19 setembro 2012

Quase Memórias. Almeida Santos* - Comentário ao 1.º Volume

Quase Memórias. Almeida Santos* - Comentário ao 1.º Volume









Por Silvino Silvério Marques


Deslocara-me, creio que em 1972, de Nampula a Lourenço Marques, para tomar parte num Conselho Provincial de Defesa, e encontrei ali um bom amigo que me tinha dado uma colaboração leal, esclarecida e importante em Angola: o Dr. Ferro Ribeiro, transferido para Moçambique após a minha saída de Angola. Falou-me das suas relações de amizade com o Dr. Almeida Santos e do livro “Já Agora…” que ele, na altura, havia publicado e no qual respondia a criticas que lhe haviam sido feitas pelo jornalista Rui Cartaxana numa revista da Beira. Comprado e lido o livro, nele me impressionaram duas confissões do autor. Por um lado, uma relação das razões por que não se importava de ser rico; por outro, a confissão que fazia de que os seus sentimentos se repartiam pelo seu amor a Portugal (entenda-se europeu) e o seu amor a Moçambique. Ocorreu-me oferecer-lhe um exemplar de que dispunha do meu livro “Estratégia Estrutural Portuguesa” e escrevi uma dedicatória em que insinuava que talvez a doutrina tradicional portuguesa sobre o Ultramar que nele se defendia desfizesse as suas hesitações, pois o que se lhe apresentava como dois sentimentos divergentes deveriam tornar-se apenas um e o mesmo: a grande Pátria de todos. Creio que não me foi acusada directamente a recepção do livro, mas pelo amigo comum, Dr. Ferro Ribeiro, foi-me transmitido que o Dr. Almeida Santos não concordava com o seu conteúdo político, porém, quanto ao seu conteúdo social, “estava à nossa frente”...

Mais tarde, logo a seguir ao 25 de Abril, o Gen. Spínola chamou-me para me convidar para Governador-Geral e Comandante-Chefe de Moçambique, convite anulado posteriormente, por elementos da Província (Grupo Democrático de Moçambique?) terem recusado o meu nome.

Nos princípios de Junho fui convidado pelo autor, então Ministro da Coordenação Interterritorial, para Governador-Geral de Angola, após consulta feita pelo próprio à população da Província. Aceite o convite, tive algumas conversas com Dr. Almeida Santos, nas quais trocámos impressões sobre a situação que se vivia lá e cá e a missão que procuraria cumprir: essencialmente preparar a Província para um referendo que se pensava fazer acerca do seu destino e preparar eleições para a administração, segundo legislação que ia ser promulgada. Recordo ter-me contado a forma como decorreu a consulta feita e o resultado, para si inesperado, e não desejado, da mesma. Recordo igualmente de me ter contado que no Conselho de Ministros que apreciou o assunto, ter havido um ministro que lhe perguntou se todos os Movimentos haviam concordado com a escolha, ao que o Dr. A. Santos lhe teria respondido “o Movimento em que está a pensar, também concordou”.

Tratando-me sempre com franqueza e simpatia, poucos dias antes da minha partida, advertiu-me de que eu não ia encontrar em Luanda o ambiente que conhecera e que ia ser recebido, logo que desembarcasse, com manifestação hostil. Assim aconteceu, quando desembarquei. Um grupo de africanos colocado, com dísticos que mal pude ler, no lado da rua em frente da saída do aeroporto, dirigiu-me apupos. Porém logo se calou, quando lhe acenei em estilo amigável e correspondeu com palmas. Segundo me disseram, manifestação do mesmo ou de outro grupo estaria postada ou se postou em frente da residência, mas não dei por ela. Soube posteriormente que a organização das manifestações tinha cabido ao Movimento Democrático de Angola e que havia sido paga a poucos escudos por cabeça…Também num dos encontros, fui encontrar o Dr. Almeida Santos profundamente desgostado pela forma como decorrera a sua reunião em Londres com elementos do PAIGC. Chocado com a composição e a atitude da representação do PAIGC, confidenciou-me que não mais estaria disponível para conversações semelhantes. Algumas referências públicas, de que tive conhecimento, que me foram feitas pelo Dr. Almeida Santos já depois do meu regresso de Angola, foram correctas e simpáticas. De meu conhecimento, apenas a sua confessada discordância com a ideia do referendo a qual tem declarado como apadrinhada pelo Gen. Spínola, me causou profunda surpresa por não ter descortinado, nas instruções saídas das nossas conversas, qualquer sua oposição a essa ideia, então corrente, e infelizmente repelida, nem tentada…Estes os contactos que tive com o autor do livro agora publicado.

