EGÍDIO VAZ EM GRANDE
ENTREVISTA AO CANALMOZ E CANAL DE MOÇAMBIQUE
Partido Frelimo
entrou na estratégia política da sobrevivência
“Não foi o
partido Frelimo que trouxe a independência. Isso que fique claro! Quem trouxe a
independência foi o movimento de libertação aglutinador de todos os
anti-colonialistas. O partido Frelimo não trouxe a independência, porque quando
foi criado já estávamos independentes” – historiador Egídio Vaz
“O
açambarcamento do património histórico [a usurpação do acrónimo da Frente de
Libertação de Moçambique – FRELIMO – pelo partido Frelimo], dos despojos da
vitória, é típico porque naquela altura todos aqueles que podiam reivindicar
não estavam lá na sala. Estavam devidamente marginalizados, acantonados. Estava
tudo preparado ao detalhe. Urias Simango estava preso, Kavandame estava preso,
os outros tinham fugido por temerem ser mortos e por aí fora” – Egídio Vaz
“Existem
obstáculos ao processo da rescrição da história que não está a ser rápido
porque existem obstáculos. Os grandes actores da história recente de Moçambique
ainda estão vivos e no poder. Não está no seu interesse fragilizar esse poder e
minimizar os seus ganhos políticos. Mas, pouco a pouco, a biologia vai se
encarregar de tomar conta do homem. Pouco a pouco, vai-se abrindo espaço para
que novas ideias e novas interpretações tenha lugar” – Egídio Vaz
Maputo (Canalmoz) - Egídio Vaz
é dos poucos historiadores moçambicanos a viver em Moçambique que não está ao
serviço do Partido Frelimo. É um académico com enorme potencial reconhecido por
não se deixar intimidar pelo partido no poder. É um moçambicano jovem, com
ideias próprias, conhecido por não se deixar vergar perante as típicas
intimidações de quem usa sistematicamente o Estado para excluir os outros
moçambicanos que assumem a sua moçambicanidade e não admitem ser excluídos
pelos seus iguais. Egídio Vaz falou ao Canalmoz – Diário Digital e ao Canal de
Moçambique – Semanário, em Grande Entrevista. O tema foi, é, a celebração dos
50 anos da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) que o historiador
distingue do Partido Frelimo constituído a 03 de Fevereiro de 1977.
Egídio Vaz começou logo por
pôr os pontos nos iis. Diz que não é o partido Frelimo que faz 50 anos, mas,
sim, a Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO. Para ele são duas
entidades completamente distintas.
No desenrolar da conversa, o
académico alerta para o perigo da privatização da História de Moçambique pelo
Partido Frelimo e sugere que a História deste país deve ser reescrita.
Entretanto, defende que há condições para tal e é peremptório: para que a
história se reescreva, deve ser removido um obstáculo que impede o avanço da
história: os libertadores.
Siga o essencial da entrevista…
Canalmoz / Canal de Moçambique
(Canal): Enquanto uns estavam mergulhados na epopeica celebração dos 50 anos da
FRELIMO, Egídio Vaz foi o único historiador que apareceu em público a contestar
a idade da Frelimo. Escreveu na sua página do Facebook que o partido Frelimo
não tem 50 anos, mas, sim, 35 anos. Quais são os fundamentos?
Egídio Vaz: Aqui há duas formas de ver o mesmo problema. A primeira
é o actual partido Frelimo como uma continuação do movimento de libertação. A
outra forma é, munido de uma cultura jurídica concreta e de um pouco de
conhecimento da ciência política, ver-se o que aconteceu em 1977. Em 1977,
portanto, no seu III Congresso, de 3 a 7 de Fevereiro de 1977, aqui em Maputo,
no Clube Militar (actual Cinderela School), a então cúpula dirigente do
movimento de libertação decidiu por ela própria criar um partido político.
Portanto, o que aconteceu em 1977 foi um desligamento e a tomada de uma posição
específica, do ponto de vista político e do ponto de vista de um projecto de
sociedade ou de um plano para um determinado país. Um partido político, entanto
que uma entidade de direito privado e com um projecto social específico,
adoptou o marxismo-leninismo e todo um conjunto de elementos que nós todos
sabemos. Foi um grupo de vitoriosos que na altura, estando no poder, decidiu
criar um determinado partido político. A partir desta altura, mesmo o partido
Frelimo consciente, foi celebrando a data da sua criação até ao décimo (10.0)
aniversário. Portanto, o partido Frelimo foi criado em 1977. O próprio partido
Frelimo sabe disso. O partido Frelimo sabe que tem 35 anos de existência. O
próprio partido sabe disso.
