traduziram nos"campos de reeducação" ou em campos de prisioneiros políticos, para onde eram enviados aqueles considerados inimigos do processo revolucionário em curso. Por fim, o"rapto" foi freqüentemente utilizado pela Renamo, movimento que se opunha ao regime socialista do partido Frelimo, e mesmo pelo exército governamental para engajar jovens do conflito bélico. A experiência de desterritorialização acompanha assim a memória de parte significativa da população moçambicana. Neste artigo sugerimos que tal experiência é percebida por aqueles que a viveram, particularmente no sul de Moçambique, como parte de um processo histórico mais longo que tem raízes nos conflitos que assolaram a região entre meados e fim do século XIX. Por outro lado, rapto e deportação são interpretados como mecanismos próprios de construção, pacificação e até mesmo eliminação daqueles indivíduos classificados como"inimigos", e que caracteriza a dinâmica social do sul de Moçambique.

Palavras-chave: Moçambique, campos, revolução, socialismo e pós-socialismo.



ABSTRACT

Through 17 years following independence, a great part of Mozambique population was object of forced dislocations, either resulting from the socialist regime specific developing projects or from repressive deeds, either resulting from the cruel civil war. Among the developing projects, there were large agriculture enterprises which aimed to concentrate the rural population of the country, or even massive deportation operations to faraway regions of individuals classified as"unproductive", who should be turned into rural labor force. Repressive programs sent thousands of people to"reeducation fields" or to political prisoners' fields, destined to keep those considered enemies of the revolution. Finally, Renamo (the movement against the socialist party Frelimo) and the government army frequently used practices of kidnapping in order to engage youngsters in the conflict. Therefore, significant part of Mozambican population has the memory of de-territorialization experience. This article suggests that such experience is perceived as part of a longer historical process that comes from the conflicts in the Southern part of the country in the 19th century. On the other hand, kidnapping and deportation are seen as mechanisms resulting from the construction, pacification and even elimination of those classified as"enemies" and which characterize social dynamics in the south of Mozambique.

Key-words: Mozambique, fields, revolution, socialism, post-socialism.



A"Operação Limpeza"

No dia 7 de novembro de 1974, foi desencadeada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), em conjunto com as forças portuguesas, a então denominada Operação Limpeza. 1 Grupos de militares bloquearam a então Rua Araújo e outras ruas, becos e praças do centro de Lourenço Marques, hoje em dia Maputo, com o propósito de deter"agitadores e marginais", afetando sobretudo as trabalhadoras do sexo que atuavam na região. 2 Ao final da operação, foram detidos 284 indivíduos, dos quais 192 eram mulheres e 92 homens; das 192 mulheres, 50 foram postas em liberdade e 142 foram transportadas em autocarros para destino não revelado sob escolta do Exército Popular de Libertação de Moçambique. Dos 92 homens, 42 foram postos em liberdade e os demais ficaram detidos na capital. 3 A esmagadora maioria das mulheres detidas, soube-se depois, foram enviadas para os campos de reeducação, localizados em regiões distantes da capital do país.

Desde os primórdios de Lourenço Marques, a Rua Araújo, antiga Rua dos Mercadores, na baixa da cidade, era conhecida como centro da boemia e das casas de tolerância. Nas primeiras décadas do século XX, e em meio ao processo de higienização e disciplinamento da cidade colonial, prostitutas negras e mulatas foram obrigadas a restringir seus serviços aos subúrbios de Lourenço Marques, enquanto prostitutas francesas, espanholas, portuguesas, inglesas e alemãs pareciam garantir aos abastados colonos um encontro com a civilização européia (Zamparoni, 1998, p. 354 e seguintes). Já pelos anos 50 e 60, e seguindo uma maior diversificação do tecido urbano e social laurentino, prostitutas brancas passam a disputar com negras e mulatas uma clientela diversificada de brancos das mais diversas origens – os"naturais" (brancos da terra), os portugueses ali estabelecidos, os sul-africanos que procuravam em Lourenço Marques a permissividade duramente castigada pelo recém-instalado regime do apartheid, marinheiros de distintas nacionalidades e, em número cada vez maior a partir de meados da década de 1960, os soldados ali deslocados em função da"guerra colonial".

Não deixa de ser significativo que uma das primeiras medidas implementadas pelo governo de transição, já sob a evidente batuta da Frelimo, tenha sido o cerco à prostituição e a atividades associadas à vida boêmia. Tratava-se do anúncio do caráter moral da revolução em curso: homens e mulheres deveriam ser trabalhadores exemplares, e a construção do socialismo passaria pela necessária eliminação dos inimigos e pela superação de comportamentos associados aos vícios do colonialismo e do capitalismo. Os guerrilheiros da Frelimo, na altura em via de se transformarem em membros de um aparato militar nacional, haviam entrado na cosmopolita e agitada cidade de Lourenço Marques fazia pouco tempo, e sua ação traduzia o firme propósito dos novos dirigentes de livrar a sociedade moçambicana de mazelas associadas ao mundo colonial, burguês e capitalista, rumo à construção do Homem Novo, que passava necessariamente por um processo de"reeducação", no interior do qual os indivíduos seriam introduzidos numa nova ordem. 4 Trabalho disciplinado, despojamento material, superação de antigas lealdades (étnicas, religiosas, de classe, de raça, regionais) e comportamento moral inatacável passaram a fazer parte deste ideal de Homem Novo, no qual todo o moçambicano deveria se transformar.

Nos anos que se seguiram a independência, a idéia da construção do Homem Novo passou a estar diretamente conectada a territórios excepcionais que eventualmente acabaram corporificando a idéia de"campo". Para os campos de reeducação iriam todos aqueles que, de uma forma ou outra, traziam consigo ou em si elementos da velha ordem que se desejava eliminar – régulos (autoridades tradicionais), feiticeiros,"comprometidos" (indivíduos sobre quem pesava a suspeita de algum tipo de compromisso com a antiga ordem colonial), prostitutas; para os campos de trabalho, todos os que deveriam passar por uma ressocialização marcada pelo trabalho em grandes campos de cultivo (machambas): sabotadores, inimigos, vadios. Em ambos os casos, estavam previstos, e foram realizados, cursos intensivos de"marxismo-leninismo". Para os distantes campos do Niassa, os inimigos ou a maioria daqueles que, em 1983, foram vítimas da Operação Produção – da qual falaremos mais adiante. E, por fim, a esmagadora maioria da população deveria ser concentrada em grandes machambas, ora organizadas não segundo parâmetros"tradicionais", mas a partir de uma cuidadosa análise"científica" da realidade camponesa.

O processo que presidiu a construção e o funcionamento destes campos, que existiram em Moçambique de 1975 até meados da década de 1980, quando a guerra se alastrou pelo país e inviabilizou sua existência, constituem ainda um desafio para cientistas sociais e historiadores. O propósito deste artigo é: (1) realizar uma primeira aproximação à dimensão e ao impacto dos campos na história recente de Moçambique; (2) estabelecer uma relação entre a experiência das distintas formas de desterritorialização forçada promovidas quer pelo Estado da Frelimo – na forma de deportações massivas aos campos de reeducação ou aos campos de trabalho e colonização – e a experiência do rapto, recorrente ao longo da guerra civil e geralmente associada à atuação do grupo antagonista, a Renamo, mas freqüentemente promovida pelo próprio Estado; (3) dotar as experiências de desterritorialização forçada de profundidade histórica, fazendo justiça aos depoimentos que as associam ao chibalo – trabalho forçado – ou ao trabalho escravo; (4) apontar para um questionamento das interpretações anteriores existentes sobre a formação do Estado moçambicano entre o período colonial e o revolucionário, procurando encará-lo em sua especificidade histórica: um Estado que se quer forte mas que o é na medida em que é fraco e, portanto, interage dinamicamente com as condicionantes locais de expressão do poder e da dominação, particularmente com elementos de ordem cosmológica, tais como a percepção dos inimigos, que devem ora ser pacificados, ora ser eliminados.