Em dezenas de páginas com que se inicia esta importante obra em dois volumes, quase que todo o texto se refere a erros, desvios, ignomínias da acção portuguesa no que foi o seu Ultramar, essencialmente em África. Da escravatura, aos trabalhos forçados; da soberania imposta a populações que parece serem tratadas como constituindo, desde sempre, estados e não, como durante muito tempo, grupos étnicos tantas vezes digladiando-se, fazendo escravatura e traficando-a; das nossas” bravatas militares” (como com desdém refere várias vezes), do nosso “quadrado à beira de ser feito num oito, se não num zero, em Marracuene, Macontene e Magul”… estes e muitos outros senãos da cultura e da acção portuguesa são contrastados com as culturas e qualidades das populações que contactávamos. Os erros e crimes do Acto Colonial (escrito pelo punho de Salazar, segundo o que ensina e salienta), o indigenato, e as políticas da assimilação e da integração, tudo é desfeito no texto do autor. Alguns casos, entre os muitos que profissionalmente viveu, ou que conheceu, exemplificam o que aconteceria por todo o lado, e demonstram o erro de se querer impor uma cultura onde existia outra que devia ser conhecida e respeitada. E todo um estendal de erros, iniquidades e crimes da autoria do cidadão comum, da administração ou dos governos, são encaminhados para apontar como responsável o “ditador”. Talvez uma meia dúzia ou uma dúzia de linhas digam algo de bem. Entre elas a sua surpresa perante a admiração que lhe manifestara um vice-presidente da ONU, o qual acompanhava em visita a Angola, por ali existirem várias cidades que poderiam ser capitais, ao contrário do que era habitual em África onde uma só cidade, em cada país, tinha condições para capital. Nem uma palavra sobre o que foi feito pelos territórios e pelas suas populações no estudo e na investigação, incluindo a cartografia, na saúde, na escolarização, nas comunicações, rodo e ferroviárias, portos e aeroportos, nas barragens, na urbanização, na agricultura, na indústria, no comércio, a partir de fins do século XIX, e essencialmente entre 1926 e 1974 (nos tempos dos “ditadores”). Omite-se que tudo andou para trás nos últimos 30 anos com destruições e crimes cometidos entre as próprias populações e entre os seus próprios governantes. Omite-se que foi com o indigenato e a assimilação, e estava a ser com a integração, que as populações se prepararam para que os seus governantes pudessem hoje aplicar-lhes as soluções jurídicas, políticas, administrativas e sociais, que assimilaram, semelhantes às generalizadas no mundo…. Omite-se que as políticas que agora se consideram erradas foram transição. Esquece-se até que, se de facto se caminha para a “globalização”, era para lá, no seu entendimento material e espiritualmente positivo, que apontava a nossa integração (a portuguesa e verdadeira descolonização). Como poderíamos ter avançado mais rapidamente, havendo partido em tantos aspectos do zero deixado em todo o Portugal pela primeira República? Talvez com gente de melhor qualidade e certos responsáveis mais esclarecidos que, localmente, ignoraram e fizeram por ignorar, que tais doutrinas procuravam defender as culturas encontradas, sem que se desembocasse no apartheid, e que era necessário impedir que, na sua aplicação, gente local, ambiciosa e mal formada, cometesse abusos e vilanias que, aliás, havia localmente obrigação de evitar e poder para punir. E, não esquecendo que Moçambique tinha fronteiras com países reconhecidamente racistas, teria de haver localmente uma “pedagogia” anti-racista, conduzida por elites oficiais e privadas, que repusesse a acção política nos termos da lei que não admitia desvios e abusos que se verificassem.

