A
ASA DA LETRA
Por
Mia Couto
A
reclamação de Joaquim Chissano de que os países europeus deveriam formalmente
pedir desculpas a África pela escravatura abre espaço para algumas
interrogações.
Ninguém
pode duvidar do horror que foi a escravatura e de quanto alguns dos países
europeus tiraram proveito dessa desumanidade. Persiste ainda hoje uma tendência
em lavar esse passado e criar uma amnésia colectiva sobre essa mancha na
história da humanidade. Na realidade, nenhuma desculpa formal poderá corrigir
essa herança histórica. Recuperar o sentido da História e sugerir modos de
rectificarmos o presente, juntos, Norte e Sul: esse pode ser o lado positivo
dessa recusa em esquecer. É necessário lembrar, sempre e sempre, que os
desníveis de desenvolvimento entre os continentes são resultado da História e
não de qualquer diferença na natureza ou essência dos povos ou raças.
Mas
a exigência de desculpas dirigida apenas a europeus pode ser problematizada. Não
foram os europeus os únicos responsáveis morais e materiais pelo crime da
escravatura. Se os europeus devem desculpas aos africanos, outros parecem estar
igualmente em dívida com o passado. Na realidade, o tráfico de escravos
africanos a longa distância já tinha sido inventado muito antes da chegada dos
europeus a África. Foram os árabes os primeiros a escravizar milhões de negros
da África sub-sahariana. Formas ignominiosas de racismo foram criadas e os
africanos (que já eram pejorativamente designados de zanj) foram
classificados como “povos de cor escura, nariz achatado, cabelo crespo e de
muito pouca inteligência” (como referiu o escritor árabe Maqdisi)
O
historiador tunisino Ibn Kahldun ainda no século 14 afirmava que “os negros são
muito submissos e propensos à escravidão porque eles têm muito pouco que possa
ser entendido como essencialmente humano e possuem atributos que são muito
semelhantes aos dos mais estúpidos animais”.
Por
outro lado, elites africanas participaram activamente e desde sempre no rapto e
venda de seres humanos. De forma permanente e sistemática foi a cumplicidade de
grupos africanos que permitiu e produziu a escravatura. Quem capturava e vendia
os escravos do interior para a costa eram negros africanos. Como diz o
historiador e economista Tunde Obadina “ a vasta maioria dos escravos
arrancados de África foram vendidos por chefes africanos, intermediários e por
uma aristocracia que viu nesse negócio uma extraordinária fonte de
enriquecimento” Todos estes grupos esclavagistas são, do ponto de vista moral,
tão responsáveis quanto os europeus que participaram no tráfico humano.
O
mesmo Tunde Obadina escreve: “Quando os britânicos aboliram o tráfico de
escravos em 1807 não foram apenas esclavagistas europeus que se opuseram mas
toda a aristocracia africana que se tinha acostumado a fazer vida da venda
directa e dos impostos cobrados sobre as caravanas de escravos que passavam
pelos seus territórios”. José Capela refere a mesma reacção por parte de grupos
internos de Moçambique que se rebelaram contra a interdição do comércio.
O
assunto dos escravos é uma caixa de pandora. Abre-se a tampa e emergem
fantasmas de diversas cores e tamanhos. Não podemos esquecer que a religião
muçulmana e católica durante séculos foram usadas para abençoar a escravatura.
Todos os povos em todos os continentes criaram e mantiveram formas de
escravatura. Dentro de Moçambique séculos de escravatura doméstica beneficiaram
elites internas. Uma grande parte dos moçambicanos é descendente de escravos.
Mas uma outra parte é descendente de vendedores de escravos. A questão, em
todos os casos, dentro e fora de África, é a seguinte: não podem ser
responsabilizadas gerações presentes por todos esses processos históricos do
passado.
Além
disso, a escravatura não é coisa do passado. Ainda hoje persistem formas
escabrosas de tráfico de escravos entre países africanos. A escravatura ainda
hoje se pratica na Mauritânia; e, no Golfo da Guiné, são surpreendidos, com
alguma frequência, navios negreiros cuja “mercadoria” circula na África
Ocidental. Ou seja, para encontrar o mal não é preciso olhar para os outros e
para o passado. Talvez fosse melhor preocuparmo--nos com estas aberrações, que
são presentes e nossas, muito nossas. É demasiado simples procurar vítimas e
culpados num único território geográfico. As desculpas, se as tem que haver,
deveriam vir também de dentro de África.
SAVANA - 04.03.2005
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Nota do Blog: A questão do pedido de desculpas por parte
dos europeus penso que neste momeneto não iria adiantar em nada. Na minha
opinião o mais importante é pesquisarmos amplamente este fenómeno para
permitir que o mundo saiba como ocorreu esta barbaridade. Para isso, os
governos europeus podem abrir e disponibilizar os seus arquivos para que os
pesquisadores africanos e os demais tenham acesso as fontes diversas sobre o assunto. A participação
dos reinos africanos deve ser vista antes e depois do início do tráfico
negreiro, visto que a escravatura doméstica de que Ki-Zerbo fala antes do
início do tráfico negreiro tem uma dimensão menor em relação a exportação para
as Américas. Daí que reconhecendo a participação dos próprios africanos neste
tráfico, é pertinente que se pesquise como eles foram introduzido neste negócio
como colaboradores dos mercadores europeus.
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