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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

09 setembro 2012

MEMÓRIAS DE NAMPULA


MEMÓRIAS DE NAMPULA 

Por Alberto Viegas 

Vivi, leccionando, durante o período que decorreu de Outubro de 1950 a Outubro de 1975 (25 anos), no actual Distrito de Mossuril, na altura “Circunscrição de Mossuril”, que fazia parte do então distrito de Moçambique (hoje, província de Nampula). 
Cidade de Nampula

Nesse tempo, Mossuril tinha por Postos administrativos as Subdivisões administrativas de Lumbo, Lunga Matibane, Monapo e Netia.
O que aqui apresento é produto de relatos que, casual e frequentemente, fui escutando da boca dos que dos que, em conversas espontâneas, contavam os factos e episódios que se deram na nossa zona no tempo das lutas de ocupação efectiva de Moçambique pelos portugueses, que as chamaram de ” Guerra de Pacificação”, tentando com isso convencer o mundo das potências capitalistas da Europa de que Portugal era de facto detentor dos territórios africanos que o mesmo reclama serem seus, e satisfazer assim as exigências emanadas da Conferência de Berlim, ocorrida de Novembro de 1984 a Fevereiro de 1985, uma das quais era a ocupacao real das regiões africanas sobre as quais cada potência capitalista arrogava-se o direito de lhe pertencerem.
Devido ao longo tempo que se desenrolou de 1950 até hoje (2012), é obvio que alguns dos relatores destes acontecimentos tenham já morrido, principalmente os que na altura eram de idade avançada, tal como é o caso de capitão Rufino, alferes Rodrigues, fotógrafo Carvalho (companheiros de armas de Neutel de Abreu, todos eles então velhos e reformados), a senhora Mariamo (viúva de Neutel de Abreu, falecida em 1978, conhecida por “ Nama-Taareeje”, isto é mãe de Taareeje), Francisco Xavier de Melo (conhecido por “Chichico”), Dona Especiosa Dias e Dona Luisa Dias (esta última, conhecida por “Muhano-Djindja”), irmãs sanguíneas e proprietárias de enormes extensões de palmares existentes no Mossuril de então: Mingurine e Ampoense, respectivamente.
Dos relatos de quem ouvi estes acontecimentos, uns eram testemunhas oculares, outros eram testemunhas próximas do que narravam e, ainda, outros repetiam o que apenas haviam ouvido de alguém anos depois.  
Os companheiros de armas de Neutel de Abreu contavam os Factos, naturalmente a favor do prestígio dos portugueses, exaltando a sua valentia nos combates em que tinham tomado parte. Falavam muito, vangloriosamente, das batalhas travadas em Mujenga (19 a 20/10/1896) Naguema (3/3/1897), Ibrahimo (6/3/1897), Mucuto Muno, isto é Mukúttu-Múnu (7/3/1897) e outras, sem mencionarem entretanto as derrotas por eles sofridas.
Em contrapartida, os naturais que me falaram destas ocorrências bélicas evidenciavam a coragem e a bravura dos africanos, e apelidavam de “cobardes” os portugueses, pelo facto de estes frequentemente se refugiarem em “largas covas” (trincheiras), apesar de utilizarem um armamento bélico altamente sofisticado: canhões, espadas, espingardas de repeticao munida de baionetas, e usando cavalos, contra homens que só possuíam azagaias, flechas e uma ou outra espingarda de carregar pela boca, lutando frente a frente para se defenderem do inimigo que os atacava.
De entre os naturais que me falavam destas ocorrências bélicas, sito o velho carpinteiro Selemane, na altura ao serviço da Missão católica de Mossuril, o alfaiate Amisse Momade, o mainato Alberto Walava, o funcionário da adminstracao de Mossuril, de nome Rachado Momade Elico, filho do Cabo Momade elico, do regulado Xá-Jamal, Lunga, e Antonio Napíri, servente no Posto Meteorologico em Mossuril, mais tarde em Lumbo.
As datas das batalhas de Mujenga, Naguema, Ibraimo e Mucuto Muno (Mukúttu-Múnu) aqui indicadas encontram-se gravadas no muro do monumento aos Heróis Moçambicanos, em frente do edifício da administração do Governo do Distrito de Mossuril.

