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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

03 julho 2013

ENCONTRO COM PR: DHLAKAMA DISPONÍVEL MAS EXIGE GARANTIAS

 
Dhlakama falando a jornalistas em Satungira (Gorongosa) no dia 2 de Julho de 2013

O LÍDER da Renamo, Afonso Dhlakama, reafirmou ontem estar disponível para um encontro aberto  e produtivo com o Chefe do Estado, Armando Guebuza, mas colocou duas condições.

A primeira, que o encontro poderá ter lugar em Maputo se houver garantias de segurança que passam pela retirada da Força de Intervenção Rápida (FIR)  no perímetro de Satungira onde se encontra aquartelado. A segunda, que o encontro se realizaria em Gorongosa, se as garantias da primeira condição não fossem concretizadas.
Dhlakama fez estes pronunciamentos, em Satungira, na serra de Gorongosa, Sofala, onde se encontra a viver desde 15 de Outubro do ano passado, depois de receber, no final da manhã de ontem, uma delegação do Observatório Eleitoral, uma plataforma de organizações da sociedade civil de carácter religioso, da área dos direitos humanos e de promoção de cidadania.
No encontro, de cerca de duas horas que manteve com a delegação do Observatório Eleitoral, chefiada pelo respectivo presidente, o bispo Dinis Matsolo, foi tornado público que ainda neste sábado  uma delegação da sociedade civil constituída por Dom Dinis Sengulane e o Reitor do Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), Lourenço do Rosário, que ele designou de facilitadores, vai se encontrar com o líder da Renamo para também buscarem formas de aproximação de posições entre Dhlakama e o Presidente Guebuza.
Falando a jornalistas,  Dinis Matsolo, disse que o importante é que há abertura para um diálogo construtivo entre ambas as partes. "Tivemos uma conversa totalmente aberta que nos mostra que há vontade de diálogo e temos que avançar para encontrar os melhores caminhos para a paz. Como moçambicanos, temos que nos articular mais num diálogo aberto. Encontramos uma abertura total em qualquer que seja a possibilidade de achar formas de ultrapassar o impasse e estamos bastantes satisfeitos com isso", sublinhou.
Aquele prelado referiu que o Observatório Eleitoral ainda vai, igualmente, articular com o Chefe do Estado, porque não há tempo para parar  e que o impasse não leve mais tempo. "O importante é que as pessoas falem honestamente sobre os assuntos e com respeito mútuo num processo de diálogo, que não é propriamente uma confrontação, mas uma oportunidade de ouvir-se a outra parte".
Fundamentalmente, Dhlakama considera que o problema essencial desta instabilidade deve-se à Lei Eleitoral que, no caso de sua revogação, a Renamo irá participar imediatamente no pleito autárquico  de 20 de Novembro, sendo que os outros assuntos na mesa do diálogo com o Governo podem ir sendo gradualmente resolvidos como forma de garantir a manutenção da paz duradoira.
Entretanto, o líder da Renamo voltou a dizer que não mais haverá guerra em Moçambique, sublinhando que “quero tranquilizar a todos, mas quero convidar o Governo, em particular ao Presidente Guebuza, que eu não tenho problema”.
“Já dei esta garantia depois da guerra dos 16 anos e o Presidente Chissano pode testemunhar isso. Não é hoje que vai ser difícil”, disse.
Na conferência de Imprensa, Dhlakama assumiu a autoria dos recentes ataques registados ao longo da Estrada Nacional Número Um e que resultaram no assassinato de civis e destruição de seus bens. Ele disse que mandou os seus homens atacarem como forma de eliminar a logística da aproximação do Exército e que o alvo  eram os soldados governamentais. Porém, indicou que as imagens chocantes e confrangedoras  das vítimas civis e indefesas, sobretudo a de uma mulher desesperada e o seu bebé a chorar depois de cair na emboscada da Renamo, levou-o a mandar parar com as incursões armadas.
Todavia, declinou responsabilidade da Renamo quanto ao assassinato dos elementos das FADM e do ataque ao paiol de Dondo, ao mesmo tempo que minimizava o impacto sobre este assunto pelo facto de no local do assalto não viverem crianças, mas sim forças militares.
Recordou que os louros sobre o ambiente de paz que o país desfruta depois dos 16 anos da guerra de desestabilização promovida pela Renamo também lhe pertencem, pois que tal se deveu muito à sua postura política.
“Aquelas medalhas que os outros ganham também me pertencem. Nunca as pedi, porque reconheço o meu papel. Não tenho que fazer “lobbies” para isso. Gostaria, por isso, que a Imprensa transmitisse correctamente que não à guerra no país e que no dia em que Guebuza mandar retiras as forças que cercam Satungira e Gorongosa eu vou imediatamente a Maputo. Pode ser já amanhã”, concluiu. 
  • Rogério Sitoe e Horácio João
In: Notícias,  Maputo, Quinta-Feira, 4 de Julho de 2013:: 


02 julho 2013

“SINTO QUE HÁ UMA ESPÉCIE DE DESAMPARO DAS PESSOAS”


Em entrevista ao “O País”, Mia Couto fala da sua relação com as palavras, da literatura e da política. Uma visão acutilante de quem fez da escrita a sua arma de combate.

Escritor moçambicano, Mia Couto


No seu livro “O gato e o escuro”, o Mia agracia-nos com uma história sobre nossos medos e sobre o universo infantil que, na verdade, nada mais é do que o nosso próprio universo. Temos muitos medos, fantasmas não resolvidos e que são um factor de permanente perturbação?
O medo! bem, agora vou recorrer ao meu lado de biólogo. o medo é uma espécie de grande conselheiro que nos avisa dos perigos. Há uma força tão poderosa dentro de nós e eu acho que toda a nossa vida é orientada em função do medo e de superação dos mesmos. A história que eu conto é a maneira de como um gato poderia ser uma criatura qualquer, enfrentando esse receio, tratando aquilo que é o objecto do medo, que seria o escuro, como um familiar, um parente, ou alguém que é parecido com ele.

A guerra será um desses medos? Uma espécie de caixa de demónios que temos medo de abrir?
É sem dúvida. Eu acho que o maior medo dos moçambicanos é que se reinstale o clima de guerra. Havia uma apreciação de que tudo isso era frágil, porque, se nos lembrarmos bem, as pessoas não queriam muito lembrar-se do tempo da guerra. Não fizeram como os sul-africanos, que criaram comissões que apurassem a verdade, para se saber quem foi o culpado, que responsabilidades existiram, etc. uma das coisas que trazem alguma aflição é estarmos perante uma possibilidade de se reinstalar um clima de violência e de guerra. O que eu sinto é que há uma espécie de um sentimento de desamparo e as pessoas precisariam - não é só a Estrada Nacional Número Um que precisa de ser protegida, mas há também uma estrada que passa por dentro de nós - da estrada da esperança, que também precisa ser protegida. Precisamos de vozes que assegurem que alguém está a tomar conta da situação.

