06 novembro 2012

LIVRO “ESTÓRIAS DE ESPIRITUALIDADE”, DE ALDINO MUIANGA: ESTÓRIAS DA NOSSA ESPIRITUALIDADE OU AS ESTÓRIAS QUE SE QUEREM PRESENTES


LIVRO “ESTÓRIAS DE ESPIRITUALIDADE”, DE ALDINO MUIANGA: ESTÓRIAS DA NOSSA ESPIRITUALIDADE OU AS ESTÓRIAS QUE SE QUEREM PRESENTES

Capa do novo livro de Aldino Muianga

Aldino Muianga, autor já incensado pela crítica mais rigorosa, aplaudido pela geração de escritores de que este prefaciador é parte e pregoeiro da limpidez dos seus textos, dispensa apresentações.

O seu nome é capital suficiente para se atestar a elegância das frases, a sonoridade dos parágrafos e, o que é profundo e lapidar, encontrar valores que resumam de histórias enraizadas num passado sem cidadania nestes tempos de construção de identidades sobre palafitas, longe do som das maracas nas pernas em delírio dos dançarinos macondes, do inconfundível coro das trombetas de cabaças dos tocadores nyanjas, das espantosas vibrações das palhetas de metal das mbiras, kalimbas ou njari, lamelofones largamente espalhados pela zona central dos país, dos cantares islamizados das mulheres macuas, ou do coro de flautas, chamadas chimvekas, dos jovens chopes. Em Aldino, e particularmente nestas estórias da nossa espiritualidade, encontramos esse secular lastro de vozes e cantares, de mitos e lendas, que em metamorfoses contínuas vão ocupando o periférico espaço das cidades dominadas por valores de outras racionalidades.
Os arrabaldes de Lourenço Marques, ontem, Maputo, hoje, são os cenários privilegiados das histórias de Aldino. Nado e crescido no bairro indígena da Munhuana, o autor é, ao lado de outros notáveis escritores de vivência suburbana, como Marcelo Panguana e Juvenal Bucuane e, mais distante, a roçar o campo, o Suleimane Cassamo, o grande paladino de temáticas da tradição em alteridade, de encontros conflituantes, de um modo de ser característico dos subúrbios. Mundo de histórias fantásticas, de enredos maravi-lhosos, os subúrbios de ontem são os intermináveis filões de estórias do Aldino, os alfobres de que não dispensa o interior da sua casa espiritual, pois a elas se socorre insistentemente, ora carregado de angústias, ora querendo deleitar-se, encantando-nos com as histórias que perduram ao tempo.
Nesta colectânea, Mitos – estórias da nossa espiritualidade, Aldino Muianga, médico de formação, resolveu trazer ao de cima o confronto entre a racionalidade materializada nos compêndios da medicina de que o autor/narrador é praticante e as fantásticas estórias que remontam da infância, num enredo em crescendo de conflitualidade, de exasperação: A Gina com Jota. Texto curto, aparentemente vulgar pela tecla já usada, a de contar a história de uma paixão da adolescência, aqui expressa, como era prática, numa carta sofrida: Minha querida e amada Jina/ O meu coração ficou em pedaços, quando ti descobri amor. O senhor é o senhor e só ele é que sabe e vê o meu sofrimento por você, amor. Quando passas pela rua ti vejo e sento o meu coração a bater. Os meus olhos ti vem e gostam de ti ver passar, mesmo assim quando já passaste fico com muitas dores de saudade. Mas o texto, tal como ciclone Claude que se abateu sobre a cidade de Lourenço Marques, nos finais de Dezembro de 65 e princípios de 66, muda completamente, ganha contornos inesperados, densidade imprevista.
O ciclone afasta famílias, aloja e desaloja, dispersa amigos e amores. O narrador da estória A Gina com Jota torna-se médico, aspira os ares da revolução, vive os primeiros anos da independência na nortenha província do Niassa e, de forma inesperada e sem pedir licença, aparece na consulta a Jina da adolescência, agora mulher marcada pelo sofrimento. A estória ganha outros ângulos no médico narrador. A Jina existe, esteve na consulta, o médico encaminhou-a à enfermaria; mas na pauta dos doentes consultados e internados, a Jina nunca existiu:Ontem não tivemos nenhuma  paciente com esse nome, nem me recordo de ter acompanhado alguém às  enfermarias.
É o ponto da história. O nó entre culturas, saberes que se cruzam, do cá e do além, tal como no Diálogo à beira da sepultura, onde o personagem, com flores murchas, pobres e baratas, rejeição das próprias sobras das vendas do negociante, se posta diante de uma campa, tendo, em redor, como cenário, a atroz paisagem de sepulturas em ruínas, mausoléus decadentes, desmoronados abrigos de almas, casas de foragidos, e aqui e ali, sofridos penitentes vergando as costas e dando punhadas no chão em orações. Nas lápides os epitáfios são desafios gramático-poéticos esculpidos no mármore, mensagens gravadas com tintas de lágrimas cristalinas. O personagem, neste cemitério de vivos e mortos, está em diálogo com um defunto que presume ser o pai, mas que no fim da curta e intensa história, apercebe-se que não se tratava do pai e, a consolar-se, diz para si: prestar tributo a um defunto é o mesmo que prestá-lo a outros. Mas uma voz, à saída, se fez ouvir.
Ao ler estas estórias que Aldino as confeccionou com ingredientes que só ele sabe dosear, senti-me em casa. Fui tocado pela curiosidade, pois longe estava eu de pensar na galinha como personagem de referência no mundo efabulatório, na Fala das Galinhas; e o requinte de malvadez que a Casa das Mambas faz emergir? E a triste estória do jovem que transpôs o afamado mundo dos prostíbulos da cidade de Lourenço Marques, em Uma Visita ao Prostíbulo? E a honra na Dama da Honor? E a velha sage Khissane que atraía à sua cabana A cabra do Soba com vagens partidas de matsimbe, cujo feijão emite essências que são um chamariz para determinados herbívoros?
Enfim, ler estas estórias é ir de encontro aos referenciais que o tempo presente tende a esbater, mais por nossa própria culpa, pois ao erguermos as nossas balizas não nos preocupamos com o material que compõe os postes dos nossos limites. É provável que a Alma Peregrina diga respeito a todos nós, desatentos ao mundo aos nossos pés, como a Selane, «sentenciada a regressar à terra para espiar o castigo pelas minhas faltas. (…) Sem morada ou piedade de alguém caridoso, eu espírito de Selane, vagueei por muitos caminhos, atravessei rios e florestas, colhi abrigo na serração dos matos, acoitei-me nas concavidades das rochas, em busca do meu eu verdadeiro, da reconciliação comigo mesma e com os meus defuntos. Sou uma alma penada, uma vagabunda à procura de um caminho para uma eternidade tranquila.»
Estou em crer que Aldino Muianga, nestas estórias da nossa espiritualidade, mais do que em outras obras suas de valor inquestionável, diga-se, encontrou-se com o seu mundo, não para exorcizá-lo, mas para o trazer à perenidade das letras de modo a que todos o partilhem sem espartilhos de qualquer espécie.
Leiam o livro com prazer, encontrem-se nos textos, e reergam as vossas próprias estórias.
  • Ungulani Ba Ka Khosa

Maputo, Quarta-Feira, 7 de Novembro de 2012:: Notícias


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