Nashingwea 5

Em inflamado discurso, Samora Machel recupera a experiência de Nashingwea na formação de um conjunto de práticas e idéias que marcariam os primeiros anos de Moçambique como país independente:

Política e militarmente foi forjada a unidade, a partir de um pensamento comum, consciência patriótica e de classe. Entramos em Nashingwea como Macondes, Macuas, Nianjas, Nyngues, Manicas, Shanganas, Ajauas, Rongas, Senas; saímos moçambicanos. Entramos como negros, brancos, mistos, indianos; saímos moçambicanos. Quando chegamos, trazemos nossos vícios e defeitos, egoísmo, liberalismo, elitismo. Nós destruímos estes valores negativos e reacionários. Nós aprendemos a incorporar os hábitos e os comportamentos de um militante da Frelimo. Quando entramos, temos uma visão limitada, pois conhecemos apenas nossa região. Lá, aprendemos a escala do nosso país e os valores revolucionários. Chegamos supersticiosos; no confronto entre a superstição e ciência, adquirimos o ponto de vista científico. Nós éramos desorganizados, suscetíveis ao rumor e à intriga, à corrupção, incapazes de analisar e interpretar os fenômenos. Lá aprendemos a viver de forma organizada, a interpretar corretamente a realidade e a agir. Com freqüência chegamos motivados só pelo ressentimento e ódio com relação ao opressor; saímos com uma clara definição do inimigo. É por isso que dizemos que Nashingwea foi o laboratório onde forjamos os moçambicanos. (Samora Machel, discurso realizado em Maputo no dia 5 de novembro de 1981). 6

Se a primeira pergunta que nos orienta gira em torno do porquê da opção pelo"campo" como lócus privilegiado de repressão, disciplinamento e, particularmente, formação de um determinado ideal de superação em Moçambique, nos colocamos diante da necessidade de investigar a tensão entre a história singular da Frelimo, da guerra de libertação e da opção socialista neste país e a construção de um aparato institucional que acompanhou processos revolucionários alhures – na União Soviética, na China e no Sudeste Asiático, na Europa Oriental e em Cuba. 7

Nashingwea constituiu uma fonte de inspiração para os acontecimentos ulteriores à independência de Moçambique, particularmente no que diz respeito à construção das machambas comunais. Quando quer que se mencione o ideal de auto-superação e de transformação pelo trabalho que caracterizou esse período pós-revolucionário, é Nashingwea, campo de treinamento estabelecido na Tanzânia nos anos 60, que surge uma e outra vez na memória dos revolucionários. Tratava-se de um campo de treinamento militar, mas muito mais do que isso: constituía a materialização de um ideal igualitário, expresso em rituais de passagem e no dia-a-dia do trabalho na machamba, nos trabalhos de manutenção do campo e no treinamento militar. Todos os que se dirigiam a Nashingwea deveriam passar por um tipo de ritual em que, numa espécie de catarse coletiva, narravam à coletividade o momento em que tinham alcançado a consciência da natureza da opressão colonial, como sujeitos ou objetos da exploração. 8 Concomitantemente, deveriam falar de sua terra de origem, de seus costumes, no sentido de construir uma identidade coletiva que deveria extrapolar os limites da"aldeia". Colocava-se à prova o desejo de deixar um determinado mundo para trás e embarcar na construção do Homem Novo, desafio que se reproduzia cotidianamente na machamba, na limpeza das instalações, no treinamento militar, no comportamento moral. Um laboratório do que deveria ser o porvir de Moçambique. 9

O depoimento de uma moçambicana branca que, voluntariamente, foi à Nashingwea é esclarecedor:

Há anos que fazia parte do grupo de moçambicanos que, do exílio, militávamos pela independência do nosso país. Passei por Portugal, pela Argélia, pela França e, por fim, consegui exílio político na Suécia. Cada uma destas passagens era difícil, pois sobre os brancos pesava constantemente a desconfiança de sermos informantes da PIDE, de não sermos realmente moçambicanos. Na Suécia, e após estudar o idioma com uma bolsa do governo sueco, consegui ingressar na faculdade de filosofia – isso quando já tinha passado o 25 de abril em Portugal, e quando era evidente que caminhávamos para a independência nacional. Foi então que o presidente Samora me chamou para Nashingwea – e não se recusava um chamado do Samora. (...) Fui para o setor feminino de Nashingwea. Eu era a única branca em meio a milhares de negras. Pensava que ali faria apenas treinamento militar para ajudar o meu país na revolução. Mas não, grande parte do tempo era dedicado à machamba. E para mim ficavam as tarefas mais duras do campo: eu tinha que limpar todas as latrinas, porque era branca. Às vezes, me desesperava. Logo me acalmava, e pensava que era o que tinha que fazer para provar que era realmente moçambicana.

Foi com base na experiência de Nashingwea, bem como com referências às ujumaa da Tanzânia de Julius Neyrere, que a Frelimo avançava e criava"zonas libertadas" e alcançou, por fim, todo o território nacional. 10 Malyn Newitt lembra que, logo no início da luta armada, quando a Frelimo controlava apenas zonas do território maconde e pequenos territórios no interior do Niassa – o que reunia uma população de cerca de 200 mil indivíduos –, os camponeses começaram a ser concentrados em aldeias comunais para"efeitos de proteção", ao tempo em que eram criadas cooperativas de produção e comercialização e montaram-se campanhas de educação e saúde (Newitt, 1997, p. 454).

Mas os altos quadros da Frelimo faziam parte de um amplo circuito internacional de indivíduos de diferentes países do mundo associados a distintas experiências revolucionárias. Parte deles passou por centros como Paris ou Roma, e ali, bem como em diversas outras metrópoles ocidentais, narrativas em torno da virtude dos campos em países socialistas eram propagadas por certos setores da esquerda ocidental. Outros foram treinados na Argélia, antes de se dirigirem para a Tanzânia, ou visitaram países socialistas controlados por um regime de partido único. Fica, assim, o desafio de compreender a construção de um modelo em torno do campo a partir de múltiplas influências e referências: de um lado, a experiência peculiar da Frelimo em Nashingwea; de outro, um universo de circulação internacional que acabava por conectar a excepcionalidade territorial do"campo" a uma espécie de"necessidade" colocada pela própria experiência revolucionária. 11

