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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

06 novembro 2012

ANA: A DIVA DE FANY PFUMU QUE AINDA VIVE


ANA: A DIVA DE FANY PFUMU QUE AINDA VIVE
Ana ladeada por Luis Loforte, a direita e Edmundo Galiza Matos, a esquerda

Estamos em finais dos anos 40 do século XX. O Jive e o boogie-woogie são as novas designações para o blues, um blues que, no lugar do lamento, melancolia e resignação que até aí o caracterizavam, acabava de enveredar pelo ritmo, dança e folia.
Entretanto, a União Sul-Africana proclama o Apartheid, opondo não só politicamente negros e brancos, como também traçando caminhos de cultura divergentes entre eles. Enquanto a classe dominante se fechava no seu folclore para desenvolver uma base política e cultural segregacionista, a maioria negra absorve, em doses maciças, os ritmos provenientes de outros desafortunados, os afro-americanos levados à força para o chamado novo mundo, a América do Norte. Os inóspitos bairros negros de Joanesburgo são pequenos reflexos de Chicago e Menfis. Estavam assim criadas as condições para o nascimento de novos sons na África Austral, tendo como epicentro a África do Sul. E a síntese do jive, boogie-woogie e as múltiplas manifestações musicais de toda uma região resultou naquilo que rapidamente exigiu uma designação autónoma. E teve-a: kwela!
Kwela que significa sobe, sobe para o carro celular da polícia sul-africana depois da captura dos recalcitrantes nos bares clandestinos, os shibines, nostownships das dark cities, as cidades sem luz reservadas a negros na grande metrópole de Joanesburgo.
Qual bola de neve, o kwela induziu outras sínteses, não só na África do Sul, como também nos territórios compondo a África Austral. Aliás, não falta quem diga que o kwela, propriamente dito, terá tido a sua origem no Malawi, ou entre malawianos nas minas do rand. Mas isso, agora, pouco importa, realçando-se apenas o facto de toda a região se ter deixado enredar pela dinâmica do kwela.
As bandas do novo estilo nasciam como que cogumelos depois da chuva, a maior parte das quais com designações à imagem das jag bands de Menfis:The four yanksAfrican Jazz PioneersHotshotsOrlando Six, Jazz Danzzlers,The King Kong Cast. E os títulos dos temas musicais não podiam ser mais sugestivos: jive township USA special (iú ess ei spechial), kwela blues.

OS PRIMÓRDIOS

kwela começou por ser uma música de rua e tendo como instrumento principal a flauta, daí a designação, em inglês, de pennywhistle song.Perguntarão porquê a flauta em vez de outros instrumentos? O que sabemos é que terá sido a flauta pela simples razão de que é um instrumento barato, portátil e susceptível de ser tocado a solo ou por um conjunto de executantes. E talvez também porque a flauta pode ser fabricada com relativa facilidade e usando materiais rústicos, como o prova o facto de qualquer pastor de gado a possuir. Mas a flauta transportava consigo algum simbolismo para o homem negro sul-africano. Serviu igualmente para avisar o aproximar das forças policiais repressivas, fosse para fugir ou mesmo para se desfazer de qualquer objecto proibido, como a navalha. Mas o kwela não se ficou apenas pela flauta e pelo seu parente mais próximo, a harmónica, assim como também se não confinou nas fronteiras sul-africanas. Internacionalizou-se e estendeu-se aos mais variados instrumentos musicais, como as violas eléctricas e, principalmente, o saxofone, o trompete, trombone e mesmo o clarinete. Curiosamente, por estas alturas o kwela já incorporara outras componentes musicais que, por desejo de autonomia, ou talvez até por estratégias publicitárias, exigiram designações diferenciadas. É assim que surgiram obump, o bump jivebhaqanga, entre várias outras. Em todas elas, porém, reconhece-se facilmente que o kwela está sempre presente, sendo até elemento dominante. Afinal, tudo quanto é ainda hoje a estrutura musical da África do Sul.

