Foto: Estação Arqueológica da Matola, agora destruída |
UM ADEUS À ESTAÇÃO
ARQUEOLÓGICA DA MATOLA
Ali na Matola existiu até agora uma estação
arqueológica. Sobre este “sítio” recorro a Teresa Cruz e Silva, no seu texto “O
sul de Moçambique e o povoamento da África sul-oriental na idade do ferro
inferior. Algumas considerações”, editado pelo Centro de Estudos Africanos em
1978: “A estação
arqueológica (25º 57’ S, 32º 27’ E) situa-se a cerca de 20 metros acima do
nível do mar, e a cerca de 1500 metros do rio Matola. (…) Concluímos que as suas
características são da Idade do Ferro Inferior, e apresentam tipologicamente,
fortes ligações com o material de Kwale no Quénia, Nkope a sul do lago Niassa,
e Silver Leaves em Tzaneen, no nordeste do Mpumalanga” (actualizei
os nomes respeitantes a entidades políticas actuais). Com isto está-se a falar
de dados respeitantes ao início da Idade de Ferro na África Austral, associada
à expansão nesta área das populações a que nos acostumámos chamar “Bantu” e à
introdução novos de padrões culturais, a agricultura, a domesticação de
animais, a tecnologia do ferro e a sedentarização. Para além da disseminação de
padrões linguísticos, a tal mancha “bantu” que se tornou dominante. No
respeitante aos dados da estação da Matola, e de algumas outras poucas estações
no sul de Moçambique, estamos a falar de dados dos primeiros séculos no
calendário cristão (grosso modo até 400 ou 500 d.c.). Naquela estação as
primeiras escavações mostraram que “Entre
os 75 cms e os 85 cms de profundidade, encontrava-se um solo contendo vestígios
de uma lixeira com 10 000 fragmentos de olaria; alguma escória e ferro; conchas
…; uma pequena quantidade de ossos … e sementes carbonizadas …”. Um contexto rico que,
inclusivamente, originou que se criasse uma denominação arqueológica, a
“tradição Matola”, para sublinhar a especificidade cultural e temporal desta
área e destes vestígios.
Mais não me alongo sobre as características
da estação, até para não cansar o leitor leigo em pormenores técnicos. Mas não
me parece necessário sublinhar a importância destes vestígios em termos de
conhecimento sobre a história do continente, e do fluxo histórico particular à
zona austral oriental africana. Refiro dois pontos: que apesar do trabalho de
décadas na área da arqueologia muito haverá a fazer em Moçambique – a
arqueologia é uma ciência lenta e cara (como aliás o deverá ser a ciência
quando o realmente é), exige deslocações e não se pode dobrar aos prazos das
encomendas de apressados doadores. Nem tampouco serve para legitimar as suas
propostas políticas, sociais ou económicas. Muito há, portanto, para fazer.
Um outro ponto, importante, é que o país
tem desde há bem pouco uma licenciatura em Arqueologia, na Universidade Eduardo
Mondlane. Será necessário reforçar a ideia de que uma abertura de uma
licenciatura destas, criar especialistas no passado profundo e silencioso, é um
vigoroso sinal de desenvolvimento? Real, não retórico? Virado para a produção
de um conhecimento que não é instrumentalmente identitário mas que pretende
ser, pode ser, constitutivo de um olhar da sociedade sobre si própria e o
mundo, mais denso, mais produtivo. E que, paralelamente, pode criar um núcleo
alargado de quadros nacionais com sabedoria e atenção dedicada à preservação do
património. Material, intelectual. Atitude, prática, profissão, que não serão
monopólios dos arqueólogos mas para as quais os seus saberes especializados os
conduzem.
Esta preservação do património poderá ter,
e tem muitas vezes, efeitos identitários no sentido da (re)construção de um
passado próprio. Mas muito mais do que isso tem efeitos identitários no sentido
da construção de um futuro próprio. E às vezes é essa “equação” que se torna
difícil de transmitir aos que nos rodeiam, distraídos destas questões. Que
falar em preservação do património, no seu estudo, é fundamental, quando para
tanta gente “tudo isso” pertence a um passado a esquecer, a ultrapassar, a
“desenvolver”.
Tudo isto me surge a propósito da minha
estupefacção actual, pois acabo de saber que a estação arqueológica da Matola
foi destruída. Para que nela se construísse uma casa, de um particular. Esta
construção, que confesso não ter tido coragem para ir visitar, foi licenciada.
Colegas, tão doridos quanto eu, que visitaram a zona avisam que a placa
indicativa da estação continua. Só a própria estação se esfumou. Um deles
perguntou, corajoso, aos trabalhadores: “então mas não havia aqui vestígios?”.
E a resposta veio, cândida, sem maldade: “sim, havia muita “loiça”. Levámos
para o lixo”.