Canal: Então, o que é que está
a acontecer para o partido Frelimo aparecer hoje a dizer que tem 50 anos?
Egídio Vaz: Há aqui um malabarismo semântico e um pouco de falta de
cultura jurídica, exclusivamente para um aproveitamento político, em uma era de
democracia multipartidária. Isso faz com que muitas pessoas fiquem, não só
incrédulas, mas também confusas. Mas que não haja confusão! O movimento de
libertação chamado FRELIMO é verdade que completará em Junho deste ano 50 anos
de sua existência. Porque o movimento FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique), e não o partido político Frelimo, foi fundado em 1962 com a fusão
dos três movimentos. E esta união dos três movimentos foi materializada através
da assinatura dos ditos pactos de união e que depois foram os três movimentos e
mais outras pessoas ao congresso. Foi neste processo que surge o movimento de
unidade nacional e com objectivo de desencadear uma luta armada para libertar o
país, dirigida por Eduardo Mondlane.
Canal: O que ganha o Partido
Frelimo quando reclama ter 50 anos?
Egídio Vaz: Na verdade este é que é o problema. Este é o problema
digno de análise. É que ao estabelecer uma continuidade, a Frelimo ganha pela
reputação, pelo peso, digamos de consciência, que os moçambicanos possam ter em
relação aos grandes feitos da Frelimo partido, em que seria um deles, o facto
de ter conseguido liderar um processo de libertação. Eu acho que todos os
moçambicanos estão eternamente gratos aos libertadores da pátria. Ao tomar esta
façanha como individual – estou a falar do ponto de vista institucional – do
partido Frelimo, nos dias de hoje, isso lhe confere uma legitimidade imbatível
e uma vantagem incomparável em relação aos outros partidos políticos. Então
como qualquer político interessado em manter e gerir o poder político, vai
buscar todas as situações possíveis para recalcitrar o seu poder ainda mais e
por essa via garantir mais vitórias políticas. Este é, na verdade, o verdadeiro
motivo que leva a Frelimo a estabelecer uma espécie de continuidade. Mas eu
acho que houve alguma diferença entre a FRELIMO, movimento que surgiu da união
dos três movimentos, e a Frelimo, entanto que partido político.
Canal: Se nos filiarmos à
teoria da ruptura, quer nos parecer, a nós, que houve uma ruptura apenas sob
ponto de vista ideológico. Isso porque a esmagadora parte dos protagonistas se
manteve.
Egídio Vaz: É verdade! Alguma parte das pessoas… É preciso que
sejamos sinceros e afirmar que a FRELIMO não nasceu com o mesmo grupo que criou
o partido Frelimo em 1977. Existiram muitas pessoas.
Canal: Onde estão essas
pessoas para nos contar a sua versão da história?
Egídio Vaz: Algumas morreram em combate, outros foram mortos, e
quando se estava a formar o partido, muitos outros presos políticos que não
concordavam com a linhagem estavam enclausurados em matas, muito longe de
Maputo.
Canal: Qual foi o destino dos
membros da FRELIMO, frente de libertação, movimento plural, que se opuseram ao
projecto do partido político, partido Frelimo, de orientação
marxista-leninista?
Egídio Vaz: Alguns morreram, outros simplesmente desapareceram,
outros fugiram. Há muitos que estão nos Estados Unidos da América, outros na Alemanha
e pelo mundo afora. Outros foram marginalizados e é importante trazer estes
actores à baila quando falamos da FRELIMO, movimento de libertação, e do
partido Frelimo. É preciso trazer estas todas adversidades. Não podemos e não
devemos falar da FRELIMO, movimento de libertação, apenas personificado pelo
grupo vitorioso que na altura já tinha as rédeas do poder. Existiram muitas
mais pessoas. Como é óbvio, a luta de libertação foi de todo o povo
moçambicano, sob a liderança do movimento. É importantíssimo dizer, quando
falamos da frente, FRELIMO, que libertou o país, é preciso que não haja dúvidas
que estamos a falar de pessoas, como o próprio Presidente Samora Machel disse
aquando da criação do partido Frelimo em 1977, a FRELIMO de 1962 a 75 era composto
por anti-coloniais, ou seja, todos aqueles que fossem contra o colonialismo e
que eram pela libertação de Moçambique, eram automaticamente membros da
Frelimo.