ORIGEM DO NOME NAMPULA
Em tempos já passados, existiu nesta região nortenha um rei tradicional cujo nome pessoal se perdeu na obscuridade dos séculos e se apagou da memória dos homens, tendo chegado até nós apenas a alcunha Mphula, pela qual era conhecido, e vulgarmente tratado.
Orindo da região dos montes Namúli, residiu durante alguns anos em Ribáué (Oripawe), pois era da família do rei Murula, vindo depois estabelecer morada na zona onde se localiza hoje a cidade de Nampula, primeiramente em Marrere, e mais tarde, no lugar onde actualmente está situado o Quartel militar.
O nome Mphula é abreviatura de Mphula-ohíyu e vem do verbo “ophula”, que significa “arrebentar”, “abrir à abrir por si”, “ser arrebentavel”, e “ophúliwa” ou “ophúliya” é voz passiva do mesmo verbo, Significando “ser arrebentado por alguém”.
Por analogia, emprega-se o verbo “ophula” para indicar o acto de atravessar uma floresta densa nao usando um caminho normal, o acto de passar através de uma machamba ou passar por uma povoacao, fazer “corta-mato”, viajar durante a noite, etc., etc.
No tempo das guerras entre as tribos, o tal rei, para nao entrar em contradicao com os reis seus vizinhos, atravessava com os seus guerreiros, na calada da noite, as povoacoes da jurisdicao daqueles e ia atacar as terras dos reinos mais longinquos, para capturar os homens e saquear as suas riquezas. Regressava aos seus dominios da mesma forma que tinha feito à ida: atravessando os reinos seus vizinhos pacificamente, durante a noite.
Ao espalhar-se a noticia de que as povoacoes de tal e tal tinham sido atacadas e desvastadas por aquele rei, os habitantes dos reinos atravessados despercebidamente por ele perguntavam uns aos outros: ­­- quando foi que ele passou por aqui?
E entao, os que haviam tido conhecimento respondiam: - “Ophunlé muúmu” – o que, traduzido par portugues, significa: “atravessou aqui mesmo, à noite”, quer dizer “ Atravessou esta povoacao durante a noite”.
Repetindo varias vezes o mesmo procedimento, as pessoas acabaram por alcunhá-lo com a designacao de “ Mphula – ohíyu”, isto é “ Arrebentador das Noites”, “ aquele que atravessa terras durante a noite” ou “ atravessador nocturno”, alcunha que ele assumiu e por ela passou a chamar-se dali em diante.
Na nossa tradicao cultural, é normal o sucessor de um chefe tribal passar a ser chamado pelo nome do falecido seu antecessor. Por esta razao, a partir daquele rei, todos os que o sucederam no tronop passaram a chamar-se por “Mphúlohíyu”, mesmo que nao praticassem as facanhas do antigo e defundo rei, deixando-se de lado o nome pessoal de cada um deles.
E isto nao é fenomeno ou assunto do outro mundo. Por acaso nao sucedeu o mesmo em relacao aos imperadores da Antiga Roma e aos reis do Egipto Antigo? Os imperadores de Roma eram “cesar”, independentimente do seu nome pessoal Tiberio, Julio ou Augusto; e os reis do Egipto eram denominados por ”Faraó”, fossem eles Menés, Ramsés ou Amanófis...

 EVOLUÇÃO DO NOME ”MPHÚLOHÍYU”
Por o nome “Mphúlohíyu” ser longo, e com andar dos tempos, reduziu-se “Mphla”,  isto é “Atravessador”, deixando-se de fora o termo “ohíyu” (noite).
Na limgua emákhuwa, para indicar respeito adiciona-se ao nome de um rei (ou chefe tradicional…) a designação de “Múnu”, ou Ana, correspondendo ao título honorífico de “DOM” ou “Senhor”, na língua portuguesa.
Vejamos, rapidamente, os quatros exemplos de nomes que se seguem:
  • Khvala→ Khavala-Mnúnu, Á-Khavala, Yá-Khavala, Ana-Khavala;
  • Kharowa→Kharowa-Mnúnu, Á-Kharowa, Yá-Kharowa, Ana- Kharowa;
  • Mkhuna→ Mukhuna-Múnu, Á-Mukhuna, Yá- Mukhuna, Ana-Mukhuna;
  • Mphula→Mphula-Múnu, Á-Mphula, Yá-Mphula, Ana-Mphula.
Falecido primeiro Mphula, governaram no seu trono, uns após outros, vários sucessores, e, o reinado de Mphula que veio a seguir,de nome próprio Therréla, chegaram aqui os portugueses, exatamente na altura em que estava mais em uso a designacao ’’Ána-Mphula’’.     
Ouvindo mal a pronuncia e desconhecendo  que “Ána’’ era um título honorífico e ainda optando pela ‘’regra do mais fácil’’, os portugueses escreveram simplesmente  “Nampula’’ e assim ficou, até aos nossos dias…
O mesmo aconteceu, por exemplo, com o nome de Khavala, que de Ána-Khavala resultou em Nacavala; Kharowa, de Ána-Kharowa saiu Nacarowa; Mukhuna, de Ána-Mukhuna proveio o actual nome Namecuna; etc.,etc.,e etc.



A CIDADE DE NAMPULA
Nampula na década 60 (vista aérea)
Como viram, até aqui falei apenas da origem e evulucao do nome ‘’Mphúlohíyu’’, que através dos tempos chegou a actual Nampua. É uma memória que me ocorreu.
Estamos aqui para falar de ‘’Menórias de Nampula’’ não é verdade?.. Entao, falemos agora um pouco da cidade em que nos encontramos, a cidade de Nampula.
Esta cidade foi capital do distrito de Mocambique, a actual Província de Nampula, em 1 de Janeiro de 1935. Nessa altura, Mocambique era colónia, administrativamente dividida em três províncias: Província do Niassa, com a capital em Nampula; Província de Manica e sofala, capital beira; e Provincia do Sul do Save, capital Lourenco Marques, que tambem era capital de todo Mocambique.
Cada provincia estava dividida em distritos, e estes, em circunscricoes, conselhos, postos administrativos, regulados ou regedorias e povoacoes. Mais tarde, isto é em 1951, a colonia de Mocambique passou a ser Provincia Ultramarina Portuguesa, com a mesma divisao administrativa.
A povoacao de Nampula foi criada pela portaria n° 1516, de 22 de Maio de 1922, e elevada à categoria de Cidade pela portaria n° 11600, de 22 de Agosto de 1956.  
 O major Neutel de Abreu cuja estátua está junto ao Museu Militar, fundou o posto militar de Nampula em 7 de Fevereiro de 1907.


