LIVRO “ESTÓRIAS DE ESPIRITUALIDADE”, DE ALDINO MUIANGA: ESTÓRIAS DA NOSSA
ESPIRITUALIDADE OU AS ESTÓRIAS QUE SE QUEREM PRESENTES
Capa do novo livro de Aldino Muianga |
Aldino Muianga, autor já incensado pela
crítica mais rigorosa, aplaudido pela geração de escritores de que este
prefaciador é parte e pregoeiro da limpidez dos seus textos, dispensa
apresentações.
O seu nome é capital suficiente para se
atestar a elegância das frases, a sonoridade dos parágrafos e, o que é profundo
e lapidar, encontrar valores que resumam de histórias enraizadas num passado
sem cidadania nestes tempos de construção de identidades sobre palafitas, longe
do som das maracas nas pernas em delírio dos dançarinos macondes, do
inconfundível coro das trombetas de cabaças dos tocadores nyanjas, das
espantosas vibrações das palhetas de metal das mbiras, kalimbas ou njari,
lamelofones largamente espalhados pela zona central dos país, dos cantares
islamizados das mulheres macuas, ou do coro de flautas, chamadas chimvekas, dos
jovens chopes. Em Aldino, e particularmente nestas estórias da nossa
espiritualidade, encontramos esse secular lastro de vozes e cantares, de mitos
e lendas, que em metamorfoses contínuas vão ocupando o periférico espaço das
cidades dominadas por valores de outras racionalidades.
Os arrabaldes de Lourenço Marques, ontem,
Maputo, hoje, são os cenários privilegiados das histórias de Aldino. Nado e
crescido no bairro indígena da Munhuana, o autor é, ao lado de outros notáveis
escritores de vivência suburbana, como Marcelo Panguana e Juvenal Bucuane e,
mais distante, a roçar o campo, o Suleimane Cassamo, o grande paladino de
temáticas da tradição em alteridade, de encontros conflituantes, de um modo de
ser característico dos subúrbios. Mundo de histórias fantásticas, de enredos
maravi-lhosos, os subúrbios de ontem são os intermináveis filões de estórias do
Aldino, os alfobres de que não dispensa o interior da sua casa espiritual, pois
a elas se socorre insistentemente, ora carregado de angústias, ora querendo
deleitar-se, encantando-nos com as histórias que perduram ao tempo.
Nesta colectânea, Mitos – estórias da nossa
espiritualidade, Aldino Muianga, médico de formação, resolveu trazer ao de cima
o confronto entre a racionalidade materializada nos compêndios da medicina de
que o autor/narrador é praticante e as fantásticas estórias que remontam da
infância, num enredo em crescendo de conflitualidade, de exasperação: A Gina
com Jota. Texto curto, aparentemente vulgar pela tecla já usada, a de contar a
história de uma paixão da adolescência, aqui expressa, como era prática, numa carta
sofrida: Minha querida e amada Jina/ O meu coração ficou em pedaços, quando ti
descobri amor. O senhor é o senhor e só ele é que sabe e vê o meu sofrimento
por você, amor. Quando passas pela rua ti vejo e sento o meu coração a bater.
Os meus olhos ti vem e gostam de ti ver passar, mesmo assim quando já passaste
fico com muitas dores de saudade. Mas o texto, tal como ciclone Claude que se
abateu sobre a cidade de Lourenço Marques, nos finais de Dezembro de 65 e
princípios de 66, muda completamente, ganha contornos inesperados, densidade
imprevista.
O ciclone afasta famílias, aloja e
desaloja, dispersa amigos e amores. O narrador da estória A Gina com Jota
torna-se médico, aspira os ares da revolução, vive os primeiros anos da
independência na nortenha província do Niassa e, de forma inesperada e sem
pedir licença, aparece na consulta a Jina da adolescência, agora mulher marcada
pelo sofrimento. A estória ganha outros ângulos no médico narrador. A Jina
existe, esteve na consulta, o médico encaminhou-a à enfermaria; mas na pauta
dos doentes consultados e internados, a Jina nunca existiu:Ontem não tivemos
nenhuma paciente com esse nome, nem me recordo de ter acompanhado alguém
às enfermarias.
É o ponto da história. O nó entre culturas,
saberes que se cruzam, do cá e do além, tal como no Diálogo à beira da
sepultura, onde o personagem, com flores murchas, pobres e baratas, rejeição
das próprias sobras das vendas do negociante, se posta diante de uma campa,
tendo, em redor, como cenário, a atroz paisagem de sepulturas em ruínas,
mausoléus decadentes, desmoronados abrigos de almas, casas de foragidos, e aqui
e ali, sofridos penitentes vergando as costas e dando punhadas no chão em
orações. Nas lápides os epitáfios são desafios gramático-poéticos esculpidos no
mármore, mensagens gravadas com tintas de lágrimas cristalinas. O personagem,
neste cemitério de vivos e mortos, está em diálogo com um defunto que presume
ser o pai, mas que no fim da curta e intensa história, apercebe-se que não se
tratava do pai e, a consolar-se, diz para si: prestar tributo a um defunto é o
mesmo que prestá-lo a outros. Mas uma voz, à saída, se fez ouvir.
Ao ler estas estórias que Aldino as
confeccionou com ingredientes que só ele sabe dosear, senti-me em casa. Fui
tocado pela curiosidade, pois longe estava eu de pensar na galinha como
personagem de referência no mundo efabulatório, na Fala das Galinhas; e o
requinte de malvadez que a Casa das Mambas faz emergir? E a triste estória do
jovem que transpôs o afamado mundo dos prostíbulos da cidade de Lourenço
Marques, em Uma Visita ao Prostíbulo? E a honra na Dama da Honor? E a velha
sage Khissane que atraía à sua cabana A cabra do Soba com vagens partidas de
matsimbe, cujo feijão emite essências que são um chamariz para determinados
herbívoros?
Enfim, ler estas estórias é ir de encontro
aos referenciais que o tempo presente tende a esbater, mais por nossa própria
culpa, pois ao erguermos as nossas balizas não nos preocupamos com o material
que compõe os postes dos nossos limites. É provável que a Alma Peregrina diga
respeito a todos nós, desatentos ao mundo aos nossos pés, como a Selane,
«sentenciada a regressar à terra para espiar o castigo pelas minhas faltas. (…)
Sem morada ou piedade de alguém caridoso, eu espírito de Selane, vagueei por muitos
caminhos, atravessei rios e florestas, colhi abrigo na serração dos matos,
acoitei-me nas concavidades das rochas, em busca do meu eu verdadeiro, da
reconciliação comigo mesma e com os meus defuntos. Sou uma alma penada, uma
vagabunda à procura de um caminho para uma eternidade tranquila.»
Estou em crer que Aldino Muianga, nestas
estórias da nossa espiritualidade, mais do que em outras obras suas de valor
inquestionável, diga-se, encontrou-se com o seu mundo, não para exorcizá-lo,
mas para o trazer à perenidade das letras de modo a que todos o partilhem sem
espartilhos de qualquer espécie.
Leiam o livro com prazer, encontrem-se nos
textos, e reergam as vossas próprias estórias.
- Ungulani
Ba Ka Khosa
Maputo,
Quarta-Feira, 7 de Novembro de 2012:: Notícias
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