“Frelimo está a
privatizar história de Moçambique”
Canal: Como classificar então
esta tentativa do partido Frelimo de adulterar as datas da sua criação?
Egídio Vaz: Ao que está a acontecer, eu chamo de privatização da
história de Moçambique. Quando se fala da FRELIMO de 1962 a 1975, é preciso
incluir todos os anti-coloniais. É preciso falar-se da FRELIMO com todas as
suas contradições, da FRELIMO com todos os seus membros. Da FRELIMO com todas
as suas correntes divergentes. Mas já quando se fala do partido Frelimo, de
orientação marxista-leninista na altura da sua formação, dos seus membros que
eram dirigentes deste país, do ponto de vista metodológico é importante
dizermos isso que estamos aqui a dizer. Podemos colocar muitas questões.
Primeira: por que é que até 1987, o partido Frelimo comemorava a data da sua
criação de 1977? É que em 1987, o partido Frelimo comemorou o seu 10º
aniversário e foram mandados publicar 200 mil selos comemorativos. Este é um
documento oficial, acessível a todos e através do qual podemos provar a idade
exacta do partido Frelimo.
Canal: O diploma ministerial
que cita é fonte histórica credível para sustentar a tese que defende?
Egídio Vaz: É uma fonte muito credível. É uma fonte muito mais
credível que qualquer outro tipo de explicações ulteriores. Por uma razão
simples, considerando que até 1987 o partido Frelimo era ao mesmo tempo o
Estado moçambicano e as decisões do partido tinham primazia em relação às
decisões do Governo e do Estado. A partir daí já podemos concluir que a decisão
de comemorar os 10 anos da criação do partido Frelimo foi tomada pelo próprio
Bureau Político da Frelimo que deu instruções ao Governo para que emitisse
selos e preparasse eventos comemorativos.
Canal: Então, o que dita o
recuo para o resgate da idade do movimento (Frente de Libertação de Moçambique
– FRELIMO), colocando-se de parte a idade do partido Frelimo?
Egídio Vaz: É a estratégia política da sobrevivência. Para começar: é
útil comemorar os 50 anos da FRELIMO – movimento que libertou os moçambicanos
do jugo colonial. Mas seria mais útil se essa tivesse sido uma cerimónia do
Estado e se a mensagem política tivesse sido clara e despartidarizada, ou seja,
repensarmos o nacionalismo moçambicano que nos levou à independência.
Repensarmos os desafios da nossa unidade nacional num contexto de crise e de
luta política multipartidária. Estes elementos todos para mim fariam muito mais
sentido se não tivessem sido personificados em um e único partido, que é o
partido Frelimo. Porque na verdade se nós falamos dos 50 anos, são 50 anos do
movimento de libertação. Não há absolutamente nada que tenha a ver com o
partido Frelimo. O partido Frelimo tem a sua idade que são 35 anos. Não tem 50
anos. Não é isso. Coisa nenhuma!...
“A verdadeira
história ainda está por se escrever”
Canal: Bom, pedimos que o Dr.
Egídio Vaz nos ajude a entender o seu ponto de vista sobre isto: Sabemos que
quando há erosão numa zona residencial o risco é das casas ruírem. Neste caso
em que parece haver erosão da nossa história, quais os riscos que corre a
sociedade? Quais são os perigos desta adulteração de datas e factos?
Egídio Vaz: Bom, para mim o grande problema é a própria alienação das
nossas consciências. Nos 37 anos da nossa independência os moçambicanos não
tiveram a oportunidade de conhecer as várias facetas de um processo político.
Os moçambicanos foram sempre alimentados por informação de utilidade política.
A verdadeira história ainda está por se escrever. Infelizmente o que sabe a
maioria dos moçambicanos em termos de história política é que o partido Frelimo
trouxe a independência. Infelizmente são muitos que pensam assim. E, isso não
sendo verdade, confere vantagem ao próprio partido Frelimo.
Canal: Então, não foi o
partido Frelimo que trouxe a independência?
Egídio Vaz: Não foi o partido Frelimo que trouxe a independência.
Isso que fique claro! Quem trouxe a independência foi o movimento de libertação
aglutinador de todos os anti-colonialistas. O partido Frelimo não trouxe a
independência, porque quando foi criado já estávamos independentes. Este é o
primeiro ponto. Ponto dois: se se cristaliza a ideia errada de que os 50 anos
do movimento de libertação são os mesmos com os 50 anos do partido, significa
que o povo moçambicano perde 10 anos da sua história em benefício do partido
Frelimo. Estaríamos a colocar Moçambique, sob ponto de vista historiográfico,
como um apêndice ou mesmo um rodapé do partido Frelimo, enquanto devia ser
exactamente o contrário. Aquino de Bragança explica muito bem isso quando fala
da problemática teleológica. Então as implicações de todo o património
histórico passam a ser pertença do partido Frelimo enquanto instituição.