Não me fico na questão pragmática: essa de
haver uma nova licenciatura, com necessidade de trabalho de campo para os
estudantes, e como tal da facilidade em levá-los até à vizinha Matola para
praticarem numa estação já descoberta. E do quão incoerente tudo isto aparece:
abre-se uma licenciatura, investe-se no passado ou seja, no futuro. E, aqui ao
lado, destrói-se uma riqueza incalculável para que surja mais uma mansão (ou
cabana que fosse).
Resmungo também diante da ideia que me
parece estar na base do licenciamento de uma obra destas, a de que o património
que deve ser resguardado é o espectacular, as edificações, o vistoso, quiçá as
jóias, as obras de arte. Desconhecendo que são estas aparentes minudências, os
ossos, as sementes, as escórias, os fragmentos de olaria ou de qualquer outro
material, que são imprescindíveis e riquíssimos materiais para se mergulhar no
passado, na história de todos nós. Quantas vezes tão mais faladores do que o
belo vaso ou o vigoroso castro (zimbabué, se se preferir chamar assim).
Que fazer? Que pensar?
Adenda: tem-me sido um ano terrível. Talvez seja esta a
característica do envelhecimento, o de chegar à idade em que partem os nossos
mais queridos. E também aqueles amigos, mais ou menos próximos, que fazem o
nosso meio, de afectos, de convívios. A nossa paisagem, activa, intelectual.
Morreu agora Augusto Carvalho, meu patrício, meu colega, a quem devi uma boa
meia dúzia de atenções, uma solidariedade pública em momento que me foi bem
difícil, algo que nunca esqueci. E depois, como colega mais-velho, uma
mão-cheia de interessantíssimas conversas. Sobre livros, autores, isto de ser
professor. Sobre este país. Sobre o nosso país. Sempre denso, sempre com
bonomia. Um homem vai ficando mais sozinho, mais pobre.
Foi bom conhecer Augusto Carvalho. Fica
pior agora.
*****
Para mais detalhes sobre a situação
arqueológica em Moçambique ver “O princípio e o presente. A arqueologia na redescoberta
do passado em Moçambique”, de João Morais (1989). Ainda de Maria da Conceição Rodrigues, “O primeiro sítio com
vestígios de utilização de ferro e cerâmica “tradicional” da Early Iron Age
localizado em Moçambique – província da Zambézia (2006), texto não incidindo exactamente sobre esta zona mas
abrangendo a mesma temática.
E ainda a Gazeta do Departamento de Arqueologia e Antropologia, nº 4, Setembro de
2011, com extensa entrevista com o arqueólogo
Hilário Madiquida e referência à “tradição Matola (ou Kwale-Matola) em texto da
arqueóloga Solange Macamo.
jpt
In: http://ma-schamba.com/cooperacao/desenvolvimento/matola/Nota do blog: Em 1988, como forma de regulamentar a protecção do património cultural, o Conselho de Ministros aprovou a lei 10/88 de 22 de Dezembro de 1988, relativa a protecção do patrimóno cultural moçambicano. Esta lei, no seu capítulo III, artigo 4, atribui ao Estado a responsabilidade de incentivar a criação das instituições científicas e técnicas como museus, bibliotecas, arquivos, laboratórios e oficinas de conservação e restauro, necessárias à protecção e valorização do património cultural. A lei estimula a utilização dos meios do Sistema Nacional de Educação e orgãos de comunicação sociais para educar os cidadãos sobre a importância do património cultural e a necessidade da sua protecção.
Passados vinte e quatro anos após a aprovação desta lei, o Governo é o primeiro a não respeitar a lei e o direito a memória. Parece que se valoriza mais empreendimentos turísticos e económicos do que a história e identidade de um Povo. Certamente que ninguém ousaria fazer isso com um dos lugares memoriais da Luta de Libertação Nacional. Valoriza-se mais o património da Luta de Libertação Nacional em Moçambique em detrimento de outros. Que tristeza. A futura geração não poderá conhecer este lugar histórico. Afinal para que serve a Lei 10/88?
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Estação Arqueológica da Matola [1]
I.
Categoria: Sítio
II.
Localização:
Maputo. Cidade da Matola
III.
Descrição
Estação ao
ar-livre, das primeiras comunidades de agricultores e pastores. Foi localizada
em 1968 no decurso da arqueologia de salvaguarda relacionada com a construção
da estrada que faz a ligação entre as cidades de Maputo e Matola. Escavações arqueologicas
iniciadas desde 1975 permitiram o estabelecimento de relações entre diferentes
estações com base na semelhanca entre as colecções de fragmentos de olaria
nelas encontrados.
Tornou-se evidente
a estreita semelhança entre os processos de decoração dos recipientes e a sua
forma, numa grande regiao que se estende desde o sul de Moçambique ao Quenia,
incluindo estações como Silver Leaves , na Africa do Sul e Kwale no Quenia e
Tanzania.
IV.
Critérios
Histórico: (2)
Espiritual: (7)
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