As machambas comunais, institucionalizadas nos anos que sucederam imediatamente a independência, tinham como propósito evidente promover uma sorte de modernização do país e de suas gentes. 12 Suas fontes de inspiração encontram-se em Nashingwea e em sua reprodução nas zonas libertadas ao longo da guerra de independência. Não é pouco relevante que, aos olhos de parte da população rural concentradas pela Frelimo nas novas unidades produtivas, as machambas comunais em muito se aproximavam dos aldeamentos promovidos pelos portugueses nos últimos anos de sua presença em Moçambique. Sob controle do exército colonial, os aldeamentos pretendiam não apenas controlar a população camponesa e evitar seu contato com os guerrilheiros da Frelimo, mas também materializar um imenso esforço de propaganda em torno da melhoria das condições de vida da população rural moçambicana levada a cabo pelo Estado colonial português em sua última década de presença no continente africano. O trabalho de Thomas H. Henriksen é claro ao contrapor as diretrizes postas em funcionamento nas zonas libertadas da Frelimo aos dos aldeamentos portugueses (Henriksen, 1983, pp. 143-170). No entanto, ambas as experiências terão um profundo impacto nas populações tradicionais submetidas às concentrações promovidas pelas machambas comunais, não apenas em função de suas virtudes – oferta de assistência médica, educação, experiência técnica e profissional aos agricultores etc. – mas, sobretudo, como conseqüência de seu caráter compulsório, de sua natureza disciplinadora e das inversões e impugnações que promove no que diz respeito ao universo social e hierárquico tradicional. Some-se ainda a escolha da Frelimo de, em algumas províncias, particularmente em Tete e no Niassa, construir as novas machambas comunais nos mesmos territórios dos aldeamentos portugueses (cf. Kaplan, 1984, p. 105; Borges Coelho, 1993).

Segundo Christian Geffray (1991), as machambas comunais estavam diretamente associadas ao marxismo que informaria integralmente a percepção do que deveria ser o desenvolvimento para o conjunto do país. 13 A dimensão ganha pela machambas comunais nas distintas regiões foi bastante diferenciada, assim como seu impacto junto às populações do país. Em 1982, das 1.352 machambas comunais, 543, ou seja, 40%, estavam concentradas na província de Cabo Delgado, ao passo que 260 (19% do total) encontravam-se distribuídas por Nampula. A sulista província de Gaza possuía cerca de 139 machambas comunais, um pouco mais de 10% do total. Das três províncias com maior número de machambas comunais, somente duas – Cabo Delgado e Gaza – concentraram parte substancial de sua população nestas unidades produtivas. Em Cabo Delgado, cerca de 45% da população total da província foi deslocada para as machambas, enquanto que em Gaza foram concentradas 17% da população total, o que representava 30% de sua população rural (Kaplan, 1984, p. 106). Segundo Geffray, no início dos anos 80, o crescimento das machambas comunais foi considerável, assim também como a constatação do seu fracasso, o que, por outra vez, acompanhava a nacionalização territorial da guerra (Geffray, 1991, p. 21).

As machambas comunais deveriam dispor de todo um aparato institucional, tais como hospital, escola, lojas do povo, cooperativa etc., mas não só: seu funcionamento dependia diretamente dos Grupos Dinamizadores (GDs) que, espalhados por todo o país, no campo e nas cidades, deveriam servir como instrumento de socialização política das massas, como elo de comunicação entre a população e as lideranças da Frelimo, bem como de vigilância junto aos potencialmente sabotadores funcionários do aparato estatal remanescentes da antiga burocracia colonial (Serapião & El-Khawas, 1979, pp. 146-147). Os GDs, inicialmente responsáveis por engajar a população no processo revolucionário, acabaram por ganhar um caráter cada vez mais associado à vigilância e ao controle da população, particularmente no que diz respeito a sua liberdade de circulação. 14 Entre as lembranças mais freqüentes com relação aos GDs por parte da população, a dificuldade para a obtenção das"Guias de Marcha" são os mais freqüentes. 15 Ainda segundo Geffray, o projeto das machambas comunais e sua progressiva institucionalização acabou por criar um verdadeiro sistema de vigilância da população, particularmente a população rural (Geffray, 1991, p. 21).

O trabalho comunitário em machambas não estava restrito apenas às populações rurais. Muitos citadinos tiveram que, em determinados períodos, dedicar-se ao trabalho na machamba, que podia localizar-se no seu próprio bairro residencial ou a alguns quilômetros da cidade, para onde se dirigiam em algum dia particular da semana a pé ou em caminhões do Estado. Assim, outras coletividades também passaram pela experiência de deslocamento espacial e, assim, a idéia do trabalho na machamba comunal como parte de uma experiência associada ao período socialista extrapola os grupos camponeses e é conseqüência direta de um ideal de trabalho igualitário e disciplinado. 16 O entusiasmo de John Saul diante de um determinado tipo de interferência na vida urbana é revelador do espírito de uma época:

Politização era uma prioridade igualmente premente nas áreas urbanas, especialmente numa cidade tão grande como corrupta como Lourenço Marques. Observando o processo pela primeira vez, não pude deixar de simpatizar com os cambojanos no afã de evacuar sua capital após a libertação! (Saul, 1979, pp. 86-87; grifos meus) 17

Inimigos, suspeitos, improdutivos e vadios

Acompanhando a institucionalização das machambas comunais, os campos de trabalho e reeducação constituem uma das marcas do que a população denomina de"tempo Samora". 18 Se a lógica do trabalho e a ruptura com lealdades anteriores instituem uma sorte de continuidade entre as machambas comunais e os campos, estes últimos se caracterizam fundamentalmente pelo caráter punitivo. 19 Trata-se de espaços para onde eram enviados os considerados"inimigos" ou potencialmente sabotadores do novo projeto socialista. Uma imensa gama de indivíduos podia ser objeto de um expediente punitivo que tinha como base a acusação e como conseqüência o confinamento, sem contudo qualquer tipo de regulamentação ou sequer definição do procedimento institucional que levava de um ao outro.

Embora a relação dos campos com o sistema legal moçambicano ainda não tenha sido objeto de nenhum estudo sistemático, o trabalho recente de João Carlos Trindade (2003) nos dá elementos suficientes para percebermos a tentativa de instauração de um novo marco jurídico-legal, uma institucionalidade basal que abarcasse o sistema de campos de reclusão dos mais diferentes tipos. Segundo este autor, em meio a um processo revolucionário que previa"a destruição de todos os vestígios do colonialismo e do imperialismo, para a eliminação do sistema de exploração do homem pelo homem, e para a edificação da base política, material, ideológica, cultural e social da nova sociedade" 20 , não apenas os sistemas de ensino ou saúde viram-se diretamente afetados pelas nacionalizações, mas também o sistema jurídico, que procurou acompanhar a transformação radical do aparelho do Estado. Nos meses seguintes à independência, destaca-se o Decreto-Lei n. 21/75 (11 de outubro), que criava o Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), a cuja direção são concedidos poderes excepcionais entre os quais o de"deter pessoas, determinando-lhes o destino que achar mais conveniente, nomeadamente o de as remeter à autoridade policial competente, aos tribunais, ou aos campos de reeducação" (Trindade, 2003: 106), e o Decreto n. 25/75 (18 de outubro), que transforma a Polícia Judiciária em Polícia de Investigação Criminal e a integra nas estruturas do Ministério do Interior, com o propósito de"evitar a dispersão da autoridade e garantir a coordenação e eficácia [...] de serviços públicos da mesma natureza exercendo fins idênticos" (ibid., p. 106).