Porem acontecia que, em vez disto, as elites, e nestas o Grupo dos Democratas, integradas no meio tolerante habitual em que gostavam de conviver, desabafavam protestos, atribuindo a responsabilidade desses erros, desvios e abusos não aos que localmente os praticavam e, ou, os toleravam, mas ao regime, a Salazar, utilizando-os como importante e demolidora oposição. Oposição conduzida essencialmente por altos líderes locais que, nunca esconderam e sempre foram mantendo, a ambição do auto-governo, de início “branco”, o qual, adaptando-se às circunstâncias, foram, sucessivamente, tolerando ir-se “escurecendo”…Em Angola, por mais de uma vez, figuras importantes de uma Associação Africana respeitada me manifestaram o receio de Governos Provinciais “brancos”, mesmo que “escurecidos”, e a sua confiança no Governo Central …

Apesar de defender, e bem, o respeito pela cultura africana (certamente sem esquecer os princípios cristãos conhecidos como direitos humanos) e de se manifestar contra a assimilação, não deixa de assinalar que, em Moçambique, eram poucos os assimilados… Compara os muitos “mestiços” que encontrou na África do Sul com os poucos de Moçambique e não pode deixar de desmistificar as nossas farroncas machistas… (pág. 98). Cita Gilberto Freire que “ganhou esporas de doutrinador oficial do Governo de Lisboa, ao escrever em prosa os novos Lusíadas, da nossa vocação luso-tropical”, para referir que, “segundo ele”, os Portugueses tinham logrado a harmonia racial. Deixa como instrumento privilegiado desse milagre: “a miscegenação, ou seja a cama”…Não compreende, parece, que a miscegenação portuguesa foi sendo desde sempre, e cada vez mais étnica, física, espiritual e também cultural, recebendo e dando….

Afirmando-se como prestigiado e afortunado advogado de Moçambique, nem uma palavra deixa sobre o largo e brilhante contraditório que foi sendo formulado e difundido, na oportunidade, pelo governo português, abdica dos naturais e espontâneos sentimentos de pessoa nascida no Portugal do seu tempo, e reforça, com a sua, a argumentação dos adversários que hostilizavam a Pátria dos portugueses. Esta não era, pelos vistos, a sua, tal como acontecia com o Dr. Eduardo Lourenço, conforme esclareceu, respondendo, num debate que vi televisionado, ao Gen. Kaulza, que invocara a traição havida. Não teme, assim, o risco que o seu colega, igualmente prestigiado, Palma Carlos, não quis correr, quando se demitiu de Primeiro-Ministro. Mas, apaixonado advogado dos nossos adversários, num período importante e grave da História de Portugal, como nela será julgado?

Impregnado do gosto, dito progressista, de se copiar o que se faz lá fora para fazer lei cá dentro, arruma-nos a par e passo do seu texto, ao mesmo tempo que vitupera Salazar e a sua acção, com as descolonizações levadas a cabo quase exclusivamente pela Inglaterra e pela França. Contei nas citações que o autor foi deixando cair, cerca de cinquenta descolonizações efectuadas, entre 1930 e 1974. O autor cita o que em memorando enviado, em 1963, por George Ball a Salazar, é referido (pág. 218): “No breve espaço de vinte anos, mil milhões de pessoas deixaram de estar sujeitos a sistemas coloniais”. Compare-se isto com a modéstia daquilo que, para nos denegrir, mesmo pessoas aqui nascidas, passaram a designar como “colonialismo”, representavam as nossas oito Províncias Ultramarinas e os seus cerca de quinze milhões de habitantes que constituíam pouco mais de metade da nossa população total…Poucas gentes envolvidas. Muito espaço cobiçado, muitas ambições decepcionadas…

O autor, pessoa que sabia inteligente e julgava simples, mostra, com meu sincero pesar, sobre estimar-se, na medida em que não controla o ódio que revela por Salazar que culpa de tudo e a quem trata de forma grosseira e desprezível. Além dos manifestos que sentiu e redigiu, dos discursos que proferiu, das páginas que escreveu, da justiça que procurou que fosse aplicada, que de muito importante e grande deixou para o país em que nasceu e para o respectivo povo, que justifique a superioridade arrogante e verdadeiramente totalitária, na abrangência destruidora envolvida. Porquê tal complexo. Que trauma? A suposta tentativa de defenestração? Os erros que entende cometidos pelo regime anterior? Os crimes que atribui à Polícia Internacional? O “ditador” responsável e culpado de tudo o que de mal (em sua opinião) havia acontecido?

