ANA: A DIVA DE FANY PFUMU QUE AINDA VIVE
Ana ladeada por Luis Loforte, a direita e Edmundo Galiza Matos, a esquerda |
Estamos em finais dos anos 40 do século XX.
O Jive e o boogie-woogie são as novas designações
para o blues, um blues que, no lugar do lamento,
melancolia e resignação que até aí o caracterizavam, acabava de enveredar pelo
ritmo, dança e folia.
Entretanto, a União Sul-Africana proclama o Apartheid,
opondo não só politicamente negros e brancos, como também traçando caminhos de
cultura divergentes entre eles. Enquanto a classe dominante se fechava no seu
folclore para desenvolver uma base política e cultural segregacionista, a
maioria negra absorve, em doses maciças, os ritmos provenientes de outros
desafortunados, os afro-americanos levados à força para o chamado novo mundo, a
América do Norte. Os inóspitos bairros negros de Joanesburgo são pequenos
reflexos de Chicago e Menfis. Estavam assim criadas as condições para o
nascimento de novos sons na África Austral, tendo como epicentro a África do
Sul. E a síntese do jive, boogie-woogie e as
múltiplas manifestações musicais de toda uma região resultou naquilo que
rapidamente exigiu uma designação autónoma. E teve-a: kwela!
Kwela que
significa sobe, sobe para o carro celular da polícia sul-africana
depois da captura dos recalcitrantes nos bares clandestinos, os shibines,
nostownships das dark cities, as cidades sem luz
reservadas a negros na grande metrópole de Joanesburgo.
Qual bola de neve, o kwela induziu
outras sínteses, não só na África do Sul, como também nos territórios compondo
a África Austral. Aliás, não falta quem diga que o kwela,
propriamente dito, terá tido a sua origem no Malawi, ou entre malawianos nas
minas do rand. Mas isso, agora, pouco importa, realçando-se apenas
o facto de toda a região se ter deixado enredar pela dinâmica do kwela.
As bandas do novo estilo nasciam como que
cogumelos depois da chuva, a maior parte das quais com designações à imagem das jag
bands de Menfis:The four yanks, African Jazz Pioneers, Hotshots, Orlando
Six, Jazz Danzzlers,The King Kong Cast. E os títulos dos
temas musicais não podiam ser mais sugestivos: jive township USA
special (iú ess ei spechial), kwela blues.
OS PRIMÓRDIOS
O kwela começou por ser
uma música de rua e tendo como instrumento principal a flauta, daí a
designação, em inglês, de pennywhistle song.Perguntarão porquê a
flauta em vez de outros instrumentos? O que sabemos é que terá sido a flauta
pela simples razão de que é um instrumento barato, portátil e susceptível de
ser tocado a solo ou por um conjunto de executantes. E talvez também porque a flauta
pode ser fabricada com relativa facilidade e usando materiais rústicos, como o
prova o facto de qualquer pastor de gado a possuir. Mas a flauta transportava
consigo algum simbolismo para o homem negro sul-africano. Serviu igualmente
para avisar o aproximar das forças policiais repressivas, fosse para fugir ou
mesmo para se desfazer de qualquer objecto proibido, como a navalha. Mas o kwela não
se ficou apenas pela flauta e pelo seu parente mais próximo, a harmónica, assim
como também se não confinou nas fronteiras sul-africanas. Internacionalizou-se
e estendeu-se aos mais variados instrumentos musicais, como as violas
eléctricas e, principalmente, o saxofone, o trompete, trombone e mesmo o
clarinete. Curiosamente, por estas alturas o kwela já
incorporara outras componentes musicais que, por desejo de autonomia, ou talvez
até por estratégias publicitárias, exigiram designações diferenciadas. É assim
que surgiram obump, o bump jive, bhaqanga, entre
várias outras. Em todas elas, porém, reconhece-se facilmente que o kwela está
sempre presente, sendo até elemento dominante. Afinal, tudo quanto é ainda hoje
a estrutura musical da África do Sul.
A MARRABENTA E FANY PFUMU
Fany Pfumo em palco |
Dissemos logo a abrir este texto que toda a
região da África Austral se deixou enredar pela dinâmica do kwela.