MAHÕHO E SUAS ARTIMANHAS
Mas, quem foi Neutel de Abreu?... Foi um comandante militar, encarregue para conquistar e ocupar as terras desta região do Norte de Moçambique. Tinha fixado residência em Mossuril, onde estava estabelecido o Quartel Militar de São José, partindo dali com contingentes militares contra a população do interior, tais como as dos Namarrais (Anámarralo), as de Muecate e as das zonas de Mogincual, Quinga, Liúpo, Mogovolas e Corrane, vindo a estabelecer-se, como vimos, no local onde é hoje a Cidade de Nampula, antiga sede de Macuana – Omakhuani.
As populações destas terras conhecem Neutel de Abreu por “Mahõho”, alcunha que lhe deram pelo seu modo de falar fanhoso, expelindo os sons e as palavras mais pelas narinas do que pela boca.

Para vencer com facilidade as populações nativas, além das espingardas de repetição que os seus homens de guerra usavam, Neutel de Abreu, o Mahõho, recorreu também a várias artimanhas ou estratagemas, aproveitando-se da ignorância e ingenuidade das pessoas, intimidando-as.

O rei Mphula não foi vencido num campo de batalha, mas sim e uma forma cobarde e traiçoeira, com auxílio de Mukwepere – Múno, senhor das terras de Corrane, pois a sede do seu reino foi atacada e ocupada quando ele estava ausente, nas terras de Kharámaja.
Á medida que a Cidade de Nampula ia crescendo, foram surgindo as ruas, avenidas, escolas e outras instituições de carácter sócio – económico e cultural. (Ver lista anexa).

A UniLúrio
A nossa Universidade tem o nome de Lúrio, nome do rio que estabelece limite natural entre as províncias de Niassa, Zambézia, Cabo Delgado e Nampula.
O rio Lúrio nasce próximo do lago Chirua, Posto Administrativo de Mulumbo, Distrito de Micanhelas, Niassa, na vertente norte do monte Maleme (que os portugueses escreveram Monte Malema).
O seu nome, entre as populacoes por ele banhadas, é Luúli, desde a nascente até onde desagua, no Oceno Índico. Tem por afluentes os rios Muanda, Lileio, Malema, Naálume e lalaua.
Lúrio é o nome de um barco que, em tempos, num troço daquele rio, transportou escravos para o mar, sendo dali levados para outras terras do mundo”, segundo ouvi dizer, já não me lembro de quem, pois que nem todas as memorias nos aparecem no momento em que precisamos delas.


08 setembro 2012

AS CRISES POLÍTICO-MILITARES NA GUINÉ-BISSAU: CAUSAS, PROBLEMAS E SOLUÇÕES


AS CRISES POLÍTICO-MILITARES NA GUINÉ-BISSAU: CAUSAS, PROBLEMAS E SOLUÇÕES

APRESENTADO NUM ENCONTRO SOBRE AS CRISES NA GUINE-BISSAU.

O golpe de Estado na Guiné-Bissau do passado dia 12 de Abril de 2012 (mais um), não surpreendeu verdadeiramente ninguém minimamente avisado porque fora anunciado (insinuado) na véspera, por Kumba Yalá à cabeça dos Cinco - os que contestaram os resultados das eleições presidenciais - na sua conferência de imprensa então realizada.
Ao reiterar o que antes afirmara da sua não participação na 2ª volta (eleições presidenciais) Kumba Yalá disse expressamente que não haveria a 2ª volta, deixando entender que o processo eleitoral seria interrompido.
Na sequência desse golpe, as reacções não se fizeram esperar. Registe-se o forte e contundente comunicado da CPLP que deu o mote às demais organizações internacionais, para a condenação inequívoca do golpe ao mesmo tempo que exigiam todas - organizações internacionais - o regresso imediato à ordem constitucional. No mesmo sentido, e com a mesma veemência, antecipando as próprias resoluções do Conselho de Segurança, foi a voz do Secretário-Geral das Nações Unidas Ban-Ki Moon. A CEDEAO, com a ambiguidade e a inconsequência que se lhe conhecem, "condena" o golpe mas presta-se de seguida a legitimá-la através de negociações generosas sempre em benefício e impunidade dos golpistas sustentadas com o argumento de que é preciso evitar "banhos de sangue". No fundo a CEDEAO não tem moral para condenar quaisquer golpes porque com mais ou menos "nuances" ela se edifica sob fundações golpistas.
De entre as inúmeras reacções populares e dispersas por todos os cantos em que exista um guineense, e não só, pois até a longínqua e poderosa China se manifestou por mais de uma vez, destaco uma que se realizou no Centro de Estudos e Estratégia do Ministério dos Negócios Estrangeiros sob a forma de um debate subordinado ao tema "As Crises Político-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e  Soluções" para o qual fui convidado como "Animador do Debate". Levei à letra o meu papel e propus-me apresentar à audiência o quadro em que se desenrolava toda a espiral de violência que grassa a Guiné-Bissau desde os primórdios da ocupação do seu território, até os nossos dias, com especial ênfase  para estes últimos anos, pretendendo desta forma descrever o cenário em que se deveria processar o debate.
Da cronologia dos acontecimentos que tem início com a chegada dos portugueses - meados do século XV - salientei os marcos mais relevantes da História recente da Guiné-Bissau no quadro da violência, detendo-me para uma análise mais cuidada naqueles que, em meu entender, são mais representativos para a compreensão do fenómeno.