Sabe-se que, em diferentes momentos, um complexo marco institucional atuou no que diz respeito ao envio e manutenção dos indivíduos nos campos. Complexo este marcado pela existência de cortes, pelos ministérios da Justiça e do Interior, pelos Tribunais Revolucionários, pela polícia secreta (SNASP), pelos Grupos de Vigilância Pública e pelos Grupos Dinamizadores. Devemos estar atentos, contudo, ao caráter eminentemente extrajudiciário associado à experiência dos campos, muitas vezes qualificado como excessos ou mesmo desvios. 21

Parece ser que, nos primeiros anos que se seguiram à independência, o que definiu a possibilidade de confinamento num campo de reeducação estava associado diretamente ao passado do indivíduo ou à lógica inquisitorial da"acusação" 22 . Os"comprometidos" 23 são um bom exemplo: no início, tratava-se de indivíduos que, entusiastas da independência ou da revolução, tinham alguma passagem comprometedora em sua trajetória individual anterior e deviam, de bom grado, dirigir-se para a"reeducação". Tudo leva a crer, contudo, que as"acusações" foram responsáveis por boa parte das deportações, e estavam diretamente associadas ao potencial anti-revolucionário do indivíduo ou ao seu comportamento moral. Assim, mulheres acusadas de prostituição e indivíduos acusados de feitiçaria, vadiagem 24 , alcoolismo ou compromisso direto com o antigo regime (o caso dos antigos régulos), podiam ser enviados para os campos de trabalho e reeducação 25 . Acusados ou suspeitos que possuíam nacionalidade portuguesa foram, geralmente, beneficiados com a expulsão do país, o célebre"20/24", objeto ainda de múltiplos comentários nos dias atuais, ou seja, 20 quilos, 24 horas: acusado de sabotagem ou atuação contra-revolucionária, o indivíduo deveria deixar o país com no máximo 20 quilos de bagagem e em menos de 24 horas. Aos moçambicanos, a acusação não deixava alternativa: levava diretamente ao campo.

Inimigos do projeto revolucionário foram diretamente enviados a campos de reclusão no distante Niassa. É o caso de Joana Simeão e Uria Simango 26 , capturados e presos ainda no período de transição. Ambos tinham passagens pela Frelimo e, nos anos que antecederam o 25 de abril de 1974 e nos meses que o sucederam, aproximaram-se de grupos que pretendiam ser uma alternativa ao movimento revolucionário em curso. Foram enviados para um campo de reeducação em outubro de 1975, com mais 3 mil indivíduos acusados de serem"inimigos" 27 , foram fuzilados em data e circunstâncias jamais esclarecidas. O episódio segue sendo objeto de especulações, comentários e rumores por parte de diversos setores da população até os dias atuais. O que fizeram ao longo do tempo que permaneceram no campo, o seu quotidiano, e o que levou a sua execução sumária, não se sabe.

Estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil indivíduos estariam concentrados em 12 campos de reeducação (Rinehart, 1984, p. 65; Tartter, 1984, p. 200; Howe, 1984, p. 283), número que cresceria nos anos subseqüentes. Em duas ocasiões, foram anunciadas cerca de mil detenções (Howe, 1984, p. 283), e em 1982, num expurgo realizado junto aos órgãos policiais moçambicanos, anunciou-se a suspensão de mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação (Howe, 1984, p. 280). Os centros de ensino e a universidade foram particularmente afetados pela crescente dureza do regime, e muitos estudantes foram também enviados aos campos. 28 Em 1983, a Faculdade de Direito foi fechada (Trindade & Pedroso, 2003, p. 297) e seis estudantes da Universidade Eduardo Mondlane foram condenados por atividades subversivas a 48 chibatadas cada um e em seguida enviados para a reeducação (Howe, 1984, p. 279). No início dos 80, praticamente todos as Testemunhas de Jeová estavam concentrados na reeducação (ibid.). 29

Mas será em 1983 que uma iniciativa alcunhada"Operação Produção" terá um imenso impacto junto à população, fazendo parte, até hoje, de inúmeros relatos e rumores. Desencadeada logo a seguir às decisões do IV Congresso da Frelimo (Maputo, 26 a 30 de abril de 1983), cujo lema foi Defender a Pátria, Vencer o Subdesenvolvimento, Construir o Socialismo, tratou-se de uma ação policial de natureza repressiva destinada a enviar para zonas rurais com baixa densidade demográfica, em particular ao Niassa, aqueles que, nas grandes cidades,"viviam na delinqüência, no ócio, no parasitismo, na marginalidade, na vadiagem, na prostituição". O propósito seria transformá-los em"elementos úteis, trabalhadores dignos, cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos, responsáveis merecedores de aceitação social ". 30 Os números de deportados para o Niassa oscilam entre 50 mil (Tartter, 1984, p. 201) e 100 mil pessoas (Howe, 1984, p. 277). Lá, concentrados em campos, deveriam machambar ao longo do dia e ter aulas de marxismo-leninismo no final da tarde. 31

Ao longo da Operação Produção, as redadas poderiam ocorrer a qualquer momento, quando as forças de segurança saíam pelas ruas e avenidas de Maputo e da Beira e solicitavam aos transeuntes comprovantes de trabalho, no caso dos homens, e de casamento ou trabalho, no caso das mulheres. Quando não podiam comprovar sua atividade ou seu status, eram confinados em caminhões, concentrados nas redondezas da cidade e logo, à noite, enviados nos aviões das Linhas Aéreas de Moçambique, ou em aviões militares, para o Niassa, ou em caminhões para distintos campos espelhados pelo país. Longe de encontrarem um campo organizado, eram entregues ao abandono, e indivíduos que muitas vezes nunca tinham tido nenhum contato com a vida rural, eram obrigados a fazer machamba, a construir sua palhota e as instalações comuns. 32 A fuga era impossível ou levava à morte certa: o Niassa é uma imensa e desabitada província, em grande parte coberta por selvas e terrenos inóspitos. Na atualidade, o retorno daqueles que há mais de vinte anos foram enviados para esta região ainda é notícia, e são inúmeras as histórias sobre os que foram devorados por leões, mortos por picadas de cobra ou vítimas da malária e outras doenças.

Dada a situação crescentemente precária do país, não se pode esperar que as condições dos campos fossem minimamente adequadas. Às crises na produção nos anos que sucederam a independência – que devem ser atribuídas não apenas ao fracasso econômico das machambas comunais, mas ao êxodo massivo dos portugueses e outros grupos associados a determinadas atividades profissionais especializadas e mesmo ao boicote e à sabotagem sistemática de antigos colonos – devem-se somar as condições climáticas, secas e enchentes que se sucedem e, sobretudo, a guerra que, inicialmente localizada, finalmente acaba por se espalhar por todo o país. A hostilidade da Rodésia de Ian Smith, da África do Sul do apartheid e de antigos colonos estabelecidos nestes países de fronteira foi decisiva para a formação de grupos de rebeldes que, denominados pelo regime de"bandidos armados", viriam a dar origem à Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) e a uma guerra que, até os dias atuais, resiste a interpretações gerais pelo caráter diverso e violento que assumiu em todo o território nacional. Em meio à crise, podemos imaginar não apenas o estado de abandono ao qual foram lançados os indivíduos enviados para os campos de trabalho e reeducação, mas também o caos que acompanhou o seu progressivo desmantelamento. Em entrevistas realizadas em Inhambane, os últimos dias do"campo" foram narrados com grande intensidade por aqueles que, subitamente, e após anos longe de sua terra natal, viam-se obrigados a lançar-se num caminho que, em meio à guerra, poderia durar meses. 33