Como é que Mia Couto vê a actual situação do país? O expectro de retorno à guerra. Por que ao fim de 21 anos de paz, estamos perigosamente a regressar à guerra?
Mais do que o silêncio, eu acho que nós não avaliamos exactamente por que é que aquela guerra nasceu. Eu acho que nós não entendemos a guerra. Não era só nesse sentido que me estava a perguntar, de entender quem foi o responsável e de se prestar contas. Nós percebemos e temos uma certa análise que não devia ser feita apenas por via do discurso político e ideológico. Quer dizer, para a Frelimo, a razão da guerra é razão clara, simples e quase simplista, e para a Renamo também. É como se estivéssemos perante uma disputa ideológica, na presença duma proposta comunista, como diria a Renamo, e terrorista, como diria a Frelimo. Eu acho que perdemos uma possibilidade de ir ao fundo da questão, porque é preciso falar da política num sentido profundo, para entendermos que erros é que cometemos, para melhor administrarmos o país. Penso que o problema da actual situação que se vive no país não está só na Renamo (...), é todo um país que está em pânico, que está receoso e precisa que garantam essa viabilidade, aquilo que eu chamei “estrada da esperança que passa por nós”. Continuo a pensar que a África no seu conjunto, apesar de dar um passo em frente e outro atrás, regista uma evolução. Hoje, há países que são democráticos, mesmo que seja nessa democracia representativa, digamos, mas se compararmos com aquilo que havia há 10/15 anos, a situação alterou-se. Entretanto, é preciso ser verdadeiro. O que me parece é que se criaram, olhe para o nosso próprio caso, discursos triunfalistas e cor-de-rosa e que, de repente, não é aquela surpresa que tem problemas básicos, mas também problemas de saber para onde é que aqueles recursos vão. Sozinho, esse discurso cria riqueza perante um cenário de pobreza.
Numa entrevista, numa escola em São Paulo, com meninos do ensino secundário, Mia é citado a dizer o seguinte sobre a sua participação política, como militante da Frelimo, num certo contexto da história: “É a grande lição que tiro, que também me ajuda hoje a estar longe desse movimento de libertação, que se conformou e se transformou naquilo que era o seu próprio contrário”.

Mantém a ideia de que a Frelimo se desvirtuou?
Mantenho, embora eu ache que dentro da Frelimo exista, obviamente, linhas. Sinto que a Frelimo já aceitou, quer dizer, esta é mais uma prova da democracia. Acho que ainda existe ali, não pretendo diabolizar, não faço esse tipo de discurso de aproximação, mas de facto o que há ali é uma grande procura. Por exemplo, quem são os grandes militantes que vejo entrar? São os empresários de pequenas, médias e grandes empresas, que procuram na política uma bengala ou um apoio para fazer negócios. Há ali uma espécie de cumplicidade entre a política e o poder.
Disse, noutra entrevista, que a Frelimo de hoje se esqueceu de que não é a mesma de ontem e que continua a estar apegada a este poder do termo da palavra Frelimo...
A Frelimo tinha tantos lemas e um deles é que não se tratava agora de substituir, fazer uma mudança de turnos daquilo que se chamava, na altura, “os exploradores do povo”. portanto, acho que essa mensagem permanece válida. A mim não importa se é homem ou mulher, negro ou branco, o dono dos meios de produção e quem estará a estruturar a força de trabalho do outro. Tentamos fazer uma ruptura, e penso que essa ruptura foi feita. Lembre-se que havia um lema que era “escangalhar o aparelho do Estado colonial”. Acho que não é o quanto fomos capazes de criar e que fosse inclusiva, sobretudo porque vivemos isto em África, que é a independência e,  a seguir, os mesmos que foram afastados e excluídos durante o período colonial criam uma elite que, por estar mais próxima da cultura, da formação académica e de intelectuais, produz muito esse modelo. Já não está na sua vontade, querer ir ou não, mas a verdade é que aquele modelo, o modelo que nós aceitamos seguir, é um modelo que produz pobreza.
Em “O último voo do flamingo”, o personagem diz: “Na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava  era sendo gerido por pessoas de outra raça”. As nossas elites estarão a fazer reprodução de um modelo do passado, não é? Porque isso mudou a mão, mudou a raça de quem fazia, mas na essência o que era feito está sendo feito por igual.
Eu acho que é uma elite que se constrói por imitação daquilo que são os sinais de poder que chegam a partir de fora. Há um apelo para a auto-estima, é um discurso que eu acho positivo, pois nos orgulhamos de ser quem somos e que encontramos, nessas diferenças que temos com os outros, alguma coisa que não usamos para confrontar, para saber se somos maiores ou menores que os outros, mas construir aquilo que é o nosso próprio orgulho nacional. Acho também que essa elite é aquela que corresponde e que, quando eu me juntei à revolução nacional, era como se fazia no tempo colonial a exibição.

Elites: as económicas fazem ostentação; e as intelectuais, que papel? Aniquilamento?
Omitiram-se! Eu penso que este regime fez uma coisa: tornar o intelectual não funcional. Hoje eu questiono-me: Onde é que eles estão? São poucos, e talvez fazem propaganda de discursos feitos de uma outra corrente filosófica. Agora, a económica, não me parece que o país esteja a produzir e a incentivar esse pensamento independente. Porque, para se estar independente, tem que se ter também uma reflexão soberana sobre si próprio, e nós continuamos a reproduzir um discurso que é fundamental apontar, que se cinge em atirar culpas a alguém ou ao passado.
Penso que é uma falsidade pensarmos que é simplesmente construindo escolas e criando todas as condições materiais que se pode resolver um problema de fundo, que hipoteca todo o nosso futuro. Isso porque nós sabemos e estamos a acompanhar todo esse filme, como é que a qualidade do ensino está degradada e a escola passou a ser um local onde se ensina aquilo que será a grande “punhoca” deste país. A necessidade de aniquilar pessoas é uma espécie de assassinato simbólico de algumas pessoas que se destacaram na sociedade, ou tenham algo forte na cultura e outros sectores e que, imediatamente, são tidas como uma ameaça. Penso que cada país tem que inventar os seus heróis. Há um discurso que existe que não é verdadeiramente baseado na história, mas é baseado naquilo que é a intenção política. Todos os países fizeram isto. Se pegarmos no caso de Ngungunhane, havemos de encontrar ali uma figura mística, e penso que esta mistificação é importante, mas precisa ser feita com alguma verdade. É preciso percebermos que em relação à parte desses heróis - não estou a falar dos heróis de libertação nacional, pois esses são mais consensuais -, há aqui uma dificuldade da nossa parte de dizer às novas gerações que os heróis são pessoas humanas. Portanto, têm falhas, têm deficiências e que não devemos procurar endeuzá-los.
Num artigo seu intitulado “Os sete sapatos sujos”, escreveu que “mais do que uma geração tecnicamente capaz, necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica, de repensar o país.

Como vê o papel da nossa Educação?
Essa resposta é óbvia. A partir do momento em que se banalizou o facto de que os alunos passam porque compram professores e compram provas, essa banalização de um clima passou a ser tamanha, quer dizer, o professor ensinou-nos a fazer isso no sentido de reproduzir valores.
Em os “Sete sapatos sujos”, escreve que temos dificuldades de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho. Que o maior problema de Moçambique está na sua incapacidade de gerar um pensamento produtivo, ousado e inovador.

 Acha que nos limitamos a aplicar fórmulas pensadas por outros?
Eu receio bem que, sim, e penso que, neste momento, estamos na maior pobreza. Não só pobreza material, mas de procura de um bom caminho. Penso que a forma como se repetem fórmulas, a maneira como se dá espaço àquilo que eu chamo “papagaios políticos” e que repetem até ao infinito, até aquelas que são as palavras-chave, deixam-nos com saudades de um momento em que apareciam outras vozes. Recorde-se, há uma escritora nigeriana que diz “no período da história única, há apenas uma voz”, e nós corremos o perigo de termos uma única voz e que vai dialogando connosco. Não posso ter nenhuma simpatia por esse tipo de atitude. E parece -me que há uma coisa que está associada ao emblema e, a partir do momento em que o fulano tem um poder político, tem que mostrar através desses sinais. Tem uma pequena cultura por parte de quase toda a gente. Eu quando vou comprar um carro, por exemplo, perguntam-me: “mas essa marca? Essa marca não é compatível com o seu estatuto”. É quase uma relação comparada a nível da sexualidade essa figuração do carro que eu acho que vale a pena questionar.