Orientador de uma oposição contínua e intolerante ao regime - bem legitimado pelas relações cordiais com a generalidade dos Estados e das organizações do mundo e aclamado pela defesa do Ultramar- e, apoiante em tempo de guerra dos inimigos que então nos combatiam, sabia que teria de contar com muitos que, politicamente, o detestavam. Sabia que, até em tempo de guerra, tinha mantido uma tarefa que lhe traria dissabores e riscos. Não creio que apenas dai tenha vindo o ódio que não reprime e que tanto desvaloriza o reconhecido brilho da sua escrita corrente. Outras razões explicarão, creio, o recalque que evidencia. Ao começar a ler o Capítulo “Os Primeiros Passos” não pude deixar de o associar ao sonho da sua vida, relativo a Moçambique, “a terra que por amor havia escolhido para viver e da qual teria de desenraizar os cinco filhos que ali haviam nascido” (págs. 230-231), sonho abandonado ao aceitar o desafio de fazer parte do Primeiro Governo Provisório, dado que havia “lutado por uma descolonização política” e entendeu não poder recusar “ajudar a fazê-la” (pág. 232). De Moçambique, onde tinha vivido vinte e um anos e que visitado por si, quatro dias depois de empossado como Ministro, amigos de sempre, e outros novos, viveram tempos de esperança…Amigos correligionários, muitos dos quais, mais tarde o erigiram “em bode expiatório” (pág. 246). Certamente o que se estava a passar não era o que teriam esperado…

Talvez que o ódio destilado se destine, essencialmente, a, cómoda mas friamente, personalizar a oposição a um regime, de muita gente ilustre, que os líderes oposicionistas “brancos” de Angola e Moçambique necessitavam destruir para realizar os seus sonhos, inicialmente de “autonomia branca” que, sucessivamente, foram tolerando se limitassem a ser de federação ou confederação com um pouco de escuro, e até mesmo de separação esbranquiçada. E que, quando julgaram que nem isso era possível, se juntaram ao inimigo de então e passaram também a bater-se pela independência, ainda com derradeira esperança num reconhecimento que lhes consentisse continuar lá, sem problemas, a sua actividade…Afinal, consumada a almejada independência que tinham ajudado a desencadear, não ficaram. Tiveram de correr à Pátria que passaram a tratar, justificando-se, que essa sim era a sua. A outra que os vira nascer e os formara era um mito de utópicos…

No caso do autor, todo o amor a Moçambique e toda a devotada e, quero crer que em geral justa, defesa dos africanos contra excessos de alguns “brancos de lá” se desmoronam quando, como Ministro escreve (não sei se por seu punho como tantas outras leis que se lhe devem) e publica,”a mais patriótica das leis”, como ousa afirmar (pág.283), a chamada “lei celerada” com a qual, por medo de uma, pacífica, invasão de Portugal por ultramarinos africanos, lhes faz retirar a nacionalidade, num verdadeiro genocídio espiritual que envolveu muitos milhares de vítimas… Quando aqui os revolucionários civis e militares designavam por colonialistas os “brancos” de África e apregoavam o ódio que os ditos explorados africanos tinham aos “brancos” não se percebe o receio manifestado pelo Ministro de que os explorados desejassem, e pudessem, refugiar-se entre os seus ditos exploradores…Parece ser de concluir que o seu amor a Moçambique era ao País que não à sua população… Racismo? Em política, o que parece é. E como se trata de alguém nascido em Portugal, talvez que só por influência de países vizinhos… Fica-se na dúvida se nas ambições políticas do Grupo dos Democratas de Moçambique não haveria, pelo menos, uma réstia de apartheid…Talvez, também, daí que, em resposta a um jornalista numa entrevista publicada a 10 de Abril de 2004 no “Público”, de que só agora tive conhecimento, me tenha considerado, antes do 25 de Abril, defensor de uma Angola branca… Como isto é um disparate de que me repugna não tivesse consciência, só o posso compreender como sendo propositado, talvez por, enfim, sentir necessidade de insinuar que se excluía de tal ideia racista…

Não concretizado, em nenhum grau, o sonho que haviam vivido, coube-lhes regressar à Europa e passar a tentar justificar a tragédia a que deram origem lá, e estão dando aqui…

