PARA ACABAR DE
VEZ COM A LUSOFONIA
A
lusofonia é a última marca de um império que já não existe. E o último
impedimento a um trabalho adulto sobre as múltiplas identidades dos países que
falam português
Lusofonia é um conceito vago, demasiado vago - e uma
versão kitsch de uma boa relação de Portugal com os países que
foram colónias, que são ex-colónias. Alimentada pela esquerda mais retrógrada e
pela direita mais nacionalista e nostálgica do império, a lusofonia tem uma
história, balizada por alguns acontecimentos.
Num
primeiro momento, surge a ilusão de unir o Atlântico ao Índico, Angola a
Moçambique, através de um projecto político que reforçava a necessidade de
encontrar recursos económicos extraordinários no momento em que começavam a
sentir-se no país os efeitos da revolução industrial. (Note-se que hoje é novamente
com este argumento, agora usando a terminologia do investimento empresarial e
da cooperação económica, que se evoca a lusofonia.) O projecto foi apresentado
no Congresso de Berlim (1884-85) e fundamentava-se no direito de ocupação
daqueles territórios, direito esse que na verdade era falso - à época, nenhuma
potência colonial ocupava mais do que franjas do território africano. Este
projecto, designado como Mapa Cor-de-Rosa, foi inteiramente rejeitado pelos
países que traçaram as fronteiras africanas, nomeadamente pela Inglaterra (que
impôs o Ultimato de 1890).
Num segundo momento, dá-se a apropriação salazarista da tese
do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), tese essa que
está presente na defesa política e diplomática do colonialismo, em particular
entre 1933 e 1961: “A primeira data corresponde ao ano da publicação deCasa-grande
& Senzala, obra em que são lançados os fundamentos da doutrina
luso-tropicalista; a última, ao ano da publicação de O Luso e o Trópico,
livro em que a doutrina surge em “estado acabado”” (O modo português de
estar no mundo, Cláudia Castelo). O luso-tropicalismo, que se configurou
como a essência da identidade dos portugueses, passou a ter como objectivo
criar as bases de um império mítico construído sobre os afectos e o
multi-racialismo (no qual o autor nunca vira sinais de tensão). Sem bases
históricas, baseando a sua teoria na origem, também ela “mestiça”, do português
face à influência de judeus e árabes, na sua capacidade de adaptação aos trópicos
e no seu humanismo cristão, Gilberto Freyre, sociólogo com prestígio
internacional, deu à sua tese uma cientificidade que assegurou a política do
Estado (a partir da segunda metade dos anos 50) e produziu, no campo cultural,
um conjunto vastíssimo de miríades que acabaram por estruturar o campo
das mentalidades.
Depois
do 25 de Abril, muito do trauma e do luto pela perda das últimas colónias foi
feito através de uma relativização da violência dos portugueses sobre os
africanos - a guerra colonial portuguesa teria sido mais branda do que as de
outros países colonizadores. Como se os massacres das tropas portuguesas em
Wiriyamu e Mihinjo não fossem a expressão da barbárie… Impôs-se aquilo que
seria uma cultura comum, cuja matriz era a portuguesa - e para a qual a
confusão entre língua e cultura era oportuna e baseada na relativização
das dores.
Perdido
o que restava do império, a crise da identidade nacional não foi superada por
um trabalho de revisão das narrativas identitárias nem por um trabalho
colectivo sobre as memórias na educação, na política, nas actividades culturais
e artísticas. Demorou mais de 20 anos a aparecer uma literatura; algumas, muito
poucas, artes performativas abeiraram-se do problema, e só a geração de cineastas
que começou a filmar na década de 90 se confrontou com as narrativas míticas e
com o presente das ex-colónias. “As contas a ajustar com as imagens que a nossa
aventura colonizadora suscitou na consciência nacional são largas e de trama
complexa demais. A urgência política só na aparência suprimiu uma questão que
também na aparência o país parece não se ter posto. Mas ele existe. Querendo-o
ou não, somos agora outros, embora como é natural continuemos não só a
pensar-nos como os mesmos, mas até a fabricar novos mitos para assegurar uma
identidade que, se persiste, mudou de forma, estrutura e consistência”
(Eduardo Lourenço).
Porém,
a lusofonia, no logro de ser uma pátria de uma língua comum, uma forma torpe de
neo-colonialismo, é também a prova da incapacidade de construção de um país
pós-colonial que não consegue olhar as suas ex-colónias numa relação de
confronto de interesses e de respeito pelas identidades que cada um desses
países pretende construir. Com tudo isto há, por parte da esquerda conservadora,
uma pretensa relação, baseada nos afectos e nos negócios; e, na direita, uma
relação que se baseia na nostalgia, nos negócios e na defesa do uso da língua
conforme à sua matriz lusitana.