Uma mesma pergunta caberia aos que foram confinados nos campos, os que garantiram o seu funcionamento e os habitantes de suas redondezas: qual a percepção que tinham do que realmente estaria acontecendo? E aqui pretendemos estabelecer um diálogo com a percepção de Günther Schlee sobre os conflitos numa região localizada entre a Etiópia e a Somália (Schlee, 1998, p. 200). O etnólogo procura demonstrar como um mesmo conflito admite múltiplas interpretações em função do interlocutor e que, no limite, sua inteligibilidade local escapa completamente à visão que dele têm as lideranças ou representantes do Estado-nação. Assim, um conflito que surge associado à idéia de"movimento de libertação nacional" pode traduzir uma outra conflitualidade que ganha inteligibilidade numa lógica de linhageira, numa disputa envolvendo terras ou água, em acusações de feitiçaria ou mesmo no simples desejo de um indivíduo de se apropriar de bens alheios. Estamos convictos de que muitos dos que foram enviados aos campos, na condição de acusado ou de funcionário, não compreendiam o que estava ocorrendo como parte de um processo"revolucionário", mas sim como algo que fazia parte de ciclos de suspeitas e acusações cujo significado último é absolutamente local. Da mesma perspectiva, interessa compreender a forma como os camponeses da região onde eram instalados os campos compreendiam aquela inédita situação.

Os rumores sobre aqueles que foram enviados aos campos, e os relatos que pudemos recolher, salientam que se trata de pessoas marcadas, que não conseguiram recuperar efetivamente a vida anterior a esta experiência que passou a fazer parte de sua própria identidade social, algo semelhante ao que Michael Pollak (1990) percebe em seu trabalho sobre a memória dos que passaram pela a experiência concentracionária. A reconstrução de sua identidade pessoal e social passa pela referência ao campo: os que foram enviados para os campos destacaram-se da sociedade e passaram a carregar uma marca corporal, pois para o campo levaram apenas aquilo que lhes é irredutível: seu corpo biológico. 34

Histórias e rumores

Os campos de reeducação, de trabalho ou de prisioneiros já não existem em Moçambique, assim como tampouco as antigas machambas comunais, boa parte abandonada ou transformada em localidade. Assim, uma aproximação de tipo etnográfica clássica é impossível. No entanto, os campos se fazem presentes no quotidiano de seus habitantes na forma de histórias, lembranças e, sobretudo, rumores. Ter passado por um campo de reeducação, ter sido objeto da Operação Produção, constitui, sem dúvida, uma marca. Sempre que manifestamos o interesse pelo assunto, entre os mais distintos grupos sociais, a referência a fulano ou sicrano que teria passado parte de sua vida confinado é constante. Todos conhecem alguém que passou por um campo, e isso se expressa em sugestões como"você deve falar com sicrano, ele esteve no Niassa, na época da operação produção";"você conhece fulana? Ela esteve na reeducação".

Foi em Homoíne, capital do distrito do mesmo nome, na província de Inhambane, que ficamos sabendo que para Chichinguire, onde se estabeleceram oriundos da antiga luta de libertação nacional, foram enviados indivíduos para a reeducação. E foi lá também que soubemos que a localidade de Inhassune, a cerca de 50 quilômetros, fora fundada a partir de remanescentes da Operação Produção que lá permaneceram. Localizada entre Panda e Inharrime, num terreno claramente inóspito para a agricultura familiar e portanto com baixa densidade populacional, Inhassune se assemelha a inúmeras localidades de beira de estrada, com seu mercado vibrante, algumas casas de alvenaria cercadas de palhotas, alguns estabelecimentos para venda de bebidas, capulanas e outros produtos como óleo, sal, açúcar e sabão, e muitos pontos vendendo milho, arroz, amendoim, caju, mandioca, batata, peixe seco... Caminhar pelas searas do mercado pode nos levar ainda a pontos mais escondidos, onde encontramos carne de caça – supostamente proibida, mas evidentemente tolerada –, o marcado de bebidas alcoólicas tradicional ou mesmo produtos usados por curandeiros e feiticeiros.

Quando chegamos a Inhassune, e sem saber ao certo como abordar a origem da localidade, nos dirigimos à primeira barraquinha, logo à entrada do que seria o mercado. Como é recorrente, fomos recebidos com curiosa simpatia. Manifestei interesse por adquirir algumas capulanas, sempre um bom pretexto para dar início a uma conversa, e perguntei à senhora da barraquinha se ela era da região. Rapidamente ela me respondeu:"não, vim para cá com a Operação Produção". Mais uma vez me deparei com a extraordinária disponibilidade para a narrativa por parte dos moçambicanos. Ao contrário do risco de não conseguir informações – risco para o qual fora advertido inúmeras vezes, quer por parte de colegas que imaginam a dificuldade de ter acesso a um relato evidentemente traumático, quer por parte das elites de Maputo, que insistem na existência do silêncio em Moçambique – dona Esther, assim se chamava, escancarou seu"antes" e seu"depois", e se ofereceu para me apresentar aos remanescentes da Operação Produção que permaneciam em Inhassune.

Em outras ocasiões em Inhassune, pudemos nos reunir com Dona Esther e sua filha – Dona Esther é uma espécie de líder local e a ela se atribui a fundação da localidade e, sobretudo, do mercado que lhe dá sentido hoje em dia – e com o senhor Lapso Navane (também fundador do mercado), senhor Moisés, senhor Luis Magakagaka e senhor Carlos Xintanica. Recuperarei aqui alguns termos das diversas conversas que tive com eles, sempre numa das barraquinhas de dona Esther, com refrigerantes, às vezes vinho ou cerveja, sanduíches de ovo, milho e batata doce. Nesta apresentação não recuperarei a história de vida de cada um deles, apenas algumas passagens que, na conversa coletiva gerava uma aprovação geral da platéia, comentários ou gestos de desgosto com relação aos agentes do governo, ou àqueles que eram responsabilizados por seu engajamento na Operação Produção.

Dona Esther e senhor Moisés atribuíram à inveja o fato de terem sido enviados à Inhassune. Dona Esther era uma próspera comerciante na Maxixe, tinha várias barraquinhas no início dos anos 80, e tinha dois filhos, embora não fosse casada. Segundo Dona Esther, o fato de ter filhos sem estar casada foi utilizado por aqueles que tinham inveja de sua prosperidade, ela foi acusada de prostituta. O pai dos seus filhos assumiu apenas a paternidade do rapaz, e a menina, que na altura tinha cerca de cinco anos, foi enviada num caminhão junto com a mãe a um lugar inóspito, onde não havia nada além dos militares da Frelimo que cercavam a zona, já naquele momento atacada constantemente pelos chamados bandidos armados. Senhor Moisés era de uma localidade costeira de Nhassoro, tinha três redes e seis empregados, duas mulheres e dez filhos, e chegou mesmo a ser chefe de bairro: foi denunciado como improdutivo por aqueles que se queriam fazer com sua redes e seus barcos, e enviado para Inhassune. Não voltou a ver sua família. No momento, não quer dinheiro, não quer nenhuma forma de indenização: disse querer um agradecimento, pois vive como se tivesse uma ferida aberta. Dona Esther afirmou mais de uma vez que quer reconhecimento: um documento oficial, dizendo pelo que passou, pois não quer voltar a ser raptada e deportada mais uma vez no futuro.