A dinâmica produtiva do Mia nada tem a ver com o panorama geral da literatura moçambicana. Em termos práticos, são poucos os escritores em Moçambique que publicam com regularidade. O que está a acontecer com a literatura moçambicana?
Sabe o que é que faz produzir ideias? São ideias. Se você viu os grandes momentos em que este país teve criatividade, o Rui Nogar, Craveirinha e outros, é porque havia nessa altura núcleos de pessoas que se encontravam em cafés e restaurantes, ali na baixa, nos clubes, nas associações, etc. - e eu acho que a Associação dos Escritores cumpriu com o seu papel - que produziam ideias e debatiam. Penso que houve, nos últimos tempos, algum relaxamento, acabamo-nos vergando para aquilo que são os valores do mercado, que eram vivos e que produziam vida. É preciso perceber que um jovem que queira trilhar este caminho depara com um monte de dificuldades, sem o apoio nem da família, nem do governo.  E uma outra coisa é a “morte” da escola, é preciso perceber que este jovem se comunica na sua língua materna. Às vezes, tem sim alma de escritor, mas a dificuldade está em transmitir as suas ideias para o papel.
Espero que apareça uma nova corrente. É preciso que o Estado não se demita de certas coisas.


In: O PAÍS – 27.06.2013

LIVRO DE AURÉLIO FURDELA: A OUTRA FACE D’AS HIENAS TAMBÉM SORRIEM

Por José dos Remédios

Ao David Bamo e ao Sangare Okapi


Se cometem um erro grosseiro os que admitem, ou postulam, uma relação de estrita fidelidade especular, de imediata dependência analógica entre o texto literário e um concreto contexto empírico, atribuindo portanto ao discurso literário o funcionamento referencial que se verifica noutros tipos de discurso, homólogo erro, embora inverso, praticam os que concebem o texto literário como uma entidade puramente automórfica e autotélica, como se a pseudo-referencialidade implicasse necessariamente uma ruptura semântica total com o mundo empírico (…). 