A MARRABENTA E FANY PFUMU
Fany Pfumo em palco


Dissemos logo a abrir este texto que toda a região da África Austral se deixou enredar pela dinâmica do kwela. E que o kwela, por sua vez, se solidificara a partir de uma conhecida ramificação do blues, o jive. Só que ficar-se pela afirmação de que o kwela evoluiu do jive pode ser redutor, uma meia verdade. Em rigor, o kwela surge a partir de um estilo bem mais antigo e criado a partir de uma dança desenvolvida nas minas sul-africanas, a marabi, e que só mais tarde incorporaria o jive, a tal ramificação do blues muito em voga nos 40.
É significativo afirmar que foram as minas do rand que desenvolveram amarabi, uma vez que se mata logo à nascença qualquer veleidade em dizer-se que o kwela ou outros estilos musicais que evoluíram a partir dele são de matriz exclusivamente sul-africana, e até pelo facto de Joanesburgo ter sido e continuar a ser uma convergência de nações vizinhas e, por consequência, de línguas e de culturas. Mas a-propósito do que nos leva a escrever este texto, a  questão que colocamos é como é que a nossa canção, a canção moçambicana, se deixou influenciar pela envolvente kwela?
Foram muitos, alguns dos quais anónimos ou diluídos em bandas sul-africanas, os músicos moçambicanos que se deixaram enredar pelo movimento kwela e seus derivados. Pode servir de exemplo de anonimato voluntário o facto de Alexandre Langa ter evoluído na África do Sul sob o nome de Kid Mnhamana, o tal da famosa canção Asha number two, muito dançada nos 60 e 70 na então Lourenço Marques e na cidade da Beira. Em rigor, e ainda que tenham mais tarde incorporado muitos dos seus elementos, os músicos moçambicanos que evoluíram na África do Sul não foram muito de tocar o kwela propriamente dito, antes preferindo caldeirar os seus próprios ritmos com a marabi. Tudo isto serve de base para dizermos que aquilo a que hoje chamamos de marrabenta, tal como o ritmo kwela e, já agora, amakwayela, evoluíram a partir da marabi. Por isso, contam os que trabalharam nas minas por aqueles anos, dançar marrabenta e makwayela, naquelas circunstâncias, era um factor de identidade e de orgulho. Contam ainda que eram fortemente recriminados os dançarinos que eventualmente deixassem escapar qualquer gesto da dança marabi quando se executassem amarrabenta e a makwayela, o que prova que estas eram danças de auto-afirmação. E quem foram, então, os nomes mais sonantes da marrabenta?
De todos eles, destaque maior terá de ser dado a Alexandre Jafete, Ben Massinga, Francisco Balói, Alfiado Vilanculos, Moniz Nothiço, Francisco Mahecuane e, sobretudo, Fany Pfumu, cuja passagem dos 25 anos da sua morte assinalamos amanhã, dia 8 de Novembro.

FANY PFUMU

No meio familiar, como na maior parte das famílias africanas de então, ele respondia pelo nome que os pais lhe fizeram herdar do seu avô paterno,Mubangu. Foi para Joanesburgo no início da década de 1950 e sob contrato da companhia mineira Village Mine Reef Limited. Por qualquer razão que desconhecemos, alíás que nem ele próprio alguma vez explicou, Mubangu não chegaria a descer às profundezas das minas, embora permanecesse nas instalações da Village Mine. Podemos no entanto especular que a sua extrema juventude, quase a roçar a adolescência, aliada às suas já reveladas habilidades musicais, terão provavelmente contribuído para que lá vivesse para divertir os mineiros ou por cumplicidade com os chefes dos compounds, que o tratavam, carinhosamente, por miúdomufana ou fanhana, o que mais tarde derivaria para Fany, Fany Pfumu, nome pelo qual o mundo da música o trataria até à sua morte, em 3 de Novembro de 1987.
Village Mine, um refúgio, mas também antro de todos os comportamentos contranaturais, aliás expressos numa das mais importantes canções de Fany Pfumu, Avasati valomu Village, claramente uma referência à homossexualidade praticada nos compounds mineiros sul-africanos.
ANA, A DIVA