Da resistência "armada" à ocupação colonial, de carácter étnico (papeis, balantas, beafadas, felupes e outras) e circunscrito ao chão de cada etnia que termina nos finas dos anos 30 do século passado passando pela resistência política em que foram precursores a Liga Guineense (1910 - 1915), o Partido Socialista (1948) e o MING (1955) mas também protagonizada por um enxame de partidos políticos nacionais:
(FLING (Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné Portuguesa)
FNLG (Frente de Libertação da Guiné)
MLG (Movimento de Libertação da Guiné)
PDG (Partido Democrático da Guiné-Bissau)
PELUNDENSE (formado apenas por manjacos de Pelundo)
PLG (Partido de Libertação da Guiné)
UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa)
UPG (União Popular da Guiné)
UPLG (União Popular de Libertação da Guiné Portuguesa) e supranacionais:
FGICV (Federação da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde)
FLGC (Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde)
FUL (Frente Unida de Libertação da Guiné e Cabo Verde)
MLGC (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde)
MLGCV (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde)
PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde)
a maior parte de vida muito efémera, mas todos afastados da luta para a independência pelo génio diplomático de Amílcar de Cabral que acaba por fazer reconhecer pela comunidade internacional o PAIGC como o único e legítimo representante dos povos da Guiné e Cabo Verde. O PAIGC torna-se deste modo no alfa e no ómega da questão. É no PAIGC que nascem as causas e estou convencido de que é com o PAIGC que se encontrará a solução. Se não, vejamos:

1. Em 1963, o PAIGC dá início à luta armada. E, pela primeira vez na história da Guiné, um balanta, um papel, um mandinga, um fula, um felupe ou um anónimo qualquer de qualquer outra etnia está disposto a lutar e a morrer não especificamente pelo seu "chão" mas por toda a Guiné, pelo "chão" do outro, pelo chão comum.
2. A luta armada conduzida pelo PAIGC ao pôr em mãos impreparadas e mentes pouco esclarecidas um instrumento de matar permitiu que o terror, o abuso de autoridade, o desrespeito e mesmo o barbarismo se espalhassem de forma tão epidémica que Amílcar Cabral teve necessidade urgente de convocar uma reunião de quadros conhecida por "Congresso de Cassacá", para pôr cobro aos desmandos dos então senhores da guerra que se apresentaram nessa reunião fortemente armados e escoltados. Teve AC de fazer apelo à toda a sua diplomacia para evitar que ali mesmo se operasse um banho de sangue. Dessa reunião, para além da criação das FARP, uma forma de controlar, disciplinar e balizar a violência, saíram importantes orientações que determinaram o rumo do PAIGC. O pós-congresso gerou ajustes de contas e um banho de sangue, até então sem precedentes.
3. A violência não terminou porque a luta armada é, de per se, uma violência. Processos sumários continuaram e condenações à morte por fuzilamento não eram raras.
4. O PAIGC era minado por intrigas e conspiraçõezitas internas, é bom reafirmá-lo, que culminaram com o assassínio de Amílcar Cabral em 1973.
5. O assassínio de Amílcar Cabral espoletou uma vaga de execuções sumárias de carácter sangrento e generalizado com denúncias seguidas logo de execuções, sem julgamentos, para evitar, ao que se diz, o seu (das denúncias) efeito boomerang. O envolvimento de dirigentes de topo, da Guiné, era de tal forma abrangente que, falam rumores sustentados, que foi preciso a intervenção do arguto e atento Presidente Samora Machel que tinha na comissão de inquérito, o seu braço direito Aquino Bragança, a alertar que se se continuasse com as execuções ficar-se-ia sem gente para continuar a luta tal era a abrangência dos implicados. Isto fez com que muitos dos eventuais "implicados" fossem ignorados para não decepar a estrutura da luta armada.
6. Ainda no ano de 1973, mais propriamente a 24 de Setembro, a Guiné-Bissau declara a sua independência que será reconhecida de jure pela potência colonizadora em Setembro de 1974 depois de dezenas de outros países já o terem o feito. Foi a 1ª vez em África, pelo menos na ao Sul de Sahara, que uma independência não é "concedida" mas sim reconhecida pela potência colonizadora.
7. Em 25 de Abril de 1974 acontece o Golpe de Estado em Portugal que ficou conhecido pela Revolução dos Cravos pondo fim a uma ditadura que durava quase 50 anos.
8. Pouco tempo depois do Golpe de 25 de Abril, o PAIGC instala-se oficiosamente em Bissau, e assiste-se a uma onda de "raptos" seguidos de fuzilamentos no mato de indivíduos que haviam abandonado o PAIGC, e se encontravam em Bissau, e de outros que eram acusados de colaborar com o "colon". Nem sequer havia julgamentos. Uma "brigada" composta por uma suposta gente na clandestinidade ávida de mostrar serviço apontava-os e localizava-os não se sabe com que critério. Eram levados e fuzilados. Quando se perguntava por um fulano, que se supunha nessa situação, a resposta era: Partido lêba'l! (O Partido levou-o!) As coisas passavam-se à calada da noite e sob a cumplicidade silenciosa de todos. Tudo era permitido ao PAIGC, inclusive tirar vida aos seus concidadãos, por simples decisão dos seus dirigentes e sem que tenha de prestar quaisquer justificações públicas.
9. A entrada do PAIGC após o reconhecimento de jure fora deveras triunfal. O mundo inteiro rendia-se à gesta dos obreiros da independência. E os guineenses orgulhosos dos seus combatentes reverenciavam-se humilde e generosamente perante eles. Entregaram-se de alma lavada e de corpo inteiro ao anunciado projecto da (re)construção nacional.  Acreditaram todos, com raríssimas excepções, que aqueles que foram capazes de levar de vencida, com todo o brilhantismo que se lhes reconhece, um exército europeu, também poderiam ser competentes para gerir o País. Tanto mais que anunciavam em grandes parangonas a chegada do "Homem Novo forjado na luta" prenhe de virtudes e convicções nacionalistas.
10. O sucesso da luta embriagou o PAIGC e cegou os seus dirigentes. Declaram guerra à uma indefesa e descuidada (politicamente) sociedade de "civis" e não só decretaram o seu desaparecimento, como arrogantemente dispensaram a sua participação como cidadãos de pleno direito no processo da (re)construção nacional. Um amigo meu, a este propósito, e comentando um artigo que eu escrevera, disse:
"Para o cúmulo disso tudo, o que está a atrasar o país é que introduziram na vida social guineense um elemento perturbador que é a divisão entre os que fizeram a luta, «os melhores filhos», que a si arrogam tudo, e os que já cá estavam que lhes devem prestar vassalagem e a nada têm direito."
11. O governo instalou-se em Bissau após o reconhecimento de jure por parte de Portugal. Os ministros eram chamados "comissários" e ao primeiro-ministro "comissário principal". Logo nos primeiros sinais verificamos que estávamos perante gente incapaz e incompetente para gerir um país. Arrogantes e com tiques autistas para esconder as enormes insuficiências e total impreparação; e a culminar uma moral muito duvidosa dado o comportamento perante a sociedade.
12.  O período desse governo foi de seis anos (1974 - 1980). Teve o privilégio e o benefício de ter sido o governo que maior ajuda per capita recebeu no mundo inteiro. Desbaratou-a completamente em projectos megalómanos decididos de forma acéfala e autocrática. Sobre este período escrevi num artigo de opinião:
"O novo poder que se instalou em Bissau (1974), não escondia o seu carácter repressivo, autoritarista, intimidatório e revanchista. O medo e a intolerância instalaram-se. O ajuste de contas havia já substituído a reconciliação mesmo antes da sua instalação (do poder) com desaparecimentos misteriosos e execuções sumárias. Algumas ocorrências e mortes, designadamente a do Primeiro-Ministro Francisco Mendes (Chico Té) encontram-se até hoje envoltas em profundos enigmas e mistérios. A debandada dos quadros e de toda uma administração com o seu "know how" processava-se de forma assustadora criando um negligenciado vazio real na Administração do Estado, de efeitos não devidamente dimensionados e sopesados e, por isso, arrogantemente desprezados pelas novas autoridades. Os projectos megalómanos pontificavam-se como verdadeiros elefantes brancos desbaratando a eito toda a ajuda da cooperação internacional; sinais exteriores de riqueza exibiam-se denunciando na mesma medida um certo novo-riquismo e o despontar despudorado da corrupção; os bens essenciais escasseavam; o peso, moeda nacional, depreciava-se a um ritmo acelerado agravando o já muito débil poder de compra; e a economia degradava-se a uma taxa galopante. A insatisfação era total."
13.  Perante o cenário descrito, que talvez peque por defeito, pois funções de director-geral de importantes empresas públicas chegaram a ser exercidas por autênticos analfabetos cujo único curriculum era ter participado na luta para a independência, rumores permanentes percorriam toda a cidade de Bissau sobre a iminência de um golpe de estado. O que variava era apenas a identidade do seu eventual autor que oscilava entre 2 a 3 nomes;
14.  A 14 de Novembro de 1980, Nino Vieira consuma aquilo que todos esperavam pondo fim a esse governo, do qual ele era primeiro-ministro, através daquilo a que chamou "Movimento Reajustador". Suspende a Assembleia Nacional e cria o "Conselho da Revolução".
15.  Foi na sequência desse golpe que aparecem as valas comuns com algumas centenas de cadáveres, pondo a descoberto a máscara humanística do PAIGC e que pela sua gravidade e dimensão humana e no quadro do sistema de funcionamento do PAIGC - estrutura marxista-leninista - não se podem alhear, como bem o tentaram, os seus dirigentes de topo (ainda em Unidade) em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Todos "sabiam" e foram igualmente responsáveis. A este respeito um outro articulista depois de confirmar o quadro descrito no ponto 12, acrescentava:
"O que não sabíamos (nem podíamos imaginar) era que nessa altura o regime já tinha embarcado num projecto criminoso para o qual não havia volta. Nesse preciso momento Guineenses estavam a matar Guineenses e a enterrá-los em valas comuns em Jugudul,Cumeré, e outros sítios, num genocídio que nem os colonialistas nos seus mais criminosos sonhos ousaram apenas imaginar."(Fim de transcrição)
16.  Com o golpe de 14 de Novembro na Guiné, Cabo Verde apressou-se, num gesto pleno de oportunismo e imediatismo, a romper com o processo de Unidade que tantas vítimas gerara na Guiné e em Cabo Verde tendo até estado nas especulações quanto às causas próximas do assassínio de Amílcar Cabral. De ambos os lados, as congratulações superaram de longe as lamentações que não passaram, na maior parte dos casos, de algum decoro e de puras formalidades.
17.  O chamado "Movimento Reajustador" mostrou logo a sua verdadeira face e fez desvanecer toda a esperança que nele se havia depositado de promover a concórdia nacional e "reajustar" aquilo que se considerava desvio da linha orientadora do PAIGC. Liberto da ala cabo-verdiana do PAIGC, o que foi fortemente aclamado pelos quadros "lutistas" ávidos de afirmação num ambiente de vazio, nasce um corpo de "nacionalistas guineístas" que se apressa a depurar a já muito débil administração do estado através de autêntica caça às bruxas com o beneplácito do poder instituído e dos seus acólitos. O aparelho repressivo é aperfeiçoado e a debandada dos quadros técnicos, sobretudo, de origem cabo-verdiana é praticamente geral. A incompetência e a iliteracia tomam conta do próprio governo; a desilusão e a decepção regressam com o mesmo fulgor dos primórdios da independência.
18.  Nino Vieira tendo enveredado pelo mesmo caminho do seu antecessor, e temendo que lhe acontecesse o que ele próprio havia feito, engendrou a sua eternização no poder, com a eliminação de todos aqueles que com o prestígio também de antigos combatentes, fonte da sua legitimação, lhe podiam fazer frente. Uma figura despontava e impunha-se pela sua postura de discrição, honestidade, fino trato, sensatez e clarividência, tanto entre aqueles que de perto trabalharam e trabalhavam com ele, como em toda a sociedade guineense - Paulo Correia.
19.  É assim, que:

i. A 17 de Outubro de 1985, uma alegada intentona "balanta" para derrubar Nino Vieira foi atribuída a Paulo Correia que no seu seguimento foi "julgado" e condenado à morte com mais 5 (Binhanquerem na Tchuda, Braima Bangura, N'Baná Sambú, Pedro Ramos, e Viriato Pam) de entre mais de meia centena de acusados. Outros 5 terão perdido a vida na prisão (Agostinho Gomes, B'nhate na Biate, Foré na ‘Mbitna, João da Silva e Zacarias António Pereira). Processa-se a partir desta data uma autêntica antropofagia entre os dirigentes do PAIGC que se vêem privados por eliminação física dos seus mais proeminentes quadros da luta armada.

ii. A 7 de Junho de 1997 uma tentativa de golpe de estado levada a cabo por uma "Junta Militar" chefiada por Ansumane Mané, ex-CEMGFA, deposto uma semana antes por alegado envolvimento no tráfico de armas com os rebeldes de Casamança, gera uma guerra civil.
iii. A 7 de Maio de 1999 Nino Vieira é deposto. Parte para o exílio depois de obrigado a renunciar o cargo de PR que é assumido interinamente, nos termos da Constituição, pelo Presidente da ANP, Malam Bacai Sanhá pondo fim a uma guerra civil de 11 meses.
iv. Em Julho de 1999, processam-se importantes emendas na Constituição: Abolição da pena de morte; limitação de mandatos de presidente da república a dois; estabelecimento de que os principais titulares de cargos de estado têm que ser guineenses, filhos de pais guineenses. (ii)
v. A 16 de Janeiro de 2000, Kumba Yalá, do PRS, vence as eleições presidenciais contra o candidato do PAIGC, Malam Bacai Sanhá. Com a eleição de Kumbá Yalá as funções presidenciais perderam dignidade e respeito devido a postura histriónica do presidente potenciada com actos caricatos e indignos para a imagem interna e externa do País. Mas o mais grave é a tentativa de "balantização" do exército com a elevação a patentes de comando de muitos militares.
vi. O acto de promoção por parte do PR desagradou o então CEMGFA, Ansumane Mané, que numa atitude pública e mediática provocatória, insensata e humilhante para os protagonistas processou de forma arrogante a retirada, pelas suas próprias mãos, das patentes que tinham sido conferidas a esses militares.
vii. A 30 de Novembro de 2000 é assassinado Ansumane Mané, de forma bárbara, ao que parece depois de ele se ter entregado, estando ainda por desvendar os autores e as verdadeiras razões do seu assassínio.
viii. A 14 de Setembro de 2003, Kumba Yalá, através de um golpe comandado por Veríssimo Seabra, então CEMGFA, à frente de um "Comité Militar", é deposto. Renuncia formalmente 3 dias depois, tendo sido substituído pelo empresário Henrique Pereira Rosa.
ix. A 6 de Outubro de 2004, Veríssimo Seabra, CEMGFA, é assassinado supostamente por um levantamento dos militares que tinham estado na Libéria como força de interposição, aparentemente, por corrupção ligada à questão salarial.
x. A 24 de Julho de 2005 Nino Vieira volta ao poder através de eleições, demite o governo de Carlos Gomes, Jr. (discricionariedade que gera polémica constitucional) e nomeia em seu lugar Aristides Gomes (1 de Novembro de 2005) que é deposto através de uma moção de censura em 19 de Março de 2007. Carlos Gomes regressa ao poder em Dezembro de 2008 através de eleições ganhas pelo PAIGC com larga maioria.
xi. A 1 de Março de 2009, Tagma na Waié, CEMGFA, é assassinado através de um atentado bombista que, dadas a sofisticação, técnica e precisão utilizadas, dizem uns, ter a assinatura dos narcotraficantes estrangeiros não obstante também ele, Tagma, ser acusado de controlar uma das várias redes militares de narcotráfico; dizem outros, que é obra de especialistas militares estrangeiros. Acontece que Tagma na Waié previa o seu assassínio e apontava o seu futuro autor, pelo menos moral. Tinha deixado uma mensagem aos seus camaradas de armas: "Se ele me matar de manhã, matem-no à noite". A este propósito um amigo meu escreveu: "Talvez tenha sido a primeira vez que um morto mata um vivo."
xii. A 2 de Março de 2009, cumpria-se rigorosamente as ordens de ex-CEMGFA, com o assassínio de Nino Vieira que se diz ter sido uma mistura de tiros e catanadas da forma mais selvagem e bárbara que se possa imaginar. Dizem uns, por gente ligada a Zamora Induta a mando do PM Carlos Gomes, Jr. e outros que a operação fora levado a cabo por membros do Batalhão de Mansôa que se encontrava sob o comando de António Injai que:
"Uma semana antes Indjai assinara em Bissau, perante uma comissão composta pelo Primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, CEMGFA, Zamora Induta, Procurador-Geral da República e o Presidente, um documento onde reconhecia estar envolvido numa operação de narcotráfico que ocorrera no aeródromo de Cufar, sul da Guiné, desmantelada «in extremis» pelos militares de Zamora Induta. Na mesma ocasião ficou estabelecido que António Indjai seria automaticamente exonerado do cargo de número dois das forças armadas e partiria para Cuba, oficialmente, em «tratamentos médicos»." (Fim de transcrição)
xiii. A 5 de Junho de 2009 são assassinados Baciro Dabó, candidato às presidenciais e Helder Proença (Político dinâmico, ex-Ministro da Defesa de Nino Vieira). Sobre o assassínio de Baciro Dabó, escreve um analista num artigo intitulado "Figuras de Narcotráfico na Guiné-Bissau:
"Pedra basilar de todo o fenómeno do narcotráfico na Guiné-Bissau foi Baciro Dabó, assassinado na madrugada de 5 de Junho de 2009 em mais uma alegada tentativa de Golpe de Estado a assolar a ex-colónia portuguesa. Baciro Dabó ocupou entre 2006 e 2008 as pastas de Secretário de Estado da Ordem Pública e posteriormente de Ministro da Administração Interna. Em final de 2008, e não obstante o avolumar de suspeitas internacionais de envolvimento no narcotráfico, Baciro foi nomeado Ministro da Administração Territorial."
Mais adiante, continua o mesmo articulista:
"Mas a transformação da Guiné - Bissau em Narco-Estado não foi trabalho exclusivo de Baciro Dabó. Apesar do lugar central que desempenhou, Baciro teve a conivência e o apoio das principais figuras do Estado Guineense, desde políticos, militares a empresários e deputados, alguns deles ainda em funções.
Nino Vieira, o ex- Presidente da República Guineense assassinado a 2 de Março de 2009, ocupou um lugar central em todo este processo."
xiv. Bacai Sanhá é eleito Presidente da República a 28 de Junho de 2009 vencendo Kumba Yalá numa 2ª volta.