A habilidade semântica de designar como mito utópico Portugal de Minho a Timor, de que o autor, e com ele tantos, passaram a usar como tábua de salvação para justificar o que fizeram, não pode convencer um povo que não é estúpido, e que se foi espalhando, vivendo e morrendo em tão grande Pátria. E é estranho que isso parta de quem amou Moçambique, conheceu Angola e, em Timor, se comoveu com o amor a Portugal, exibido ali pelos timorenses. Dir-se-à que, ou não conhece o Minho, ou entende que o Minho não é Portugal…E, talvez, tenha sido em Timor, onde me dizem que chegou a lacrimejar pelo portuguesismo ali manifestado, que, recalcando sentimentos, lhe ocorreu, para se compensar, a ideia “utopia” que depois passou a usar como refúgio de culpas próprias, assim lançadas sobre os outros…

Considerando justificado o golpe militar e a descolonização, com as razões apresentadas nas numerosas páginas para o efeito carregadas de desprezo e ódio, com que inicia a sua obra, e assim certamente confortada a sua consciência, deixa compreendido que não pode recusar, embora com sacrifício o convite para Ministro da Coordenação Interterritorial no novo Governo, para, como escreve (pág.232) ajudar a fazer a descolonização política por que havia lutado. Fá-lo com sacrifício, “por deixar Moçambique, a terra que por amor havia escolhido para nela viver…”(pág.30-231). Mas não deixa de vir a esclarecer que como Ministro, no “que diz respeito quanto a orientações políticas sobre o Ultramar, iria em dizer que, por meu mal, tive mais liberdade de actuação do que seria desejável no respeitante aos salvados da administração dos territórios, e menos liberdade do que eu próprio desejei quanto ao seu processo autodeterminativo” (pág. 240). Fica assim (e deixa-se ficar…) menos livre do que desejava para ajudar a fazer a descolonização política por que havia lutado, descolonização que redundou em “tragédia” como foi referido por um dos mais celebrados teóricos fundadores do MFA. Processo que passa a historiar com minúcia, nas suas confusões, intrigas, e nos seus erros (dos quais assim algo se exclui).

Com o à-vontade, de hábil interveniente, inteligente e bom advogado e escritor e de, precatado observador, escreve, com pormenores, certamente verdadeiros, pouco conhecidos, e assim, portanto, com interesse para a História, a baralhada militar, política e social que se desenrolou, e muitos de nós vivemos, a partir do 25 de Abril. Da baralhada vergonhosa, que considera, adoçando-a, como “embriaguez da liberdade”, e das chamadas descolonizações, o autor segue a dar conta dos desaires, dos erros cometidos, dos juízos errados quanto à prática de uma solução política em que sempre falavam, e para cuja preparação tantos contactos os próceres tinham estabelecido aqui e lá fora, a qual afinal se verificava que não sabiam como fazer, como aplicar. As responsabilidades e culpas vão ser, atribuídas, aos militares e entre estes, especialmente ao MFA e a Spínola… Refere mesmo a “quebra de moral, da coesão da disciplina dos nossos soldados…e… em verdadeiros actos de rebelião” (pág. 242), o que não pode deixar, recorrendo aos seus ódios, de explicar: ” Foi a erupção do gás por longo tempo represada.” Isto certamente para não confessar a culpa que os civis políticos tinham (e continuam a ter) na destruição das Forças Armadas que infelizmente não deixou de prosseguir…

As circunstâncias em que decorre a chamada descolonização e que a determinam são descritas com pormenor. Em síntese, são:

- A embriaguês da liberdade que inclui a baralhada, a bagunça política, social e militar, desencadeada logo a seguir ao 25 de Abril e que vai perdurar durante muito tempo. E escreve: “A hora vestia farda. Militar era in totum a glória, militar o essencial do poder, E no próprio âmbito das escassas competências, o Governo era confrontado com a explosiva erupção de poderes de facto, de reacções da sociedade emergente, das primeiras exibições de poder popular. Era escassamente obedecido. Nas escolas instalou-se a rebelião permanente. No mais, a confusão total.” (pág.293). E, como não pode deixar de ser, “ ao nível das causas” atribui a responsabilidade, de forma odiosa, ao regime anterior…É demasiado!...

- As pressões internacionais, omitindo que, enfim, tinham encontrado aqui já não o Estado determinado que se havia batido denodadamente pela política tradicional e do interesse do conjunto de todo o seu povo, mas o Estado fraco, dividido, desorientado, acomodado de que necessitavam para imporem os seus interesses.