Senhor Carlos era de Mabote, região interior distante. De Mabote foi para a Maxixe, onde havia um escritório da Wenela, empresa que controlava o contrato dos mineiros que iam para a África do Sul. Foi quando teve a necessidade de renovar seu registro civil, e pegou um barquinho para ir à capital da província, Inhambane, e lá estava quando teve início à Operação Produção. Os grupos dinamizadores e autoridades locais comunicaram que todos os bairros deveriam enviar um número determinado de improdutivos. Como ele era de fora, matswa, um estrangeiro, foi acusado de improdutivo. Se no caso de Dona Esther e senhor Moisés a"inveja" foi a explicação, no caso de Carlos, o termo usado foi"tribalismo". Afinal, ele era um trabalhador, já havia ido à África do Sul, e deixara mulher e filhos em Mabote – os quais acabaram por ser seqüestrados e mortos pela Renamo. Segundo o senhor Moisés:"fui raptado sem julgamento; e trabalhei como escravo durante anos, sem esclarecimento e sem vencimento". O Senhor Magakagaka também atribuiu ao tribalismo seu rapto pelo governo. Curandeiro, ia e vinha constantemente da África do Sul. Também estava fora de sua terra, de suas alianças, de seus amigos, parentes e xarás. Bastava não ser conhecido para ser suspeito, bastava ser suspeito para ser acusado.

O senhor Lapso possui uma deficiência visual provocada na guerra do Ian Smith: combateu junto com a Frelimo no Chimoio e no Zimbábue, e também estava em Inhambane quando foi denunciado. De nada lhe serviu ter documentos militares, pois não possuía documentos de trabalho: segundo Lapso, o governo ofendeu a liberdade e a tranqüilidade.

Todos eles fizeram parte dos cerca de 375 indivíduos que foram concentrados e permaneceram durante anos em Inhassune. Quando lá chegaram não havia nada, dormiam ao relento, eram vigiados pelos militares e mal tinham o que comer – viviam basicamente de folhas de cacana, bananas e comiam cinzas. Tiveram que construir suas casas e começar a plantar roça para comer, mas não só: Inhassune se transformou numa verdadeira empresa estatal, que, nos seus termos, funcionava como no tempo colonial, na base do chibalo, regime de semi-escravidão, na base da bofetada e da ameaça constante dos militares e de alguns comandantes cruéis. Chegaram a plantar algodão, milho, girassol, abóboras, mandioca, feijão e batata, mas nada ficava com eles: os caminhões do Estado vinham e levavam tudo. Segundo eles, muitos mulatos da Maxixe e de Inhambane também foram concentrados ali, mas todos morreram de fome: os mulatos, ou mistos, constituem um grupo fundamentalmente urbano, não possuindo nenhuma memória do trabalho na machamba.

As associações não eram apenas com o chibalo, e muitos falaram em escravidão, mas de um tipo peculiar:

-Éramos como escravos...
-Escravos?
-É verdade. Pior que chibalo. Não sabíamos quem era o patrão. Escravo tem dono, no chibalo tem patrão. Éramos escravos sem dono.

Muitos morreram nos ataques da Renamo. E então me lembrei da história de Belinha, que me foi contada em Inhambane. A bela mulata foi acusada de prostituição, e enviada para a reeducação, cerca de Homoíne. Lá aprendeu a plantar e conseguiu sobreviver à fome, sendo morta, após dez anos de confinamento, no massacre de Homoíne, responsável pela morte de cerca de quinhentos indivíduos em apenas um dia, em julho de 1987.

Assim, em Inhassune e Homoine voltei a me encontrar com histórias de guerra, de deportações e seqüestros, que já havia escutado no Chimoio e em Inhambane. Como a história do senhor Alberto, que foi enviado com toda a família para o Niassa, onde permaneceu por quase uma década, tendo que fugir quando a guerra tornou inviável a permanência do campo. Ou a história de dona Madu, indiana que permaneceu por três anos no mato raptada pelos bandidos armados, e conseguiu escapar em meio a um bombardeio e voltou para a sua cidade com o filho de um guerrilheiro.

Mas são muitas as histórias de raptos, deportações e seqüestros, geralmente contadas com certa tranqüilidade, e diante de uma platéia que acompanha com atenção a história. Uma profusão de narrativas que nega a imposição do silêncio, que parece vir das elites moçambicanas, ou mesmo dos intelectuais, na forma de:"eles não vão contar". Em Moçambique nos deparamos com um cenário oposto ao de outros contextos de pós-guerra: não há uma fala oficial, e a enunciação de um debate público parece constituir uma ameaça de retorno à guerra. Não há um comitê de verdade e reconciliação, ou uma associação dos antigos deportados... Os sobreviventes ou voltaram para as suas aldeias e cidades, ou permaneceram nos locais para onde foram levados, negando a possibilidade de reatar o fio perdido de sua vida anterior. E aí, nos bairros, nas localidades, nas vilas, encontramos tudo menos o silêncio. São novamente as histórias de guerra que se impõem, numa naturalidade desconcertante para o antropólogo. É quando percebemos que estamos conversando com gente, que além de histórias para contar, parecem ser portadores de outras histórias, as histórias de seus antepassados que, diga-se de passagem, convivem com eles no presente, enviando sinais, exigindo presentes, retribuições ou vinganças.

E aí raptos e seqüestros nos levam a experiências antigas, que passam pela guerra do Gugunhana e pelos exércitos formados por cativos, ou para a escravidão para as ilhas do Índico, que alcança a primeira década do século XX; ou para as deportações em massa promovidas pelos colonizadores portugueses, sedentos de terras para o estabelecimento de colonos ou para empresas agrícolas; os mesmo colonizadores que faziam uso do chibalo, ou trabalho forçado, lembrado por todos os meus interlocutores como análogo ao trabalho exigido pela Frelimo.

A explicação última para o sofrimento de alguém, contudo, não se esgota na atuação arbitrária do governante, seja ele o Gugunhana, o Estado colonial ou o Estado da Frelimo, ou mesmo os guerrilheiros da Renamo. São as disputas locais, que envolvem vivos e mortos, autóctones e estrangeiros, ciclos de feitiçaria e conflitos ditos tribais, que fazem eco aos desejos de um Estado central, que se apropria de formas institucionais normalmente associadas a estados totalitários, mas que encontra sua força justamente na sua fraqueza, e na sua rendição às formas locais de disputa e reprodução do poder.

Aceder a esta dinâmica exige atenção a estas histórias, muitas vezes fragmentárias e expressas na forma de rumor. Nossa experiência no terreno fez com que desconfiássemos de narrativas altamente estruturadas, geralmente construídas tendo em vista o que o nosso interlocutor acredita que queremos escutar, quase que seguindo um modelo e perseguindo a revelação de uma tragédia pessoal. É na forma de conversas, histórias fragmentárias e rumores que encontraremos peças preciosas a nos indicar o funcionamento e a dinâmica dos campos. Rumores que nos indicam as representações sobre as estruturas repressivas, sobre as transformações pelas quais passou o país, sobre a natureza do socialismo e sobre as relações entre indivíduos e famílias de diferentes estratos sociais no interior dos campos. É no rumor, fragmentado, sem pretensão de coerência, e sem o compromisso com a sedução do interlocutor – que encontraremos um dos elementos centrais desencadeados pela instauração dos campos: ciclos de vingança, suspeitas e acusações, ferramentas continuamente presentes na tessitura da instabilidade e da insegurança sentida aguda e cotidianamente por diversos grupos vulneráveis em Moçambique.