Estamos a falar dos próprios heróis. Eduardo Mondlane passa a ser um património
do partido Frelimo e não património e herói do povo moçambicano.
Canal: Está a dizer que o
património histórico de Moçambique está em perigo?
Egídio Vaz: Pois… os locais históricos passam a ser também
propriedades do partido. Aliás, é exactamente esse o risco. Por exemplo, já
vivemos os sinais de privatização da história. Os sinais já existem. Decorre
agora o processo de alienação do Museu da Revolução para que passe a ser
património do partido Frelimo: isto é muito grave. Portanto, imaginem-se sem
história! Passas a ser um devedor eterno de um partido político. E, por essa
via, passa a fazer sentido, na verdade, aquilo que Edson Macuácua (Secretário
para a Mobilização e Propaganda do Comité Central do partido Frelimo) diz
quando afirma que é um imperativo nacional que a Frelimo permaneça no poder.
Para manter essa deturpação da verdadeira história, passa a ser imperativo que
o partido Frelimo ganhe as eleições e se mantenha no poder. Não sei se estão a
apanhar a lógica de tudo isto? A partir do momento em que nos tornamos
devedores de um partido político, sujeitamo-nos a ele e sempre devemos a partir
dali consentir com as ditas vitórias. Passa a ser obrigatória a vitória do
partido Frelimo.
Canal: No contexto em que foi
criado o partido Frelimo, que praticamente açambarcou o nome do movimento,
havia condições para que houvesse reivindicações, no sentido de aparecer um
grupo a dizer que não, alegando que estão a roubar o nome do movimento do povo?
Egídio Vaz: O açambarcamento da FRELIMO, como nome para o partido
político, é típico de grupo de vitoriosos. Ou seja, o açambarcamento do
património histórico, dos despojos da vitória é típico porque naquela altura
todos aqueles que podiam reivindicar não estavam lá na sala. Estavam
devidamente marginalizados, acantonados.
Canal: Ou seja, estavam
criadas todas as condições para que o açambarcamento do nome ocorresse sem
contestação?
Egídio Vaz: Pois é. Estava tudo preparado ao detalhe. Urias Simango
estava preso, Kavandame estava preso, os outros tinham fugido por temerem ser
mortos e por aí fora.
Canal: Quando fala de ‘grupo
de vitoriosos’, refere-se a vitoriosos da luta contra o colonialismo ou a
vitoriosos na ‘guerra de perseguição interna”?
Egídio Vaz: O grupo de vitoriosos internos… Aquele grupo, na verdade,
não estava a representar as várias sensibilidades de todo um povo, mas, sim,
dos vitoriosos de entre todos os nacionalistas. Portanto, não sei se custa
muito perceber que depois da luta armada ganha, os vitoriosos trataram a
história como o seu património. E acharam-se no direito de estabelecer ligações
directas entre o movimento de libertação e o partido que estavam a criar. No
preâmbulo dos estatutos do partido Frelimo, o partido considera-se herdeiro do
movimento. Imaginemos que se estivéssemos na altura perante um sistema
democrático e uma outra pessoa decidisse fundar um outro partido também podia
se considerar herdeira. Simplesmente isso. Para mim, é preciso destrinçar um
pouco quando falamos da herança. Os indivíduos que decidiram formar um partido
consideraram-se herdeiros do movimento de libertação. Tudo aquilo que estou a
dizer, não estou a recorrer a fontes extraordinárias. São os próprios
documentos da FRELIMO, são os próprios estatutos, são os próprios rastos que a
Frelimo foi escrevendo e eu estou simplesmente a reinterpretá-los.
Canal: Pensamos que são muitos
os historiadores. O silêncio destes em relação ao assunto não o preocupa? Como
é que deixaram que a história fosse deturpada?
Egídio Vaz: O silêncio dessa gente não me espanta. A única coisa que
conseguiram fazer é ficarem calados. Eu nasci já livre depois da independência.
Estudei com os mesmos manuais. Foram os mesmos professores que me ensinaram a
metodologia e a crítica histórica, e simplesmente estou a fazer jus à ciência.