Ora, para que esta pretensão neo-colonial exista, a RTP
África, a RTP Internacional - e, de uma forma mais naïf, o JL-
são os instrumentos adequados. Já o Acordo Ortográfico, por sua vez, é,
sobretudo pela forma como foi feito, uma tentativa de resistir ao estilhaço da
lusofonia. No entanto, também não saem bem aqueles que acusam o referido Acordo
de cedência da língua a outros países - como se ela fosse uma propriedade dos
portugueses. E não deixa de ser paradoxal que um Governo que tanto exige da
lusofonia, como se ela fosse o campo ideal de negócios - e como se alguma vez o
capital tivesse um país -, tenha feito desaparecer a cultura da missão do
Instituto Camões na última Lei orgânica - e não tenha, neste momento, nenhum
conselheiro cultural em nenhum dos países africanos de língua
oficial portuguesa.
Colonizar
ou neo-colonizar e civilizar sempre estiveram juntos; por isso é recorrente
encontrar, sob a forma de cooperação, a imposição de um assistencialismo em
língua portuguesa que civilize sem “lhes” perguntar (a eles) - como reclama
Appadurai - o que querem (o que quer o outro) e como querem (como quer esse
outro) a cooperação.
Neste processo de reconstrução de identidades, o Brasil há
muito começou com a investigação e a construção de narrativas das suas memórias
- pese embora o trabalho sobre o passado índio ser muito menos relevante do que
o africano -, e até se conseguiu construir como um país de glamour e terra de
oportunidades, mito que o liberta definitivamente de Portugal e o transforma
numa pátria de oportunidades míticas tanto para os europeus como para os
chineses, para os antilhenses ou para os africanos. A responsabilidade desta
construção mítica e aparentemente glamorosa não é, naturalmente, dos
historiadores nem dos estudioso da cultura.Mais: em África, muitos africanos
começaram também os seus trabalhos de reconstrução da identidade - de si mesmos
enquanto sujeitos históricos e num dado contexto, e dos seus países. Disso são
prova os trabalhos dos angolanos Victor Barros e António Tomás, dos
moçambicanos Mia Couto e Eliso Macamo e, em Portugal, os pertinentes estudos de
Joaquim Valentim, Cláudia Castelo, ou o trabalho da revista/sítio webBuala,
entre outros. De facto, “se a lusofonia se mantém como um princípio organizador
das representações sociais dos portugueses, não há concordância entre os
portugueses e africanos a esse respeito: os portugueses valorizam-na, os
africanos rejeitam-na. Dito de outro modo, a este nível, a valorização da
lusofonia não encontra correspondência da parte dos africanos que são, em boa
medida, interlocutores por excelência dessa lusofonia. Mais ainda, os africanos
não só manifestam uma posição contrária à dos portugueses em relação à
lusofonia, como a importância que atribuem à sua identidade étnico-nacional se
encontra associada negativamente à valorização da dimensão lusófona nas
representações das semelhanças dos portugueses com outros povos”. (Joaquim
Valentim, Identidade e Lusofonia nas Representações Sociais de
Portugueses e de Africanos).
É
compreensível. E se é possível criar uma comunidade de países que têm como
língua oficial o português, com todas as suas variantes, e cujo uso pelas
populações pode ir dos 100% (em Portugal) aos 4% (em Timor) ou aos 40% (em
Moçambique), não é possível entender uma pátria lusófona comum a países com
outras diversidades linguísticas, economias tão diferentes, regimes políticos
distinto e, em particular, histórias singulares.
Uma
das maiores violências criadas pelo luso-tropicalismo não foi querer impor ao
Brasil uma essência de ser luso. Foi, embora admitindo para o Brasil a herança
índia e para Portugal a herança árabe, excluir das ex-colónias africanas a sua
história pré-colonial. Ora, a expressão mais perversa da lusofonia é a amnésia
sobre o passado pré-colonial dos países africanos ou de Timor e, de algum modo,
a repetição dessa expressão do colonialismo que foi “a descoberta” destes povos
- que só passaram a ter história no momento em que os “descobridores” os
encontraram. A lusofonia é, pois, a última marca de um império que já não
existe. É também um impedimento a um trabalho adulto sobre as múltiplas
identidades de quem vive em Portugal.