E que o kwela, por sua vez, se solidificara a partir de uma
conhecida ramificação do blues, o jive. Só
que ficar-se pela afirmação de que o kwela evoluiu do jive pode
ser redutor, uma meia verdade. Em rigor, o kwela surge a
partir de um estilo bem mais antigo e criado a partir de uma dança desenvolvida
nas minas sul-africanas, a marabi, e que só mais tarde incorporaria
o jive, a tal ramificação do blues muito em voga
nos 40.
É significativo afirmar que foram as minas
do rand que desenvolveram amarabi, uma vez que se mata
logo à nascença qualquer veleidade em dizer-se que o kwela ou
outros estilos musicais que evoluíram a partir dele são de matriz exclusivamente
sul-africana, e até pelo facto de Joanesburgo ter sido e continuar a ser uma
convergência de nações vizinhas e, por consequência, de línguas e de culturas.
Mas a-propósito do que nos leva a escrever este texto, a questão que
colocamos é como é que a nossa canção, a canção moçambicana, se deixou
influenciar pela envolvente kwela?
Foram muitos, alguns dos quais anónimos ou
diluídos em bandas sul-africanas, os músicos moçambicanos que se deixaram
enredar pelo movimento kwela e seus derivados. Pode servir de
exemplo de anonimato voluntário o facto de Alexandre Langa ter evoluído na
África do Sul sob o nome de Kid Mnhamana, o tal da famosa
canção Asha number two, muito dançada nos 60 e 70 na então
Lourenço Marques e na cidade da Beira. Em rigor, e ainda que tenham mais tarde
incorporado muitos dos seus elementos, os músicos moçambicanos que evoluíram na
África do Sul não foram muito de tocar o kwela propriamente dito,
antes preferindo caldeirar os seus próprios ritmos com a marabi.
Tudo isto serve de base para dizermos que aquilo a que hoje chamamos de marrabenta,
tal como o ritmo kwela e, já agora, amakwayela, evoluíram
a partir da marabi. Por isso, contam os que trabalharam
nas minas por aqueles anos, dançar marrabenta e makwayela,
naquelas circunstâncias, era um factor de identidade e de orgulho.
Contam ainda que eram fortemente recriminados os dançarinos que eventualmente
deixassem escapar qualquer gesto da dança marabi quando se
executassem amarrabenta e a makwayela, o que prova que
estas eram danças de auto-afirmação. E quem foram, então, os nomes mais
sonantes da marrabenta?
De todos eles, destaque maior terá de ser
dado a Alexandre Jafete, Ben Massinga, Francisco Balói, Alfiado Vilanculos,
Moniz Nothiço, Francisco Mahecuane e, sobretudo, Fany Pfumu, cuja
passagem dos 25 anos da sua morte assinalamos amanhã, dia 8 de Novembro.
FANY PFUMU
No meio familiar, como na maior parte das
famílias africanas de então, ele respondia pelo nome que os pais lhe fizeram
herdar do seu avô paterno,Mubangu. Foi para Joanesburgo no início da
década de 1950 e sob contrato da companhia mineira Village Mine Reef Limited.
Por qualquer razão que desconhecemos, alíás que nem ele próprio alguma vez
explicou, Mubangu não chegaria a descer às profundezas das
minas, embora permanecesse nas instalações da Village Mine. Podemos no entanto
especular que a sua extrema juventude, quase a roçar a adolescência, aliada às
suas já reveladas habilidades musicais, terão provavelmente contribuído para
que lá vivesse para divertir os mineiros ou por cumplicidade com os chefes dos compounds,
que o tratavam, carinhosamente, por miúdo, mufana ou fanhana,
o que mais tarde derivaria para Fany, Fany Pfumu, nome pelo qual o mundo da
música o trataria até à sua morte, em 3 de Novembro de 1987.
Village Mine, um refúgio, mas também antro
de todos os comportamentos contranaturais, aliás expressos numa das mais
importantes canções de Fany Pfumu, Avasati valomu Village,
claramente uma referência à homossexualidade praticada nos compounds mineiros
sul-africanos.