Eu não tenho absolutamente nada a ganhar ou a perder com a interpretação
consciente e fiel da história e daquilo que as fontes dizem. Eu acho que os
meus professores, que são assessores e altos dignitários do Governo da Frelimo,
não têm interesse algum em falar a verdade e criar polémica em seu próprio
prejuízo. É basicamente uma questão de sobrevivência. Não encontro outra
explicação. Acontece que eu não estou neste círculo. Sou um historiador de
formação e tento aprofundar com leituras ulteriores à própria problemática e
tento aqui simplesmente rebuscar um debate iniciado por Aquino de Bragança em
1986 sobre a compreensão da história da FRELIMO a partir de documentos
disponibilizados pela própria Frelimo. Eu estou simplesmente a fazer jus às
fontes e à minha profissão de historiador e à interpretação histórica.
“São 35 anos de
lavagem cerebral”
Canal: Como historiador e
conhecedor da realidade histórica diz que as nossas consciências estão
alienadas. Acredita que existem condições para rescrição da nossa história ou
praticamente a perdemos?
Egídio Vaz: São praticamente 35 anos de lavagem cerebral. Mas a
rescrição da história vai acontecer e está a acontecer. O debate já existe.
Guideon Malhuza deu uma entrevista há doze anos ao Savana e trouxe factos. Doze
anos depois nunca foram rebatidos. Existem outros testemunhos ou leituras
alternativas da história de libertação de Moçambique. Pouco a pouco, vai-se
revelando. Mas também existem obstáculos. O processo da rescrição da história
não está a ser rápido porque existem obstáculos. Os grandes actores da história
recente de Moçambique ainda estão vivos e no poder. Não está no seu interesse
fragilizar esse poder e minimizar os seus ganhos políticos. Mas, pouco a pouco,
a biologia vai se encarregar de tomar conta do homem. Pouco a pouco, vai-se
abrindo espaço para que novas ideias e novas interpretações tenham lugar.
Canal: Está a dizer que
existem obstáculos vivos?
Egídio Vaz: Exactamente. Porque os obstáculos vivos, ou seja, as
pessoas que se podem zangar e interpelar as pessoas que estão a fazer uma
investigação e interpretação alternativa da história, continuam vivas. Essas
pessoas são o único obstáculo que persiste. O momento político é propício para
a abertura de debate de ideias. À medida que as pessoas se vão instruindo, com
a capacidade de interrogar as coisas, vão-se abrindo. Mas a morte biológica de
alguns actores ao longo do tempo vai nos possibilitar a reinterrogar e conferir
algum fôlego aos historiadores para poderem escrever com alguma liberdade.
Neste momento, não estamos a pregar no deserto, até porque não estou a trazer
dados novos. Toda a informação e documentação existe e é acessível. A grande
parte dos protagonistas também está viva. Eu estou apenas a fazer uma análise
rigorosa e a tentar perceber porquê é que o partido Frelimo vai buscar sempre
origens heróicas.
Canal: A propósito, no seu
discurso, no lançamento das comemorações dos ditos 50 anos da Frelimo, o actual
Presidente da Frelimo, que é também presidente da República, disse haver uma e
única Frelimo e que quem defende a existência de duas será marginalizado. Sem,
necessariamente, ser analista de discurso, qual é o alcance desta afirmação?
Egídio Vaz: É preciso entender que o presidente da República é um
político e não um historiador. Os historiadores que o digam. O presidente da
República usou da sua qualidade de dirigente da Frelimo e, aliás, merece todo o
nosso respeito como chefe de Estado, mas ele não é historiador. É, sim, parte
interessada e o primeiro suspeito em interpretar os factos históricos. Como
historiador, não dou crédito àquilo que ele disse. Não estou muito preocupado
com as ameaças que ele faz de marginalizar ou de auto marginalização, pois para
o ofício de um historiador é este o exemplo paradigmático de um dos grandes
entraves. Por isso disse aqui há pouco que o processo da rescrita da história
não está a ser um processo célere porque há obstáculos vivos. Este é um dos
obstáculos. Guebuza é um obstáculo para o avanço da história de Moçambique e
para a descoberta da verdade histórica, porque ele está no poder. Ele pode usar
todos os meios de poder e de coerção passiva ou activa para desanimar as
entidades e indivíduos interessados em promover um debate histórico fecundo.
Estou aqui a defender que existe um património histórico pertencente ao povo e
que não pode ser alienado por um partido como sua propriedade. (Borges
Nhamirre e Matias Guente)
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