- A progressiva deterioração das Forças Armadas, que incluem verdadeiros ultimatos ao poder político. São páginas do comportamento vergonhoso de muitos militares que deveriam ter sido inquiridas, objecto de punição, sempre que se justificasse, divulgadas e objecto de profundo estudo dos Estados-Maiores da Instituição Militar para que se procurasse evitar repetições. Elas explicam muito da passividade da Nação face ao tratamento que a Instituição Militar passou a sofrer depois do golpe militar, quando, para o levar a cabo, até tanto se invocou o aludido desprestígio de então… Mas o autor não pode deixar de justificar tal comportamento vergonhoso, que constitui uma mancha a degradar a História Militar portuguesa. E explica: “A guerra havia durado tempo de mais. Até à exaustão física e psicológica...Com o avolumar das deserções…surgiu a necessidade de recorrer a contingentes africanos e a levas massivas de milicianos que introduziram nos quartéis o anti-colonialismo, o pacifismo, o anti-militarismo… Durante as longas vigílias, ou as tediosas esperas, os milicianos leccionavam a injustiça do colonialismo e das guerras coloniais. Daí que, já mesmo antes de Abril, a guerra fosse alvo em que não entrava a vontade de muitos, ou em que muitos se recusavam a pôr a alma…Resultado: as consciências devinham fenomenológicas, e a distinção entre o bem e o mal esbatia-se por entre convulsões cívicas sem controlo…Essa «revolução» em marcha, que desde o pós-guerra vinha fazendo por toda a parte o seu caminho, e havia penetrado a custo no bunker da ditadura Salazar-Caetanista. “Abertas as portas que Abril abriu, deu-se a inundação. Em dias apenas, Portugal acertou o passo com ela. E acertou-o da pior maneira: assimilando-o mal, e por via reactiva às injustiças, às privações e aos constrangimentos do passado” (pág.325)

Atribui-se, como tem sido hábito, com profunda injustiça, generalizadamente aos milicianos, entre os quais, antes do golpe militar, estiveram dos melhores operacionais, por um lado, um seu comportamento que alguns políticos revolucionários de Abril se esforçaram que tivessem, por outro uma cultura muito pobre dos quadros saídos da Escolas militares, grande influência na disposição dos militares para golpe. Esquece-se que eram numerosos os milicianos que desejavam continuar como militares e que, reconhecidamente, o tinham merecido. Estes eram tantos ou tão poucos que serviram de motivo ao golpe dos seus alunos de política, “durante as longas vigílias ou as tediosa horas de espera”…. Esquece-se que foi essencialmente de milicianos patriotas que ao surgirem sinais de lassidão que convinha ultrapassar, partiu a ideia do Congresso dos Combatentes, tão contrariado...

E, como era de esperar, sem referir o reconhecido comportamento operacional exemplar das Forças Armadas até ao 25 de Abril, recorre-se ao passado, omitindo a acção de forças políticas de várias tendências sobre quadros militares que nalguns poucos casos (praticamente os de uma promoção de contemporâneos) se deixaram infectar, do que é exemplo o MFA. Com quadros contaminados, e não dignos, nada se pode exigir de soldados, que assim deixam de o ser. Já o Marechal Montgomery havia advertido uma promoção de cadetes da Academia Militar, de que eram grandes as suas responsabilidades pois se destinavam a comandar soldados que, quando bem comandados, eram dos melhores do Mundo. E exortou-os, em formatura a que assisti, para que soubessem ser sempre dignos deles! Antes do golpe, raros, se alguns, foram os que o não souberam ser!

É extraordinário que pessoa que, ao longo do seu texto, tanto ódio concentra nas suas continuadas acusações, reaja, (pág.558) com tão pouco respeito, às acusações de Luís Aguiar, engenheiro em Moçambique, profundo conhecedor da chamada descolonização, em numerosos artigos e no seu histórico “Livro Negro da Descolonização” que tanto incomodou e continuará a incomodar os responsáveis pelo que fizeram. Livro sobre o qual, com a sobranceria que o domina, o Dr. Almeida Santos concede “escrito com algum talento - diga-se - e sobre tudo com enorme paixão”, mas comenta não ”merece resposta. Por isso nunca a teve. Nem agora pormenorizadamente a terá.” Pois não, não é fácil…