Vítor Manuel de Aguiar e Silva


Incomoda-nos o título do quarto livro de Aurélio Furdela, como se sabe, publicado depois de O Golo que Meteu o Árbitro (2006), Gatsi Lucere (2005) e De Medo Morreu o Susto (2003). O incómodo a que nos referimos não deve ser confundido com o vedete (1) convencionado nos dicionários de língua portuguesa, no seu sentido literal, mas no seu sentido literário, caso exista algum. Na verdade, o que pretendemos nesses dois sinuosos períodos é justificar a razão de, entre várias obras pertencentes à literatura moçambicana, termos escolhido esta, e, entre vários títulos que se poderiam forjar, termos escolhido aquele, aparentemente subjectivo, sobretudo aos que se dignam deixar embalar pela letargia – passemos então para o próximo parágrafo, pois neste parecem esgotadas todas as possibilidades de clarificarmos as nossas escolhas: da obra e do título desta intervenção.
Tivemos o primeiro contacto com esta obra já havia sido lançada há uma semana. Nessa altura, uma irritação causada pelo nojo e aversão que temos das hienas, que num ápice se transformou em incómodo, envolveu-nos num interesse (dez)necessário(2) de obtermos os sentidos subjacentes no título – longo como o primeiro e o terceiro livro do autor –, na capa do livro e nos enredos dos oito (8) contos da obra.  Portanto, tivemos de ler o livro às pressas a fim de que assim compreendêssemos os devaneios da(s) entidade(s) encarregue(s) pelo título e pelas histórias da colectânea. Mesmo assim, a irritação, já transformada em incómodo, não se esvaiu antes que déssemos um full stop, quiçá intermitente, a estas linhas que se esgotam numa árdua tentativa introdutória.
A Outra Face d’As Hienas Também Sorriem, de Aurélio Furdela, emerge no mesmo instante em que depois de lido o livro brotam alguns raciocínios: não é de hienas que se está a falar, as hienas não sorriem coisíssima nenhuma. Se é verdade que não se está a falar de hienas e as hienas não sorriem, resta-nos o advérbio “também”, quer dizer, mesmo que as hienas sorrissem, não nos escapava uma questão óbvia: que outro ser sorri, para que se legitime o uso do advérbio “também” no título da obra? A resposta a esta pergunta é escusável, por isso iremos nos centrar nos raciocínios – os tais incómodos impulsionadores desta reflexão – há pouco referidos.
A hiena "Tiger wolf (Inglês) ou Hyène (Francês)" é um mamífero carnívoro, da família Hyaenidae. Quando adulta, uma hiena mede cerca de 1,5m de comprimento, 80cm de altura e chega a pesar 70kg. Sua pelagem tem cor castanha escura. Diferente dos outros predadores, não é um animal tão rápido (a sua velocidade não ultrapassa os 60 km/h). A hiena é capaz de emitir um grito áspero, parecido com uma gargalhada (será por isso que Aurélio Furdela “assume” que As Hienas Também Sorriem?), que os antigos acreditavam ser de um homem mau, que colocava armadilhas para capturar os viajantes. Seus hábitos são nocturnos, embora possa desenvolver actividades durante o dia. Geralmente ataca em grupo (por não possuir uma sagacidade necessária para agir individualmente) e é famosa por se alimentar dos restos dos animais que os outros predadores deixam (3). Para além de possuir uma boa capacidade de adaptação, quer nas savanas quer nas florestas, a hiena, em muitas culturas, é tida como um animal que transporta espíritos maus.
Com efeito, em nenhum momento deste excerto apropriado de Pacievitch (s/d), nos é dito que as hienas sorriem ou que também sorriem. Emitem um grito – preferimos assumir que se trata de um som – parecido a uma gargalhada, mas é apenas isso, parecido, gargalhada/sorriso são coisas diferentes. Bem analisada a lógica natural dos seres vivos, o sorriso é exclusivo do Homem. A existir um outro ser que sorri, ou melhor, que parece sorrir, não se deve acreditar que o faça consciente e em momentos apropriados, ou não, como o homem. Aliás, não é pelo facto de o papagaio imitar algumas falas humanas que se deve assumir que o papagaio (também) fala. Do mesmo jeito, assumir que As Hienas Também Sorriem é qualquer coisa de inquietante ou, se quisermos, incómoda.
Melhor dizendo, sendo o sorriso um traço tipicamente humano, realmente não é de hienas comuns, as que caracterizamos a dois parágrafos, que se está a falar, mas sim do Homem, não o comum também, e sim aquele que age de um certo modo – começamos a revelar o que só depois de mergulharmos na obra se tornará mais evidente. Logo, recorrendo aos processos de transferência de significados peculiares à metáfora, Furdela transfere os atributos do Homem para as hienas, porém pretendendo o contrário. Como diz Mário Benedetti, citado por Mbate Pedro, autor do prefácio do livro, “Há sempre um modo de ocultar a porcaria e enterrar a denúncia e o denunciante”. Claro está. Mas ocultar porcarias não é intenção do escritor, e ao ocultar alguma coisa pretende salvaguardar o que Mbate Pedro chama de “(…) cómica imagem, a metáfora cruel, do mundo amorfo em que vivemos, em que, quando a justiça não consegue condenar os seus ladrões e corruptos, defende-os e eleva-os à categoria de Doutores deputados” (p. 13).
Ao se ler a obra, em primeira instância fica-se com a ideia de que os Doutores deputados é que são as hienas. Essa impressão até é verosímil, sobretudo se se tomar em conta que hiena, (do grego hýaina do latim hyaena) para além de ser um “mamífero carnívoro, da família dos Hienídeos, feroz e devorador de carne putrefacta, que vive na África e na Ásia”, é, no sentido figurado, “pessoa cruel e traiçoeira” (Costa e Melo, 1999: 871). Todavia, há na obra outras entidades que sem serem Doutores deputados tornam-se hienas pelo facto de possuir atitudes a elas semelhantes: desprezíveis. É o caso dos políticos, no consciente do narrador autodiegético de “O Homem com 33 Andares na Cabeça”, primeiro conto da colectânea, evidenciada na seguinte passagem: “Tio João, homem de palavra, não igual a salamandra, ou os políticos com duas línguas, cada a falar a sua própria coisa sobre o mesmo assunto (4), nas férias de fim-de-ano seguintes, mandou uma carta e dinheiro para a minha passagem de avião (p. 19) ou, em “O Homem Espinha de Peixe”, “Devias saber, os que nos fazem gritar essas coisas nos comícios (abaixo o obscurantismo!), são os primeiros a sacrificar cabritos nos gabinetes” (p. 82).
Há ali uma intenção de ao se desenrolar os eventos diegéticos o narrador aproveitar-se das circunstâncias para denunciar um facto que lhe parece inquestionável e sem meios-termos: inferiorizar as hienas humanas através da ridicularização. Tal situação não só sucede no primeiro conto, no terceiro, “Pescando o Meu Filho”, num episódio, no mínimo prosaico, a voz do narrador enuncia: “A rádio transmitia nesse mesmo instante, uma notícia de louvores a um grupo de deputados, que apoiavam, algures, nos subúrbios da cidade, outras vítimas das enxurradas, distribuindo pacotes de bolachas e rebuçados às crianças” (p. 35).
Havendo enxurradas, oferecer bolachas e rebuçados às vítimas parece uma troça quando as pessoas (inclusive as crianças) precisam de abrigo, assistência médica, produtos alimentares e higiénicos indispensáveis ao ser humano.
Numa outra perspectiva, esses políticos/Doutores deputados tornam-se hienas na medida em que, à semelhança do animal, aproveitam-se até dos restos das suas presas. No segundo caso os restos são as peles, os ossos, as patas ou cabeças de outros animais e no primeiro caso os restos são, por exemplo, uma porção de terreno que o deputado Costa – personagem de “As Visitas do Barbudo” – arranca veemente do seu vizinho por pretender alargar a entrada da casa de sua mãe a fim de que o seu Nissan Navara 2.5 tivesse acesso ao átrio maternal; o salário miserável que um patrão não paga ao seu segurança, José, restando-lhe ter de roubar uma pele de Zebra pendurada algures na sala de visitas do patrão na expectativa de que ao deixar de molho durante algum tempo permitir-lhe-ia preparar um tocossado para a amada grávida; os restos é a honra que o secretário do bairro de Phatarata – espaço imaginário comum a quase todos os contos, quanto a nós inventado para que assim se ocultassem os sentidos que descortinamos – , outra hiena, retira de dona Joana, mãe do Deputado Costa, quando lhe obriga a deitar-se consigo ao ameaçar fazer os (im)possíveis para enviar o marido a Niassa, na então afamada Operação e Produção, caso não cedesse às suas pretensões. Esses são os restos porque aquelas personagens nada têm além do que lhes é arrancado pelos políticos/Doutores deputados: as hienas da obra.
Do mesmo jeito que poetas como José Craveirinha usaram nos seus poemas (“Lustro”, por exemplo) o substantivo hiena/quizumba (“Velha quizumba/ de olhos raiados de sangue”(5) ou “tem o paladar da baba das hienas uivando”) para se referirem a um regime, o colonial português, por ser tão nojento, carnívoro, covarde e áspero como o animal, ao dar tal título a esta sua quarta aparição em livro, Furdela também parece pretender atingir um regime: o político vigente. Assim, se é verdade que a escrita de Aurélio Furdela não pauta, volvendo ao excerto de Aguiar e Silva, por uma relação de estrita fidelidade especular, de imediata dependência analógica entre o texto literário e um concreto contexto empírico, os universos instaurados nos seus contos através da ficcionalidade muito se relacionam com o mundo empírico a que o escritor faz parte como um ser também empírico. Por isso nota-se uma crítica clara – disfarçada pela ficção – às mediocridades quotidianas protagonizadas por individualidades moçambicanas de há trinta (30) e da actualidade.
As Hienas Também Sorriem, portanto, deixam de ser apenas uma obra literária pertencente aos contos para passar a ser – numa classificação ou tanto ou quanto ondulante dada a subversão dos cânones que tipificam uma colectânea de contos – uma criação oscilante entre o conto, a crónica e a fábula, pois ao mesmo tempo que “Doutor Seringas e a Burra que Sabia” é sem dúvida alguma um conto com características do “modelo tradicional moçambicano”, o já citado “As Visitas do Barbudo” parece oscilar entre o conto e a crónica já que ao se narrar a trama revela-se uma tendência de se informar o receptor sobre as manhas protagonizadas pelos Doutores deputados/políticos/hienas do seu contexto social. Em terceiro plano, a ideia desta obra tender também a fábula ganha relevo quando através da personificação as personagens antropomórficas, ao nível do raciocínio, de “A Fábula do Búfalo Africano” (os búfalos, os carrapatos e as aves), portando-se como seres racionais com capacidades astutas e opondo-se às ordens de seres hierarquicamente superiores (as feras/os carrapatos em relação às aves e ao búfalos), não deixam de ser isso mesmo: búfalos, carrapatos e aves.