Notas

1 Nesse período, Moçambique estava sob o governo de transição, que tomara posse no dia 20 de setembro de 1974, após semanas extremamente turbulentas. O governo de transição contava com um alto-comissário português (Victor Crespo) e com um primeiro-ministro de Frelimo (Joaquim Chissano). A independência política de Moçambique com um governo da Frelimo foi no dia 25 de junho de 1975 (cf. Souto, 2007).
2 Jornal Notícias, Lourenço Marques, 08/11/1974, p. 14.
3 Jornal Notícias, Lourenço Marques, 09/11/1974, p. 5.
4 Sobre a concepção de"Homem Novo" em Moçambique, ver, entre outros, Geffray (1991).
5 Os dois próximos itens deste artigo foram trabalhados da perspectiva da inserção da experiência dos campos no universo da cooperação internacional em Thomaz (2007).
6 Machel (1985, p. 196-197).
7 No momento está em curso um levantamento sistemático da bibliografia histórica e sociológica existente sobre a experiência dos campos em diferentes países. Saliente-se, contudo, que, com exceção da União Soviética e de alguns países da Europa do Leste, em particular a Bulgária, a bibliografia é escassa. Chama atenção a bibliografia de natureza"confessional", particularmente para o Sudeste Asiático, com pouco interesse para o tipo de trabalho que pretendemos realizar. Cf. Stien (1993); Thanh (1994); Vu (1988).
8 São várias as referências a este momento quase que transcendental entre os que passaram por Nashingwea (entrevistas pessoais). A partir do relato de Daniel Mbanze, Vice Ministro do Interior no primeiro período pós-independência, Barry Munslow afirma:"In the first Frelimo camp at Bagamoyo, Tanzania, endless discussions took place. Each recruit spoke about his personal experience of colonial oppression and exploitation in his home of origin, and also of the culture and traditions of his people. In this way people were able to pool their knowledge and gain an over-all view to fight in different parts of the country, then they had to understand and win the support of the people wherever they were operating (Munsolw, 1983, p. 88).
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Nashingwea não foi a única instituição vinculada aos movimentos de libertação nacional moçambicanos, prematuramente reunidos sob a bandeira da Frelimo, instalada na Tanzânia. A tendência socialista de Julius Nyerere foi particularmente favorável à Frelimo, e permitiu o estabelecimento de outras organizações, das quais destacamos o"Mozambique Institut", em Dar es Salam, à espera de um estudo detalhado, sobretudo em função dos conflitos internos da Frelimo, que ali encontraram eco no final dos anos 1960 (cf. Munslow, 1988).
10 Sobre a ujamaa como projeto, ver Nyerere (1968, pp. 337 e seguintes). Sobre os resultados produtivos da implantação da Ujamaa, ver Stein (1979). Devemos salientar que a proposta de Nyerere opunha-se ao que o dirigente africano chamava de"teologia do socialismo", socialismo produto de uma"doutrina verdadeira", canônica. Da sua perspectiva, o socialismo deveria existir para além dos conceitos marxistas-leninistas, e assim poder-se-ia buscar um"socialismo africano" que não teria como ponto de partida a experiência européia. A idéia de um"socialismo africano" de tipo"não-científico", e que teria por base a experiência, história e singularidades africanas, teria profundo impacto na Gana de Nkrumah, no Egito de Nasser, e na Argélia, Guiné-Conacry, Somália, Madagascar, Tunísia e Mali. Numa outra direção, Moçambique foi o primeiro país africano a afirmar sua filiação ao marxismo-leninismo. Assim, devemos enfatizar que a experiência das ujamaa na Tanzânia foi profundamente distinta daquela levada a cabo pela institucionalização das machambas comunais em Moçambique (Serapião & El Khavas, 1979, pp. 138-139). Para o debate em torno do caráter"nacional" da experiência socialista na Tanzânia, cf. Saul (1979)."It was in this training camp that Frelimo first introduced collective production methods, and the army was to be at the forefront of their later implementation in the liberated zones. The seeds of Mozambique's future progressive development strategy were to be found here. But the importance of the camp was more than just this. As Samora Machel later commented: 'When we arrived here in 1964, we came divided, and it was the unity which we managed to obtain here that permitted us to win Mozambique'." (Munslow, 1983, p. 89).
11 Nas resoluções sobre a justiça da"Ofensiva Política e Organizacional Generalizada na Frente da Produção", por ocasião da 8 ª sessão do Comitê Central da Frelimo, reunida em Maputo em fevereiro de 1976, afirmam-se explicitamente três itens a orientar a reestruturação jurídica do país: (a) as experiências da luta de libertação nacional; (b) as experiências da luta de classes; (c) as experiências revolucionárias de outros povos (apud Trindade, 2003, p. 107).
12 Já em marcha nos anteriores à independência nas zonas liberadas, as machambas comunais também ganham institucionalidade na"Ofensiva Política e Organizacional Generalizada na Frente da Produção". Entre as resoluções aprovadas, o item sobre as aldeias comunais"estabelece um conjunto de princípios a respeitar no processo de estruturação, estabelecimento, organização da produção e do trabalho, bem como as condições a observar na (sua) implantação" (Trindade, 2003, p. 107).
13 Geffray esteve, ao longo dos anos 80, envolvido num intenso debate sobre a guerra em Moçambique, no qual este autor defendia fundamentalmente suas causas internas (cf. Geffray, 1991).
14 É importante lembrar que, num primeiro momento, os GDs foram não só bem recebidos, como interpretados como indispensáveis no interior de um projeto efetivamente socialista que fosse capaz de prescindir da militarização e a burocratização. Segundo Luís de Brito, os GDs foram responsáveis pelas primeiras experiências de"participação popular" na vida política do país, sobretudo no que diz respeito à libertação da palavra, em especial no período que vai de 1974 a 1979 (Brito, 181). O entusiasmo do intelectual canadense John Saul em sua experiência em Moçambique no período que sucedeu a independência diante da atuação dos GDs é reveladora deste estado de espírito (cf. Saul, 1979, p..85-86).
15 Para ir de uma localidade a outra, sair de qualquer cidade ou visitar um parente, os indivíduos necessitavam de uma autorização especial, denominada de"guia de marcha". Sua obtenção dependia de uma solicitação ao GD, que podia demorar vários dias ou semanas para concedê-lo. As associações entre os guias de marcha e formas de controle de movimentação da população"indígena" ao longo de boa parte do período colonial são constantes (entrevistas realizadas no Chimoio, em 1997, e em Inhambane, entre 2001 e 2004).
16 Em Inhambane, em pesquisa de campo realizada em diferentes períodos entre 2001 e 2004, indivíduos da coletividade indiana hindu, geralmente vinculados a atividades comerciais, fizeram referências a períodos em que deviam dedicar um ou dois dias da semana ao trabalho na machamba do Estado, para onde se dirigiam em caminhões. Em Maputo, várias narrativas fazem referência ao trabalho em machambas que, localizadas nos bairros de residência ou nos arredores da cidade, estavam sob controle dos GDs. Negar-se a realizar este tipo de trabalho podia ter várias conseqüências, da acusação de sabotagem ou de"inimigo do povo" às chibatadas, prática colonial reintroduzida pelo regime no início dos anos 80. A Lei nº 5/83 de 31 de março introduz a pena de chicotada para punir autores, cúmplices ou encobridores de crimes graves consumados, frustrados ou tentados (Trindade, 2003, p. 111).