Depois de abominar a homossexualidade nas minas de ouro sul-africanas, Fany Pfumu compôs-nos temas que falam de mulheres reais, GeorginaLídiaAna. Se de Georgina e Lídia Fany Pfumu fala com saudade dos prazeres vividos, recordando-lhes com enlevo e arroubo as partes pudendas, sobre aAna a coisa parece mudar um pouco de figura. Foi sua primeira companheira, mas o espírito galdério, algo comum, aliás, entre a maior parte dos artistas, fez com que fosse rejeitado, liminarmente. E, conforme testemunho da própria Ana, por causa da Georgina. Conseguimos um depoimento vivo desta Ana que Fany Pfumu perpetuou numa das suas obras musicais mais emblemáticas. A idade, exacerbada por uma trombose que lhe vai mitigando, paulatinamente, as faculdades, não impediu que as palavras, ditas em ronga vernacular, traduzissem todo o sentido do raciocínio. Vive à beira das salinas, na cidade da Matola, em cuja residência entrámos pela mão de um homem muito conhecido naquelas bandas, o Paulo N’Tchembene, nosso amigo de longa data, a quem endereçamos, desde já, os nossos mais sinceros agradecimentos. Encontrámos a Ana sentada e envolta em capulanase  mukumes garridos, expectativa fortemente expressa em feições delicadas, apesar da avançada idade, deixando-nos uma forte convicção de que foi mulher lindíssima.
Diz chamar-se Ana Joaquim N’Kuna. Não se lembra do ano em que conheceu Fany Pfumu, mas identifica-nos as circunstâncias:

- Conheci-o no Umbelúzi, o meu pai trabalhava nos SMAE (Serviços Municipalizados de Água e Electricidade), o pai dele também, é lá onde nos conhecemos.
Tiveram filhos?
Não, Deus assim não quis;
A meio da entrevista, ocorre-nos perguntar que sentimento lhe assalta quando escuta a canção que Fany Pfumu lhe dedicou. A pergunta parece trazer-lhe algum gozo interior, daí o sarcasmo com que nos responde:
 - Até parece que estou a vê-lo!
 À pergunta sobre quais as canções que mais gosta de escutar do reportório de Fany Pfumu, Ana diz que são muitas, mas não deixa de particularizar uma, sem, porém, lhe conhecer o título, optando por nos recitar uma porção do refrão. Depois, a conversa começou a ser fluída, com o Paulo Tchembene a assumir, também, um papel preponderante na entrevista, fazendo jus a sua fluência em ronga.
 Em que circunstâncias começou a gostar de Fany Pfumu?
 - Bem, agora parece-me que a conversa começa a ser séria. Na verdade, tudo começou por uma simples brincadeira. Brincámos, brincámos, e depois um grande amor entrou em nós.
E como é que esse amor acabou se vocês se amavam assim tanto.
Ana recua no tempo e deixa escapar algum sentimento de frustração, de revolta, mesmo:
- Apanhámos o comboio juntos, na Matola-Gare, onde havíamos ido para visitar os avós dele, mas ele depois decidiu abandonar-me, deixando-me sozinha no interior do comboio e atraído por uma rapariga que apareceu na estação...
- Não será a Georgina, a Georgina Nwamba da conhecida canção de Fany Pfumu?
- Era a Georgina Nwamba, sim, soube depois...
Fizemos ver à Ana que também ela não fora suficientemente prudente, ao acreditar que uma pessoa com tantas pretendentes, por causa da fama, se pudesse prender, exclusivamente, a si. Ana recorre a Deus para nos responder:
- Foi Deus que fez com que nos amássemos!
E qual foi, então, a sua reacção quando viu a Georgina arrancar-lhe o companheiro que tanto amava?
- Procurei logo esquecer o que aconteceuDisse para mim que Deus certamente me indicará um outro homem para amar.
Escutando a canção que Fany Pfumu dedica à Ana, facilmente se entende que ele tentou a reconciliação, sem sucesso. É que no-lo confirma:
- Ele tentou a reconciliação, sim, mas eu recusei. Imaginei que ele pudesse vir a fazer coisa ainda pior do que havia feito, abandonando-me, sozinha, na comboio. Clica no link para ouvir as musicas http://www.antoniorita-ferreira.com/pt/para-ouvir
  • Luís Loforte e Edmundo Galiza Matos

Notícias, Maputo, Quarta-Feira, 7 de Novembro de 2012



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