Teixeira (2013) parece atento ao facto de a escrita de Aurélio Furdela ser produto, por exemplo, de suas experiências cronistas. Talvez, por isso, o autor assume que a já citada obra O Golo que Meteu o Árbitro é “(…) constituída por cruzamentos de episódios, onde (Furdela) transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos” (Teixeira, 2013: 6). Pode ser esta uma razão válida para que “As Visitas do Barbudo” e mesmo “A Fábula do Búfalo Africano” apresentarem o carácter informativo da crónica sem deixarem de ser contos. Esta diversidade resultante da complexidade semântica dos enredos cuidadosamente projectados faz com que a obra de Furdela atinja o que Roberto Pontes, ao tratar do fenómeno literário atinente ao circuito afrobrasiluso (6), do qual na época em que o artigo é publicado a escrita de Aurélio Furdela ainda não fazia parte, designa esplendor poético, por estar (…) a fazer-se numa dimensão mais rica, significante e bela, do que pode ter sonhado Luiz Vaz de Camões” (Pontes, 1999: 164).
Já identificados alguns tipos de hienas na obra, colocamo-nos as seguintes perguntas: do que é que As Hienas Também Sorriem? O que Aurélio Furdela pretende com este As Hienas Também Sorriem (se é que realmente há alguma pretensão)? Respondidas estas questões, talvez esfume-se o incómodo ocasionalmente referido.
Na capa deste quarto livro de Furdela, as doze (12) hienas existentes rodeiam, como se a caçar ou a vigiar um homem que sentado numa cadeira de uma praça pública, de um jardim ou algo parecido, cose, aparentemente, um dos seus sapatos. A imagem em causa, pela sua relação, faz-nos citar a seguinte passagem de O Arquipélago de Sangue (7): “O Homem nasce livre e em toda a parte está a ferros.”. Se nos deixarmos levar pela sua indumentária e pelos estereótipos sócias podemos chegar à conclusão (talvez errónea) de que se trata ou de funcionário público/privado ou de um cidadão com um estatuto social considerável. Esta última ideia cai em terra porque o facto de estar a coser o sapato, pessoalmente, revela que não tem condições financeiras para comprar uns tantos pares de sapato ou para pagar um sapateiro de modo que o cosa por si. É uma imagem curiosa, que nos faz pensar em que miséria esse homem, modelo da sociedade a que pertence, está mergulhado. A imagem representa duas situações: miséria e uma espécie de “prisão domiciliária”. As hienas também sorriem disto: do facto de o Homem estar a ferros e ser incapaz de se desembaraçar da miséria que lhe envolve.
Em “As Visitas do Barbudo”, como já dissemos, as hienas sorriem da aflição do José ao roubar a pele de zebra para preparar um tocossado para a esposa grávida e da dona Joana quando o secretário do bairro arranca-lhe a sua honra. No conto seguinte, “Ratos Milionários”, mais uma vez as hienas também sorriem da miséria das personagens pelo facto delas fazerem de uma caixa vazia de cerveja mesa ou cadeira, devido à falta dos dois tipos de mobiliários e sorriem ainda dos que depois de muitos anos de trabalho árduo e expectativas construídas, como Guidione, vêem os seus sonhos desvanecerem-se num repente horroroso.
No conto “Doutor Seringa e a Burra que Sabia” as hienas sorriem da “cómica imagem” em que o Doutor Seringa, aflito em envolver-se sexualmente com uma mulher numa região em que, por causa da guerra, as mulheres ficavam escondidas na outra margem do rio, precipitando-se a obedecer um raciocínio falsamente lógico, possui a burra que os homens usavam para atravessar o rio rumo ao encontro das mulheres.
Em a “Fábula do Búfalo Africano” as hienas sorriem quando os carrapatos, outras hienas, mas numa escala inferior, conseguem calar as aves, seres que no conto/fábula representam gente lúcida, embora sem a intrepidez necessária para a preservação da sua emancipação.
No conto “Pescando Meu Filho”, título que pretende inferiorizar Zidrito, o filho em causa, por estar mergulhado numa calamidade natural, as cheias, e o pai, por ser incapaz de zelar pelo bem-estar do filho como se espera de quem ostenta esse substantivo masculino, as hienas humanas sorriem do episódio em que a mãe de Zidrito vai dormir numa linha férrea, pois lá a água da chuva e os dejectos a escaparem das latrinas nunca atingiam os carris e sorriem ainda da passagem em que o pai, usando uma rede mosquiteira que se colocada sobre cama, pesca o filho depois deste ter sido engolido pelas águas da chuva.
No “Vagão Fornalha” as hienas também sorriem do instinto de sobrevivência que leva um pai a traçar um plano de maneira que a sua família, no tempo da guerra dos 16 anos, pudesse colher vantagens dos diferentes lados. Neste contexto, um dos filhos do homem (João) alinharia para o exército da Frelimo, o outro (Acácio) alinharia para o exército dos matsangas, o terceiro (Jorge) iria se tornar padre no seminário e o pai, distribuidor de tarefas, cuidaria do gado bovino e enterraria os cadáveres da guerra. Além disso, as hienas também sorriem de Matate quando se suicida por não suportar a ideia de vir a trabalhar sob as ordens de um comandante cruel, Morteiro, o qual, por teimosia, levara à morte 141 rapazes na emboscada implantada pelos matsangas numa ferrovia.
Em “O Homem Espinha de Peixe de Peixe” a “cómica imagem” que também faz sorrir as hienas torna-se mais uma vez evidente: primeiro quando não compreendendo como uma espinha de peixe se encravara nas costas de Carlos Samananga, o protagonista da estória, Bawuti e Marta, Doutores do Hospital Central, mandam chamar um curandeiro para lhes ajudar a resolver o problema e segundo quando Punhetchev, no meio da cavaqueira que tinha com Samananga, afirma: “Vim aqui parar por ser acusado de masturba-me a pensar na mulher de um grande chefe… (…) Os gajos deram-me esse nome durante uma reunião no círculo. Apresentaram-me à população como um estuprador psicológico! (p. 84). 
Estes são apenas alguns exemplos flagrantes que fazem com que as hienas também sorriem. Com isto, a escrita de Aurélio Furdela esmera-se em denunciar e criticar a “passividade animal (8)” de todos aqueles que ocupando cargos políticos importantes ao nível de um Governo mostram-se insensíveis aos melodramas sociais. Por isso, a ridicularização dos Doutores deputados ou dos políticos em geral é um fenómeno permanente em (quase) todos os contos, pois eles, os políticos, à semelhança das hienas, operam em grupo por não possuírem a destreza e coragem necessárias para individualmente arrancarem dos miseráveis o que a eles pertence. 
Ao usar a hiena (no título e nos enredos) para substituir os dirigentes políticos, Furdela Fá-lo pelo facto de ambos os seres, neste contexto, possuírem características comuns: ambos têm uma pelagem de cor castanha escura (com isto não pretendemos excluir as excepções, pois existem hienas, sobretudo humanas, com um outro tipo de pelagem); ambos têm um grito áspero, no caso dos políticos são os discursos irritantes, redundantes, hipócritas, vazios e reveladores de pouca criatividade; ambos têm hábitos nocturnos, embora hajam durante a luz do dia (no caso das hienas humanas, tem a ver com as acções desenvolvidas nas sombras, as quais, algumas/muitas delas, resultam em “segredos de Estado”); ambas têm a capacidade de adaptação, o que, por exemplo, faz com que uma hiena concebida para operar como “servo da Agricultura” “opere sem quaisquer constrangimentos” numa “selva do Interior” e ambas são hienas vis, não possuem remorsos e não se importam com mais nada para além de satisfazer as suas ambições.
Teixeira (2013) parece atento ao facto de a escrita de Aurélio Furdela ser produto, por exemplo, de suas experiências cronistas. Talvez, por isso, o autor assume que a já citada obra O Golo que Meteu o Árbitro é “(…) constituída por cruzamentos de episódios, onde [Furdela] transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos” (Teixeira, 2013: 6). Pode ser esta uma razão válida para que “As Visitas do Barbudo” e mesmo “A Fábula do Búfalo Africano” apresentarem o carácter informativo da crónica sem deixarem de ser contos. Esta diversidade resultante da complexidade semântica dos enredos cuidadosamente projectados faz com que a obra de Furdela atinja o que Roberto Pontes, ao tratar do fenómeno literário atinente ao circuito afrobrasiluso[1], do qual na época em que o artigo é publicado a escrita de Aurélio Furdela ainda não fazia parte, designa esplendor poético, por estar (…) a fazer-se numa dimensão mais rica, significante e bela, do que pode ter sonhado Luiz Vaz de Camões” (Pontes, 1999: 164).
Já identificados alguns tipos de hienas na obra, colocamo-nos as seguintes perguntas: do que é que As Hienas Também Sorriem? O que Aurélio Furdela pretende com este As Hienas Também Sorriem (se é que realmente há alguma pretensão)? Respondidas estas questões, talvez esfume-se o incómodo ocasionalmente referido.
Na capa deste quarto livro de Furdela, as doze (12) hienas existentes rodeiam, como se a caçar ou a vigiar um homem que sentado numa cadeira de uma praça pública, de um jardim ou algo parecido, cose, aparentemente, um dos seus sapatos. A imagem em causa, pela sua relação, faz-nos citar a seguinte passagem de O Arquipélago de Sangue[2]: “O Homem nasce livre e em toda a parte está a ferros.”. Se nos deixarmos levar pela sua indumentária e pelos estereótipos sócias podemos chegar à conclusão (talvez errónea) de que se trata ou de funcionário público/privado ou de um cidadão com um estatuto social considerável. Esta última ideia cai em terra porque o facto de estar a coser o sapato, pessoalmente, revela que não tem condições financeiras para comprar uns tantos pares de sapato ou para pagar um sapateiro de modo que o cosa por si. É uma imagem curiosa, que nos faz pensar em que miséria esse homem, modelo da sociedade a que pertence, está mergulhado. A imagem representa duas situações: miséria e uma espécie de “prisão domiciliária”. As hienas também sorriem disto: do facto de o Homem estar a ferros e ser incapaz de se desembaraçar da miséria que lhe envolve.
Em “As Visitas do Barbudo”, como já dissemos, as hienas sorriem da aflição do José ao roubar a pele de zebra para preparar um tocossado para a esposa grávida e da dona Joana quando o secretário do bairro arranca-lhe a sua honra. No conto seguinte, “Ratos Milionários”, mais uma vez as hienas também sorriem da miséria das personagens pelo facto delas fazerem de uma caixa vazia de cerveja mesa ou cadeira, devido à falta dos dois tipos de mobiliários e sorriem ainda dos que depois de muitos anos de trabalho árduo e expectativas construídas, como Guidione, vêem os seus sonhos desvanecerem-se num repente horroroso.