Para
lá dos seus contornos coloniais, a lusofonia tem o efeito de uma epistemologia
negativa: impede que se entenda que a razão da criação de comunidades de países
tem por base interesses políticos e económicos, bem como jogos de partilha
territorial. É também assim com a francofonia, a Commonwealth, o G8 e
o G20.
Foi por causa desta realpolitik que Lula da
Silva, enquanto Presidente do Brasil, estabeleceu parcerias económicas Sul-Sul
com a maioria dos países subsarianos. Para esta estratégia, a lusofonia pouco
importou: o argumento cultural foi a africanidade comum (outro
mito, naturalmente).
Quanto
aos outros países cuja língua oficial é o português, não nos resta se não
admitir que produzem as suas pesquisas e trabalhos sobre as suas identidades.
Se a presença dos estudos portugueses e da literatura é quase residual nas
universidades destes países, isso não ocorre por falta de lusofonia mas sim por
haver um excesso dessa caricatura da produção cultural portuguesa exportada que
tem o nome de “Cultura Lusófona”.
Os
portugueses não têm nenhum atributo de excepcionalidade mítica. Não precisamos
de uma diplomacia lusófona; do que precisamos é de uma diplomacia de direitos e
de igualdades. Este é o momento de conhecer e dar visibilidade às produções
culturais e artísticas, às literaturas e aos trabalhos científicos destes
países por aquilo que valem, por serem incontornáveis no mundo global, por
conterem, até, uma estranheza que é, porventura, consequência da morte dessa
mesma lusofonia.
Artigo originalmente publicado no ipsílon, suplemento
cultural do jornal Público (18/1) por António
Pinto Ribeiro
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Para acabar de vez com a
lusofonia”?! Resposta a António Pinto Ribeiro
(23 de Janeiro de 2013 | Arquivado sob: Internacional, Renato Epifânio |
Renato Epifânio - A 18 de Janeiro de 2013, publicou
António Pinto Ribeiro (APR), no Suplemento “Ípsilon” (pp. 38-39) do Jornal
“Público”, um texto intitulado “Para acabar de vez com a lusofonia”, que,
alegadamente, tem sido “alimentada pela esquerda mais retrógrada e pela direita
mais nacionalista e nostálgica do império”.
No seu manifesto anti-lusófono, APR
consegue até a proeza de apresentar o Ultimato Inglês de 1890 com um acto
anti-colonialista – quando se tratou, tão-só, da afirmação (vitoriosa) do
colonialismo inglês sobre o colonialismo português –, isto para além de
caricaturar o pensamento de Gilberto Freyre (que, alegadamente, “nunca vira
sinais de tensão no multi-racialismo”) e de diabolizar a colonização
portuguesa, como se a “expressão da barbárie” tivesse sido a sua única face.
Tudo isto para concluir que a lusofonia
é um “logro”, uma “forma torpe de neo-colonialismo”, a “última marca de um
império que já não existe”. Tal virulência “argumentativa” só se destina,
porém, aos portugueses – já que, alegadamente, “os portugueses valorizam-na [a
lusofonia], os africanos rejeitam-na”. Na sua virulência sectária, APR acaba
pois por atirar sobre si próprio, renegando-se como português.
Para o evitar, ainda que correndo o
risco das generalizações, bastaria salvaguardar que “em geral…”. O problema é
que nem sequer isso é verdade. Conforme pode ser confirmado por pessoas que
sabem do que falam quando falam de lusofonia (como, por exemplo, o Embaixador
Lauro Moreira, que trabalhou longos anos na Missão Brasileira da CPLP:
Comunidades dos Países de Língua Portuguesa), esta é cada vez mais valorizada –
não só pelos portugueses, mas também pelos africanos dos países de língua
oficial portuguesa, não esquecendo o Brasil e Timor-Leste.
Timor-Leste, de resto, é, provavelmente,
o país que mais valoriza, para desgosto de APR, a lusofonia. Por razões óbvias:
se Timor-Leste conseguiu resistir à ocupação indonésia, mantendo a sua
autonomia cultural, e, depois, aceder à independência política, foi, em grande
medida, por causa de tão maldita palavra: lusofonia. Não decerto por acaso, as
autoridades timorenses fizeram questão de consagrar o português como língua
oficial do país, e não o inglês, como pretenderam (e pretendem) a Austrália e
outros países anglófonos. A razão é simples: Timor-Leste sabe bem que a
lusofonia é a melhor garantia do seu futuro político.