Quanto à queixa apresentada em tribunal contra os descolonizadores, que considera a “acusação de todas a mais delirante” , escreve duas páginas (págs. 575-576). E refere: “levei tão pouco a sério aquela esquipática imputação de «traição» que nem procurei, por largos tempos tomar conhecimento dela.” Revela assim, possuindo-a, uma consciência menos sensível do que a do seu muito prestigiado colega Palma Carlos. Dedica 14 linhas a referir o que, precavendo-se com justo medo, foram preparando para tentar evitar aquela terrível imputação de serem incursos no artigo 141 previsto no Código Penal, que estava em vigor. A lei 7/74, de 27 de Julho que o autor refere foi considerada pelos queixosos um desvio, uma vez que os povos envolvidos, não tendo sido ouvidos, não exerceram o direito previsto no acórdão do Supremo. Posteriormente, o Dr. Almeida Santos foi relator da Lei 34/77 apresentada pelo Partido Socialista, na qual são, prescritas para o mesmo Crime de Traição à Pátria, quando da responsabilidade dos titulares de cargos políticos, penas de 10 a 15 anos de prisão enquanto na legislação anterior eram de 15 a 20. Saliente-se que, tempos antes, o Dr. Almeida Santos tinha sido mal tratado, nos Açores, por independentistas ….

O desabafo do autor sobre o “Sentar os descolonizadores no banco dos réus” (págs.575-576) é rematado dizendo: “Que a grotesca queixa-crime em apreço se afoga no próprio ridículo, tem merecido e continuará a merecer o desprezo dos socialistas visados e…” O autor, confundiu-se: estava certamente a pensar na grotesca, na apalhaçada, sessão do parlamento de 24 de Novembro de 1981 resposta apavorada à notícia difundida pelo semanário “O Expresso” sob o título “Descolonizadores poderão ser julgados”. Grotesco esse sim que o autor omite… Que vergonha para o parlamento e seus deputados: ameaça aos juízes, insultos, legislação a preparar, certamente com efeitos retroactivos. Grotesca, ainda, e que, sem deixar o apalhaçado, é também profundamente ridícula, a sessão de 3 de Dezembro de 1981 na qual os deputados do povo ostentam o embaraço de um emendar de mão…Tudo é omitido por quem (como explicar?) não levava a queixa a sério…

Sobre esta queixa o autor nem parece o advogado ilustre de Lourenço Marques. Mostra-se pouco escrupuloso… Nem os históricos pareceres do grande criminalogista Professor Doutor Manuel Cavaleiro de Ferreira relativos ao processo lhe merecem a humildade do respeito.(1)

Resumiria o Primeiro Volume do Livro a três objectivos:

- Justificar o golpe com o “colonialismo” que, segundo o autor, seria prática generalizada, e tolerada, na acção de “brancos” em Moçambique e no Ultramar, o que verificado por uma tropa cansada e influenciada pelos camaradas milicianos a levou ao 25 de Abril. Justificar, essencialmente, com o “colonialismo” do regime, a sua adesão ao processo que se lhe seguiu…

- Isentar-se da barafunda polítco-militar e social desencadeada e atribuir as responsabilidades e culpas essencialmente aos militares. E nestes muito especialmente ao MFA e a Spínola, adoçando-as como consequência do antigo regime…

- Isentar-se da confusão da chamada “descolonização” e assumir-se essencialmente como negociador e produtor dos acordos com os interlocutores que foram entendidos como representativos das populações: os movimentos que nos haviam combatido.

É pena que o autor, que levou o tempo que o separa dos acontecimentos por desejar escrever História, tenha deixado, num texto bem escrito como o sabe fazer, numerosas informações e notícias importantes, conspurcadas por muito ódio, por exageros, por omissões, por injustiças, tudo essencialmente, creio, que por um sonho de muitos anos que não conseguiu concretizar.

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(1) Para se avaliar da ligeireza e do desdém com que o Dr. Almeida Santos trata este assunto consulte-se o livro “Os Descolonizadores e o Crime de Traição à Pátria” S. Marques, L. Aguiar e G. Santos e Castro, 1983, Ed.Ulisseia e, no jornal “O Dia “ de 15 de Dezembro de 1987, o artigo “Para que se não esqueça”.



* Publicado em revista Estratégia, vol XVI, Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Lisboa, 2007.



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