No conto “Doutor Seringa e a Burra que Sabia” as hienas sorriem da “cómica imagem” em que o Doutor Seringa, aflito em envolver-se sexualmente com uma mulher numa região em que, por causa da guerra, as mulheres ficavam escondidas na outra margem do rio, precipitando-se a obedecer um raciocínio falsamente lógico, possui a burra que os homens usavam para atravessar o rio rumo ao encontro das mulheres.
Em a “Fábula do Búfalo Africano” as hienas sorriem quando os carrapatos, outras hienas, mas numa escala inferior, conseguem calar as aves, seres que no conto/fábula representam gente lúcida, embora sem a intrepidez necessária para a preservação da sua emancipação.
No conto “Pescando Meu Filho”, título que pretende inferiorizar Zidrito, o filho em causa, por estar mergulhado numa calamidade natural, as cheias, e o pai, por ser incapaz de zelar pelo bem-estar do filho como se espera de quem ostenta esse substantivo masculino, as hienas humanas sorriem do episódio em que a mãe de Zidrito vai dormir numa linha férrea, pois lá a água da chuva e os dejectos a escaparem das latrinas nunca atingiam os carris e sorriem ainda da passagem em que o pai, usando uma rede mosquiteira que se colocada sobre cama, pesca o filho depois deste ter sido engolido pelas águas da chuva.
No “Vagão Fornalha” as hienas também sorriem do instinto de sobrevivência que leva um pai a traçar um plano de maneira que a sua família, no tempo da guerra dos 16 anos, pudesse colher vantagens dos diferentes lados. Neste contexto, um dos filhos do homem (João) alinharia para o exército da Frelimo, o outro (Acácio) alinharia para o exército dos matsangas, o terceiro (Jorge) iria se tornar padre no seminário e o pai, distribuidor de tarefas, cuidaria do gado bovino e enterraria os cadáveres da guerra. Além disso, as hienas também sorriem de Matate quando se suicida por não suportar a ideia de vir a trabalhar sob as ordens de um comandante cruel, Morteiro, o qual, por teimosia, levara à morte 141 rapazes na emboscada implantada pelos matsangas numa ferrovia.
Em “O Homem Espinha de Peixe de Peixe” a “cómica imagem” que também faz sorrir as hienas torna-se mais uma vez evidente: primeiro quando não compreendendo como uma espinha de peixe se encravara nas costas de Carlos Samananga, o protagonista da estória, Bawuti e Marta, Doutores do Hospital Central, mandam chamar um curandeiro para lhes ajudar a resolver o problema e segundo quando Punhetchev, no meio da cavaqueira que tinha com Samananga, afirma: “Vim aqui parar por ser acusado de masturba-me a pensar na mulher de um grande chefe… (…) Os gajos deram-me esse nome durante uma reunião no círculo. Apresentaram-me à população como um estuprador psicológico! (p. 84). 
Estes são apenas alguns exemplos flagrantes que fazem com que as hienas também sorriem. Com isto, a escrita de Aurélio Furdela esmera-se em denunciar e criticar a “passividade animal[3]” de todos aqueles que ocupando cargos políticos importantes ao nível de um Governo mostram-se insensíveis aos melodramas sociais. Por isso, a ridicularização dos Doutores deputados ou dos políticos em geral é um fenómeno permanente em (quase) todos os contos, pois eles, os políticos, à semelhança das hienas, operam em grupo por não possuírem a destreza e coragem necessárias para individualmente arrancarem dos miseráveis o que a eles pertence. 
Ao usar a hiena (no título e nos enredos) para substituir os dirigentes políticos, Furdela Fá-lo pelo facto de ambos os seres, neste contexto, possuírem características comuns: ambos têm uma pelagem de cor castanha escura (com isto não pretendemos excluir as excepções, pois existem hienas, sobretudo humanas, com um outro tipo de pelagem); ambos têm um grito áspero, no caso dos políticos são os discursos irritantes, redundantes, hipócritas, vazios e reveladores de pouca criatividade; ambos têm hábitos nocturnos, embora hajam durante a luz do dia (no caso das hienas humanas, tem a ver com as acções desenvolvidas nas sombras, as quais, algumas/muitas delas, resultam em “segredos de Estado”); ambas têm a capacidade de adaptação, o que, por exemplo, faz com que uma hiena concebida para operar como “servo da Agricultura” “opere sem quaisquer constrangimentos” numa “selva do Interior” e ambas são hienas vis, não possuem remorsos e não se importam com mais nada para além de satisfazer as suas ambições. Teixeira (2013) parece atento ao facto de a escrita de Aurélio Furdela ser produto, por exemplo, de suas experiências cronistas. Talvez, por isso, o autor assume que a já citada obra O Golo que Meteu o Árbitro é “(…) constituída por cruzamentos de episódios, onde [Furdela] transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos” (Teixeira, 2013: 6). Pode ser esta uma razão válida para que “As Visitas do Barbudo” e mesmo “A Fábula do Búfalo Africano” apresentarem o carácter informativo da crónica sem deixarem de ser contos. Esta diversidade resultante da complexidade semântica dos enredos cuidadosamente projectados faz com que a obra de Furdela atinja o que Roberto Pontes, ao tratar do fenómeno literário atinente ao circuito afrobrasiluso[1], do qual na época em que o artigo é publicado a escrita de Aurélio Furdela ainda não fazia parte, designa esplendor poético, por estar (…) a fazer-se numa dimensão mais rica, significante e bela, do que pode ter sonhado Luiz Vaz de Camões” (Pontes, 1999: 164).
Já identificados alguns tipos de hienas na obra, colocamo-nos as seguintes perguntas: do que é que As Hienas Também Sorriem? O que Aurélio Furdela pretende com este As Hienas Também Sorriem (se é que realmente há alguma pretensão)? Respondidas estas questões, talvez esfume-se o incómodo ocasionalmente referido.
Na capa deste quarto livro de Furdela, as doze (12) hienas existentes rodeiam, como se a caçar ou a vigiar um homem que sentado numa cadeira de uma praça pública, de um jardim ou algo parecido, cose, aparentemente, um dos seus sapatos. A imagem em causa, pela sua relação, faz-nos citar a seguinte passagem de O Arquipélago de Sangue[2]: “O Homem nasce livre e em toda a parte está a ferros.”. Se nos deixarmos levar pela sua indumentária e pelos estereótipos sócias podemos chegar à conclusão (talvez errónea) de que se trata ou de funcionário público/privado ou de um cidadão com um estatuto social considerável. Esta última ideia cai em terra porque o facto de estar a coser o sapato, pessoalmente, revela que não tem condições financeiras para comprar uns tantos pares de sapato ou para pagar um sapateiro de modo que o cosa por si. É uma imagem curiosa, que nos faz pensar em que miséria esse homem, modelo da sociedade a que pertence, está mergulhado. A imagem representa duas situações: miséria e uma espécie de “prisão domiciliária”. As hienas também sorriem disto: do facto de o Homem estar a ferros e ser incapaz de se desembaraçar da miséria que lhe envolve.
Em “As Visitas do Barbudo”, como já dissemos, as hienas sorriem da aflição do José ao roubar a pele de zebra para preparar um tocossado para a esposa grávida e da dona Joana quando o secretário do bairro arranca-lhe a sua honra. No conto seguinte, “Ratos Milionários”, mais uma vez as hienas também sorriem da miséria das personagens pelo facto delas fazerem de uma caixa vazia de cerveja mesa ou cadeira, devido à falta dos dois tipos de mobiliários e sorriem ainda dos que depois de muitos anos de trabalho árduo e expectativas construídas, como Guidione, vêem os seus sonhos desvanecerem-se num repente horroroso.
No conto “Doutor Seringa e a Burra que Sabia” as hienas sorriem da “cómica imagem” em que o Doutor Seringa, aflito em envolver-se sexualmente com uma mulher numa região em que, por causa da guerra, as mulheres ficavam escondidas na outra margem do rio, precipitando-se a obedecer um raciocínio falsamente lógico, possui a burra que os homens usavam para atravessar o rio rumo ao encontro das mulheres.
Em a “Fábula do Búfalo Africano” as hienas sorriem quando os carrapatos, outras hienas, mas numa escala inferior, conseguem calar as aves, seres que no conto/fábula representam gente lúcida, embora sem a intrepidez necessária para a preservação da sua emancipação.
No conto “Pescando Meu Filho”, título que pretende inferiorizar Zidrito, o filho em causa, por estar mergulhado numa calamidade natural, as cheias, e o pai, por ser incapaz de zelar pelo bem-estar do filho como se espera de quem ostenta esse substantivo masculino, as hienas humanas sorriem do episódio em que a mãe de Zidrito vai dormir numa linha férrea, pois lá a água da chuva e os dejectos a escaparem das latrinas nunca atingiam os carris e sorriem ainda da passagem em que o pai, usando uma rede mosquiteira que se colocada sobre cama, pesca o filho depois deste ter sido engolido pelas águas da chuva.
No “Vagão Fornalha” as hienas também sorriem do instinto de sobrevivência que leva um pai a traçar um plano de maneira que a sua família, no tempo da guerra dos 16 anos, pudesse colher vantagens dos diferentes lados. Neste contexto, um dos filhos do homem (João) alinharia para o exército da Frelimo, o outro (Acácio) alinharia para o exército dos matsangas, o terceiro (Jorge) iria se tornar padre no seminário e o pai, distribuidor de tarefas, cuidaria do gado bovino e enterraria os cadáveres da guerra. Além disso, as hienas também sorriem de Matate quando se suicida por não suportar a ideia de vir a trabalhar sob as ordens de um comandante cruel, Morteiro, o qual, por teimosia, levara à morte 141 rapazes na emboscada implantada pelos matsangas numa ferrovia.
Em “O Homem Espinha de Peixe de Peixe” a “cómica imagem” que também faz sorrir as hienas torna-se mais uma vez evidente: primeiro quando não compreendendo como uma espinha de peixe se encravara nas costas de Carlos Samananga, o protagonista da estória, Bawuti e Marta, Doutores do Hospital Central, mandam chamar um curandeiro para lhes ajudar a resolver o problema e segundo quando Punhetchev, no meio da cavaqueira que tinha com Samananga, afirma: “Vim aqui parar por ser acusado de masturba-me a pensar na mulher de um grande chefe… (…) Os gajos deram-me esse nome durante uma reunião no círculo. Apresentaram-me à população como um estuprador psicológico! (p. 84). 
Estes são apenas alguns exemplos flagrantes que fazem com que as hienas também sorriem. Com isto, a escrita de Aurélio Furdela esmera-se em denunciar e criticar a “passividade animal[3]” de todos aqueles que ocupando cargos políticos importantes ao nível de um Governo mostram-se insensíveis aos melodramas sociais. Por isso, a ridicularização dos Doutores deputados ou dos políticos em geral é um fenómeno permanente em (quase) todos os contos, pois eles, os políticos, à semelhança das hienas, operam em grupo por não possuírem a destreza e coragem necessárias para individualmente arrancarem dos miseráveis o que a eles pertence. 