ANA, A DIVA
Depois de abominar a homossexualidade nas
minas de ouro sul-africanas, Fany Pfumu compôs-nos temas que falam de mulheres
reais, Georgina, Lídiae Ana. Se de Georgina
e Lídia Fany Pfumu fala com saudade dos prazeres vividos, recordando-lhes com
enlevo e arroubo as partes pudendas, sobre aAna a coisa parece
mudar um pouco de figura. Foi sua primeira companheira, mas o espírito
galdério, algo comum, aliás, entre a maior parte dos artistas, fez com que
fosse rejeitado, liminarmente. E, conforme testemunho da própria Ana, por causa
da Georgina. Conseguimos um depoimento vivo desta Ana que Fany Pfumu perpetuou
numa das suas obras musicais mais emblemáticas. A idade, exacerbada por uma
trombose que lhe vai mitigando, paulatinamente, as faculdades, não impediu que
as palavras, ditas em ronga vernacular, traduzissem todo o sentido do
raciocínio. Vive à beira das salinas, na cidade da Matola, em cuja residência entrámos
pela mão de um homem muito conhecido naquelas bandas, o Paulo N’Tchembene,
nosso amigo de longa data, a quem endereçamos, desde já, os nossos mais
sinceros agradecimentos. Encontrámos a Ana sentada e envolta em capulanase
mukumes garridos, expectativa fortemente expressa em feições
delicadas, apesar da avançada idade, deixando-nos uma forte convicção de que
foi mulher lindíssima.
Diz chamar-se Ana Joaquim N’Kuna. Não se
lembra do ano em que conheceu Fany Pfumu, mas identifica-nos as circunstâncias:
- Conheci-o no Umbelúzi, o meu pai
trabalhava nos SMAE (Serviços Municipalizados de Água e Electricidade), o pai
dele também, é lá onde nos conhecemos.
- Tiveram filhos?
- Não,
Deus assim não quis;
A meio da entrevista, ocorre-nos perguntar
que sentimento lhe assalta quando escuta a canção que Fany Pfumu lhe dedicou. A
pergunta parece trazer-lhe algum gozo interior, daí o sarcasmo com que nos
responde:
- Até parece que estou a vê-lo!
À pergunta sobre quais as canções que
mais gosta de escutar do reportório de Fany Pfumu, Ana diz que são muitas, mas
não deixa de particularizar uma, sem, porém, lhe conhecer o título, optando por
nos recitar uma porção do refrão. Depois, a conversa começou a ser fluída, com
o Paulo Tchembene a assumir, também, um papel preponderante na
entrevista, fazendo jus a sua fluência em ronga.
- Em que
circunstâncias começou a gostar de Fany Pfumu?
- Bem, agora parece-me que a
conversa começa a ser séria. Na verdade, tudo começou por uma simples
brincadeira. Brincámos, brincámos, e depois um grande amor entrou em nós.
- E como é que esse amor acabou se
vocês se amavam assim tanto.
Ana recua no tempo e deixa escapar algum
sentimento de frustração, de revolta, mesmo:
- Apanhámos o comboio juntos, na
Matola-Gare, onde havíamos ido para visitar os avós dele, mas ele depois
decidiu abandonar-me, deixando-me sozinha no interior do comboio e atraído por
uma rapariga que apareceu na estação...
- Não será a Georgina, a Georgina Nwamba da
conhecida canção de Fany Pfumu?
- Era a Georgina Nwamba, sim, soube
depois...
Fizemos ver à Ana que também ela não fora
suficientemente prudente, ao acreditar que uma pessoa com tantas pretendentes,
por causa da fama, se pudesse prender, exclusivamente, a si. Ana recorre a Deus
para nos responder:
- Foi Deus que fez com que nos amássemos!
- E qual foi, então, a sua reacção
quando viu a Georgina arrancar-lhe o companheiro que tanto amava?
- Procurei logo esquecer o que aconteceu. Disse
para mim que Deus certamente me indicará um outro homem para amar.
Escutando a canção que Fany Pfumu dedica à
Ana, facilmente se entende que ele tentou a reconciliação, sem sucesso. É que
no-lo confirma:
- Ele tentou a reconciliação, sim, mas eu
recusei. Imaginei que ele pudesse vir a fazer coisa ainda pior do que havia
feito, abandonando-me, sozinha, na comboio. Clica no link para ouvir as musicas http://www.antoniorita-ferreira.com/pt/para-ouvir
- Luís Loforte e Edmundo Galiza Matos
Notícias, Maputo, Quarta-Feira, 7
de Novembro de 2012
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