xv. A 1 de Abril de 2010, uma tentativa de golpe de estado conduzida pelo vice-CEMGFA, Gen. António Injai e pelo Alm. Bubo na Tchuto, detém o PM Carlos Gomes, Jr. com ameaça de morte, caso houvesse reacção popular de apoio bem como o seu CEMGFA, Alm. Zamora Induta. O silêncio inicial do então-Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, foi notória e a sua condenação tímida e tardia foi grave, sobretudo ao classificar a ocorrência como um "pequeno problema entre militares". Mas mais grave ainda foi o facto do autor do atentado ter sido, por ele, nomeado no seguimento do seu acto a CEMGFA tal como reivindicava apesar do aviso americano através de um comunicado transmitido da sua embaixada em Dakar:
"É impossível para os EUA contribuir para o processo de reforma da segurança e da defesa se essas pessoas, ou outros implicados no tráfico de estupefacientes, forem nomeados ou permanecerem em postos de responsabilidade nas forças armadas", acrescentando em outro passo:
É "imperativo" que o chefe das Forças Armadas - que deve ser nomeado em breve pelo Presidente da República, Malam Bacai Sanhá - não esteja "implicado nos acontecimentos de 01 de Abril", evocando implicitamente o major-general António Indjai.
Mais tarde, num despacho da Lusa lê-se:
"O governo americano espera trabalhar com as autoridades guineenses para desalojar as pessoas que ocupam funções oficiais e que se servem do seu poder para facilitar o tráfico de estupefacientes".
Ainda no decorrer deste caso e sobre o Alm. Bubo na Tchuto, seu cúmplice, escreve um analista:
"No dia 1 de Abril, soldados leais a Bubo Na Tchuto entraram no edifício da ONU e resgataram-no[iii], enquanto detinham o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e o Chefe do Estado-Maior General, almirante Zamora Induta.
"Bubo Na Tchuto é a força por trás de todas as outras forças", disse à reportagem o director político da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), Abdel Fatau Musah. "O facto de ele estar a controlar as coisas é muito desagradável".
xvi. Malam Bacai Sanhá morre em França a 9 de Janeiro de 2012 e as eleições presidenciais para a sua substituição têm lugar a 18 de Março de 2012, data que buscava o cumprimento de um preceito constitucional e tinha a concordância de todos os partidos e de todos os putativos candidatos avisados da desactualização dos Cadernos Eleitorais e da impossibilidade de os regularizar nesse lapso de tempo.
xvii. O decorrer das eleições e os resultados da 1ª volta não deixaram qualquer dúvida aos observadores internacionais que se pronunciaram e a diferença de votos entre os candidatos também não deixava espaço para a reclamação posteriormente engendrada. O peso das eventuais irregularidades, seria insignificante para alterar o curso normal das eleições. E a existirem seria mais fácil encontrarem-se entre o 2º e o 3º classificados do que entre o 1º e os outros. (vide quadro)