Ao usar a hiena (no título e nos enredos) para substituir os dirigentes políticos, Furdela Fá-lo pelo facto de ambos os seres, neste contexto, possuírem características comuns: ambos têm uma pelagem de cor castanha escura (com isto não pretendemos excluir as excepções, pois existem hienas, sobretudo humanas, com um outro tipo de pelagem); ambos têm um grito áspero, no caso dos políticos são os discursos irritantes, redundantes, hipócritas, vazios e reveladores de pouca criatividade; ambos têm hábitos nocturnos, embora hajam durante a luz do dia (no caso das hienas humanas, tem a ver com as acções desenvolvidas nas sombras, as quais, algumas/muitas delas, resultam em “segredos de Estado”); ambas têm a capacidade de adaptação, o que, por exemplo, faz com que uma hiena concebida para operar como “servo da Agricultura” “opere sem quaisquer constrangimentos” numa “selva do Interior” e ambas são hienas vis, não possuem remorsos e não se importam com mais nada para além de satisfazer as suas ambições.
Parece-nos ser esta A Outra Face d’As Hienas Também Sorriem, de Aurélio Furdela.  

Referência bibliográfica
Aguiar e Silva, V. (1984) Teoria da Literatura, 6ª Edição. Coimbra: Livraria Almedina.
Chomscky, N. e Herman, E. (1976) O Arquipélago de Sangue. S.L: Círculo de Leitores.
Costa, J. e Melo, A. (1999) Dicionário de Língua portuguesa, 8ª Edição. Porto: Porto Editora. 
Craveirinha, J. (1980) Cela 1. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco.
Craveirinha, J. (2008) Xigubo. Maputo: Alcance Editores.
Furdela, A. (2012) As Hienas Também Sorriem. Maputo: AEMO.
Teixeira, J. (2013) A Sambrowera em Aurélio Furdela. Suplemento Cultural do Jornal Notícias, 5 de Junho de 2013, p. 6.
Pontes, R. (1999) Poesia Insubmissa Afrobrasileira. Rio de Janeiro/Fortaleza: Oficina do Autor.
Outra fonte: Pacievitch, T. (s/d)  www.InfoEscola.com [acessed 6 de Junho de 2013].
(1) É a palavra que serve de entrada a um artigo de dicionário (Dubois et al, 1973: 610).
(2) Entenda-se, dez vezes necessário.
(3]) Por Thais Pacievitch, extraído de infoesccola.
(4) Os sublinhados são nossos.
(5) Versos do poema “Lustro”, de José Craveirinha, in Cela 1.
(6) Palavra formada por aglutinação. Deriva de África, Brasil e Luso.
(7) Chomscky, N. e Herman, E. (1976: 7).
(8) Alusão a um dos versos do poema de José Craveirinha, “Subida”, in Xigubo (p. 25), no qual o sujeito de enunciação manifesta o seu descontentamento pelo facto de as condições sociais no que respeita aos produtos de primeira necessidade, por exemplo, agravarem-se e os membros dessa sociedade [a nossa, logo se vê], manterem-se numa “passividade animal”. Tal é a passividade das hienas humanas, em Furdela, mas também dos que delas são vítimas.