Bastaria o exemplo timorense para
afirmar a lusofonia como factor de libertação e não de opressão, como pretende
APR. Mas vamos aos PALOPs: Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Se,
como pretende APR, a língua portuguesa é a memória viva da “violência dos
portugueses sobre os africanos”, por que estranha razão nenhum desses países
renegou a língua portuguesa como língua oficial? – antes, pelo contrário, tudo
têm feito para sedimentar a língua portuguesa em cada um desses países. Será
porque continuam a ser “colonialistas”?? Ou serão apenas mosoquistas???
Decerto, não é porque valorizem a lusofonia – já que, não o esquecemos, por uma
qualquer “excepcionalidade mítica” que nos transcende, “os africanos rejeitam a
lusofonia”.
E passemos ao Brasil – segundo APR,
“Lula da Silva, enquanto Presidente do Brasil, estabeleceu parcerias económicas
Sul-Sul com a maioria dos países subsarianos. Para esta estratégia, a lusofonia
pouco importou”. Para azar de APR, não há muito tempo, o Embaixador brasileiro
Jerónimo Moscardo, na insuspeita Fundação Mário Soares, esclareceu precisamente
que assim não é, na sua conferência “Agostinho da Silva e a política externa
independente do Brasil”. De resto, como APR sabe ou, pelo menos, deveria saber
(mas, estranhamente, não refere), Agostinho da Silva foi, em Portugal e no
Brasil, onde foi assessor do Presidente Jânio Quadros, o grande prefigurador de
uma comunidade de língua portuguesa[1].
Temos plena consciência que há muita
gente que, no que concerne à lusofonia, apenas valoriza a dimensão económica.
Mas isso, por si só, não desqualifica a lusofonia – também, entre nós, houve
muita gente a valorizar a Europa por causa dos famosos “fundos”. Pertinente
referência, esta – tanto mais porque APR, falando do “estilhaço da lusofonia”,
não fala uma única vez da Europa, do Euro ou da União Europeia. Compreende-se
bem porquê tão gritante omissão: é precisamente face ao estilhaço (este sim,
real) da União Europeia que cada vez mais portugueses compreendem que foi um
colossal erro estratégico termos, durante décadas, desprezado os laços com os
restantes povos lusófonos. Isso fragilizou, em muito, a nossa posição no plano
global e na própria União Europeia – onde estamos, cada vez mais, numa posição
subalterna.
Face ao estilhaço (este sim, igualmente
real) da globalização, o que acontecerá naturalmente, por mais que isso
desgoste os arautos do pós-modernismo, é que os países se religarão com base
naquilo que de historicamente há de mais sólido: as afinidades
linguístico-culturais. Nessa medida, também para Portugal a lusofonia é a mais
sólida garantia do seu futuro: cultural, económico e político. Não perceber
isto é não perceber nada. A lusofonia não é pois uma excrescência do passado
mais o fundamento maior do nosso futuro. Um fundamento firme: sem escamotear a
violência da colonização portuguesa – não há colonizações não violentas –, a
verdade, que pode ser confirmada todos os dias, é que a relação que existe
entre o povo português e os outros povos lusófonos não é equiparável a relação
que há entre outros povos ex-colonizadores e ex-colonizados. Não perceber isto
é não perceber nada. Mesmo nada.
De uma forma paternalista (para não
dizer neo-colonialista), APR pretende aconselhar os outros povos lusófonos a
renegarem a lusofonia, como se eles não pudessem escolher qual o melhor caminho
para o seu próprio futuro – como até APR já percebeu, a lusofonia é, cada vez
mais, essa escolha. Daí, de resto, o tom virulento do artigo – se a lusofonia
fosse algo assim tão estilhaçado… Apenas num ponto damos razão a APR: “os
portugueses não têm nenhum atributo de excepcionalidade mítica”. Ou seja, o
nosso futuro enquanto país não está garantido. Mas isso, precisamente, só
reforça a importância desse caminho que se cumprirá pela simples mas suficiente
razão de que interessa a todos. Como aconteceu no caso timorense. Como, apesar
de tudo, acontece com a Guiné-Bissau – se esta tem futuro, é porque há uma
Comunidade Lusófona que está disposta a fazer algo (ainda que, até ao momento,
não o suficiente). Como acontece também, enfim, com Portugal – no beco sem
saída da troika, a
Lusofonia é, cada vez mais, a nosso único caminho de futuro. Pena que APR não o
perceba.
Renato Epifânio é presidente do MIL – Movimento Internacional Lusófono.
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