17 Para Saul, e seguindo o pensamento das lideranças da Frelimo, particularmente Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos, o campesinato deveria ser a força motriz da revolução africana (Saul, 1979, pp. 313 e ss.).
18 A partir de diferentes pesquisas realizadas entre as regiões centro e sul do país, procurei interpretar as narrativas em torno do"tempo" e das"transformações" como representações coletivas cruciais para a compreensão de um sentido de pertença (Thomaz, 2002).
19 Nos campos ou nas machambas comunais, os indivíduos deveriam"nascer de novo", por meio do trabalho disciplinado a partir de rigorosos princípios científicos e pelo abandono de suas lealdades anteriores, familiares, religiosas, étnicas, de classe etc. No caso das machambas comunais era decisivo, assim, afastar os camponeses de suas terras tradicionais, geralmente ligada ao culto aos antepassados.
20"Decisões do Conselho de Ministros" in Boletim da República, I Série, n. 15, de 29 de julho de 1975 (apud Trindade, 2003, p. 97).
21 Ao contrário de um certo lugar comum existente entre certa intelectualidade de"esquerda" que combina a idéia de"necessidade" com a complacência do"excesso", exploraremos a noção de campo como algo sistêmico de um certo tipo de regime político. Procuramos escapar, assim, daquilo que Hannah Arendt percebe como um"fascínio" pela idéia de"necessidade" como forma de explicar a arbitrariedade (Arendt, 2004, p. 91).
22 As referências aos campos de reeducação aparecem aqui e acolá, em textos de diferentes matizes ideológicos e na memória dos moçambicanos. O jornalista José Pinto Sá foi responsável por uma reportagem que teve um impacto razoável em setores da sociedade portuguesa. Recentemente, e na tentativa de recuperar o período da mal denominada descolonização, temos a sistematização de uma certa memória por parte de indivíduos das forças armadas portuguesas (cf., entre outros, Bernardo, 2003) e daqueles portugueses politicamente imbricados com o processo político de transição (cf. Almeida Santos, 2006a e 2006b).
23 Categoria vaga aplicada em diferentes circunstâncias e momentos. No início, vários intelectuais ou profissionais que teriam tido alguma sorte de intimidade com o regime colonial foram classificados como"comprometidos" e deslocados por um período determinado para a reeducação, geralmente em campos em províncias distantes, onde deveriam machambar e ter aulas de marxismo-leninismo. Em outros momentos, os acusados de serem comprometidos com o regime anterior, eram obrigados a fazer um mea culpa público – que se aproximava, em grande medida, aos rituais iniciáticos de Nashingwea – antes de serem enviados para a reeducação.
24 A categoria vadiagem inicialmente sugere a idéia de"vagabundagem" ou"desocupação"; contudo, determinados comportamentos associados à sexualidade podem enquadrar-se em língua portuguesa nesta categoria.
25 Curiosamente, membros das antigas"tropas negras" coloniais – um imenso contingente africano integrado ao exército colonial – parecem não ter sido sistematicamente enviados aos campos (ao contrário daqueles que teriam colaborado com a antiga polícia política portuguesa). Em 2002 tivemos a oportunidade de realizar uma longa entrevista com o senhor Jeremias, em Inhambane, antigo"tropa" português que não foi submetido a nenhum tipo de confinamento, mas simplesmente perdeu qualquer possibilidade de conseguir um emprego e foi"esquecido" no subúrbio da cidade. Segundo João Paulo Borges Coelho,"estigmatizados por uma nova sociedade politicamente muito coesa e definida, estes moçambicanos reintegraram-se, silenciosamente, no tecido social da região ou atravessaram fronteiras em busca de outros lugares" (Borges Coelho, 2003, p. 195).
26 O trabalho de Barnabé Lucas Ncomo (2004) constitui uma das poucas tentativas, claramente ideológica e num contexto marcado por uma disputa surda não menos ideológica, de enfrentar o desaparecimento de Uria Simango e de outros que, como Joana Simeão e Lázaro Nkavandame, foram detidos ainda no período de transição e enviados para um campo de reclusão no Niassa.
27 A estimativa de 3 mil indivíduos é citada por Rinehart (1984, p. 61).
28 É John Saul novamente a celebrar a interferência do Estado revolucionário nas instituições de ensino, particularmente na Universidade Eduardo Mondlane, nos meses que sucedem a independência:"Even at the university – most hierarchical and deeply colonized of inherited institucions – the 'grupos' iniciative was in train, throwing up, in addition, a new kind of structure for the faculty boards. From now on the latter are to be constituted by three representatives from the teaching faculty, three from the students, and three from the staff (typists, cleaners, etc.) – the dean to be chosen, in turn, from that number. Seven years spent teaching in an African university helped me to realize how startling a beginning it was" (Saul, 1979, p. 87; grifos meus).
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Destaque-se que a Frelimo, como partido de vanguarda marxista-leninista, em princípio não possuía boas relações com as lideranças de nenhuma das religiões existentes no país. No entanto, as relações eram muito diferenciadas, e se a Igreja Católica e seus quadros viram-se afetados pelas nacionalizações do ensino e da saúde e foram sistematicamente acusados de colaboracionismo com o antigo regime, as confissões protestantes e os muçulmanos vangloriaram-se muitas vezes de suas predisposições anti-coloniais e anti-lusitanas. No caso dos muçulmanos, especula-se inclusive sobre a simpatia de seus líderes para com Samora Machel e sobre alguma medida de reciprocidade (cf. Macagno, 2004). Não há notícia, contudo, de expurgos em função da fé religiosa, com exceção das Testemunhas de Jeová, como conseqüência de sua recusa em prestar o serviço militar, jurar a bandeira e gritar"viva a Frelimo".
30 Preâmbulo da Lei n. 7/83 de 25 de dezembro de 1983 (apud Trindade, 2003, p. 111). Curiosamente, João Carlos Trindade, fazendo referência à natureza que estas e outras resoluções do Partido e do Estado, salienta que, apesar de suas"retas intenções", ter-se-ia produzido muitas"vítimas inocentes", ao que supõe a existência de"culpados" (cf. ibid.).
31 Dados obtidos a partir de entrevistas.
32 A idéia de"abandono" sugere, certamente, uma aproximação aos campos de trabalho soviéticos – distintos dos campos de trabalho nazistas, caracterizados pelo extermínio associado a uma lógica burocrática e rigorosa"organização" (cf. Arendt, 1990, p. 348). Recentemente, a jornalista Anne Applebaum insiste nos longos períodos de absoluto caos e abandono que teriam caracterizado os gulags na União Soviética (2004).
33 É impossível não pensarmos em A trégua de Primo Levi (1997), onde recupera o dia-a-dia do"retorno" (como retornar para o que já não existe?) dos remanescentes dos campos de concentração nos anos que sucederam a II Guerra.
34 O"campo", a excepcionalidade que supõe, os mecanismos extrajudiciários que definem seu caráter administrativo, constitui o espaço por excelência de uma relação quase que direta, sem mediação, entre o Estado e o indivíduo, despossuído de seus laços familiares e afetivos, arrancado de sua identidade social e posto diante daquilo que constitui o limite da sua humanidade: o seu corpo biológico (cf. Agamben, 2004, pp. 125 e ss).

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Recebido em agosto de 2008.
Aceito em dezembro de 2008.

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