In: Notícias, Maputo, Quarta-Feira, 3 de Julho de 2013:: 


MANDELA: HISTÓRIA DE VIDA

MANDELA: HISTÓRIA DE VIDA 







30 junho 2013

ELIMINAM-SE OS MITOS SOBRE A ORIGEM DA MARRABENTA

ELIMINAM-SE OS MITOS SOBRE A ORIGEM DA MARRABENTA

O segundo “workshop” sobre a origem e a evolução da Marrabenta, entre 1930 e 2012, que no dia 21 de Junho juntou estudiosos sobre o assunto, na cidade de Maputo, afasta, por completo, a possibilidade de esse género de música ter sido criado por Dilon Djindje como ele, reiteradas vezes, reivindicou. As pesquisas não revelam fundadores, mas dão conta de que houve precursores e promotores.
Uma mostra documental do director do Instituto de Investigação Sociocultural, o pesquisador João Vilanculo, explica que na segunda metade do século 19, a cidade de Lourenço Marques, actual Maputo, regista um desenvolvimento económico, ao mesmo tempo que se configura um importante centro político-administrativo.
Nessa época, entre 1950 e 1960, criam-se os primeiros dois planos de fomento económico que promoveram a migração de cidadãos portugueses para a colónia de Moçambique, incluindo a realização de investimentos para a pequena indústria alimentar, as fábricas têxteis, de utensílios domésticos e no campo dos Portos e Caminhos-de-ferro.
Mas antes, ao longo da década de 1930, o franco investimento na urbanização, além de estimular o êxodo rural, a deslocação de populações do campo para a cidade, estimulou o surgimento dos bairros suburbanos de Maxaquene, Munhuana, Mafalala, Chamanculo e Chinhambanine.
O assentamento das populações na cidade, como resultado do sistema colonial, fez-se em função da cor e da raça da pessoa. Assim, os bairros da Polana e Ponta Vermelha são, predominantemente, ocupados por cidadãos europeus, enquanto o Central (que fazia a transição entre a zona da elite, urbanizada e o subúrbio pobre em que habitavam os negros) era ocupada por asiáticos.
Da convivência no mesmo espaço entre os negros moçambicanos, asiáticos e europeus resultou uma mestiçagem que, de acordo com os pesquisadores, contribuiu para o desenvolvimento e divulgação da Marrabenta. Na altura, os fazedores desta música que utilizavam o Xigogogwani/ Xibavane, um instrumento artesanal que nos recorda a viola, começaram a ter ferramentas musicais modernas e sofisticadas, ao mesmo tempo que frequentavam os bailes e as casas de pasto na cidade.
Sobre a mesma discussão, outro aporte é feito pelo jornalista e escritor moçambicano, Samuel Matusse, citado por Vilanculo, que refere que o nome do género provém do vigor (rebentar) que a dança insere. Em conversa com o instrumentista Moisés Manjate, do Conjunto Djambo, o académico Rui Laranjeira, mais uma vez, apurou que o nome Marrabenta tem a ver com a maneira de dançar e de tocar a guitarra até arrebentar as cordas. Por exemplo, Moisés Manjate afirma que enquanto decorriam os concertos, a dado momento, podia-se ouvir dizer frases como “rebenta o fio”.
Comungam do mesmo argumento personalidades e artísticas como o músico João Domingos que relaciona a origem do termo Marrabenta ao rebentar das cordas da viola, em virtude da forma vigorosa com que se toca o instrumento, bem como o escritor e professor de literatura Calane da Silva que fala da mestiçagem cultural entre as línguas portuguesa e bantu para a formação da palavra.
É importante notar que no “wokshop”, João Vilanculo explicou que o músico Dilon Djindje assegura que o termo Marrabenta surgiu entre o distrito de Marracuene e Bobole. Por outro lado, no seu estudo, o director do Instituto de Investigação Sociocultural, João Vilanculo, propõe uma estrutura hierárquica constituída por dois grupos de actores na história da origem e evolução da Marrabenta.
Entre os precursores do género encontram-se Fani Mpfumo que fez a primeira gravação musical entre 1947 e 1955 na África do Sul; Mahecuane que registou o disco “Yi Xibalo Muni Makhandene”, na Gallo Recording, no mesmo país, em 1945; Alexandre Langa, o autor das composições “Hoyo Hoyo Masseve” e “Hosi ya Kandonga vai Khomile”; Dilon Djindje que criou a canção “Ni Djula Maria va ni Khomba Tereza” e, por fim, os Conjuntos Djambo e João Domingos que, a partir de 1950, interpretaram a composição “Elisa Gomara Saia”.
No segundo grupo, o dos promotores, mencionam-se o Grupo RM, os músicos Wazimbo, Stewart Sukuma, Neyma Alfredo, entre outros.

Influências estrangeiras
Em relação às influências que o dito género sofreu ao longo dos anos, o escritor e músico Hortêncio Langa considera que a Marrabenta é um fenómeno de migração sonora das zonas rurais para as cidades. Diz que o Xigogogwane foi um instrumento com base no qual muitos tocadores dessa criação musical iniciaram as suas carreiras em Gaza.
De acordo com Langa, a adopção de novos elementos musicais por parte das comunidades rurais resulta do processo da aculturação, em que os músicos mesclavam o seu canto, as suas melodias e ritmos tradicionais, com os sons dos instrumentos assimilados. Por exemplo, a assimilação da guitarra no campo proporcionou aos cantores novas formas de expressão artística na criação da Majikha e a sua dança.
O compositor e intérprete da música “Lirhandzo”, Hortêncio Langa, afirma que “com a migração das populações das zonas rurais do sul de Moçambique para as grandes cidades em busca de oportunidades de trabalho ou para cumprir o “Xibalo”, nas décadas de 1940/50, as canções, os ritmos e formas de tocar dos músicos oriundos daquelas regiões fundiram-se às práticas musicais urbanas”.
Nessa época a gravação de algumas composições do género Majikha, sobretudo por parte dos moçambicanos que migraram para a África do Sul, foi o factor que contribuiu para a sua difusão. De uma ou de outra forma, a Marrabenta é um género musical que sofreu e sofre a influência da música estrangeira.
Agnelo Navais, que se refere a músicos como Young Issufo, Jazz Band, João Domingos, Orquestra Djambo, Conjunto Harmonia, cuja produção musical tem tonalidades de blues, jazz, swing, rumba, samba, afirma que a outra característica das músicas dessas bandas é o uso de instrumentos de sopro que era muito típico na época, “o que nos dava a impressão de estar diante de uma música de marcha, uma banda militar, onde se sente muito o rufar dos tambores e a secção de sopro que era dominante”.
Além do mais o facto de o próprio Fani Mpfumo ter vivido na África do Sul fez com que a sua música carregasse rastos dos géneros Kwella, Simandjemandje e Jive entre outras músicas daquele país.
Nos dias actuais, a Marrabenta produzida pelo Projecto Mabulo e por artistas como Stewart Sukuma, Mingas, Neyma Alfredo, Anita Macuácua, Lorena Nhate e muitos outros inclui marcas da música Rap, Jazz e do Ragga.
De uma ou de outra forma, Agnelo Navais afirma que apesar destas influências é importante notar aqui que “essas músicas não perderam a sua base rítmica, principalmente, no que diz respeito ao toque ou ao compasso dos instrumentos como a bateria e a viola-baixo, onde o ritmo do bombo é contínuo, e a “caixa da ré” acentua em cima do quarto tempo”.
In: Jornal @VERDADE – 27.06.201