xviii. A iminência de uma derrota anunciada na 2ª volta por parte da oposição levou que o seu mais bem classificado candidato, por coincidência da etnia balanta, um ex-presidente, eterno contestatário e pertencente ao maior partido da oposição "manipulasse" - só assim se compreende - os outros que se lhe seguiam e os levasse de forma absolutamente inconsequente a se lhe juntarem no coro de protestos.
xix. No dia 11 de Abril os 5 candidatos mais votados depois de Carlos Gomes, Jr, encabeçados por Kumba Yalá, seu porta-voz, dão uma conferência de imprensa, em que o porta-voz afirma que não só ele não compareceria à 2ª volta, como ela, a 2ª volta, não se iria realizar, num anúncio claro de interrupção do processo eleitoral.
xx. No dia 12 de Abril, dá-se o golpe de estado, com a detenção de PR interino, Raimundo Pereira, e do candidato Carlos Gomes, Jr. (PM com funções suspensas e destacado 1º classificado na 1ª volta) de entre outros importantes membros do Governo. 
20. Registe-se que esta onda de violência que vem desde o início da luta armada, não pode ser atribuída a este ou aquele actor político-militar em especial, mas a uma cultura de violência interiorizada e que se manifestou na luta pelo poder.
21.  O mais estranho é que os que matam são do PAIGC e os que morrem também o são num ritual de antropofagia sem precedentes. O PAIGC ontem, um partido de heróis; o PAIGC hoje um partido de assassinos. É uma triste e deprimente constatação.
22. O sonho de Cabral do seu PAIGC gerar um "homem novo forjado na luta" com princípios e valores bem sintonizados com o respeito pela dignidade do Homem e defesa do humanismo e da humanidade foi completamente defraudado pela metamorfose que esse homem sonhado e idealizado terá sofrido, surgindo como o mais acabado homo belicus,  perito na arte de matar.
23. E Amílcar Cabral, homem inteligente e arguto, tinha plena consciência da limitação e incapacidade dos seus homens para o exercício de tarefas fora do contexto "militarista". E advertiu-os, embora sem sucesso, que a luta não era um investimento em proveito próprio, ao preconizar o encontro de Ensalmá da forma como o faz:
"A Luta que levamos a cabo com a arma na mão para tirar os tugas do nosso chão, para a nossa Independência, é o programa mínimo que estamos a cumprir. Não pensem que vamos todos mandar em Bissau. Para aquele que era mecânico, electricista, pescador, agricultor quando entrou na Luta, irão ser criadas condições para ele continuar a sua actividade e viver o seu estatuto de combatente da liberdade da pátria. A nossa Independência termina em Ensalmá. Ela vai ser entregue à gente que virá ao nosso encontro para a assumir. Essa gente é que irá começar a cumprir o Programa Maior que é compor a terra, tarefa maior e mais complicada." (O negrito é meu).
24.  Cabral falhou redondamente na formação do "Homem Novo". E tinha a consciência do "monstro" que estava a criar. Os seus sucessores mostraram-se medíocres, mesquinhos, estreitos de espírito (narrow mind) e algo oportunista tirando proveito da parte mais superficial da sua filosofia que era a incitação ao cumprimento de um programa mínimo - Independência dos territórios da Guiné e de Cabo Verde - que exigia sobretudo engenho militar e mais não era do que uma etapa mínima da luta de libertação no qual ainda continuamos fortemente empenhados e como ele diz, não podia ser feita nem liderada só pelos participantes da 1ª etapa que para tal faltava-lhes o "know how".
25.  A ganância, a arrogância e um certo autismo apoiados apenas e tão-somente no poder das armas falaram mais alto.
26.  E enquanto o Encontro de Ensalmá não acontecer para que interiorização da força do saber e da razão suceda à força das armas, os golpes não pararão. E só o PAIGC pode operar esta inversão porque foi ele que o criou. Todos os principais protagonistas, em todos os golpes ou tentativas, são do PAIGC. Um outro importante denominador comum é a encorajadora IMPUNIDADE de que os autores dos golpes e das tentativas sempre se beneficiaram. E é sobre este aspecto que alguém num longo trabalho tipo ensaio deixa as seguintes interrogações:
"Quem foram os assassinos de Robalo, Nicandro Pereira Barreto, Ansumane Mané, Veríssimo Correia Seabra, Domingos Barros, Lamine Sanha e outros? Quem foram os responsáveis pela vala comum descoberta após golpe de 1980 que derrubou Luis Cabral? Quem foram os traficantes de armas que deram origem à guerra civil na Guiné-Bissau? Quando é que serão julgados os políticos e militares suspeitos de Narcotráfico? Porque Bubo na Tchuto não foi julgado pela acusação de tráfico de droga e pela acusação da tentativa de golpe de estado? Porque é que Intchami Yalá não foi julgado pela tentativa de golpe? Quem foi o responsável pelo desaparecimento de 500 quilos de cocaína apreendidos e guardados no tesouro Público? Quem foram os assassinos de Tagma na Waié e João Bernardo Vieira? (Fim de trancrição).
27.  O último golpe, o de 12 de Abril, merece uma atenção mais cuidada, embora não caiba nesta minha tarefa - animar o debate - analisá-lo em pormenor. Vamos retomá-lo - o golpe de 12 de Abril - para continuar o que no início dissemos:
i. Os autores do golpe, não conseguem justificá-lo. Atribuem-no à presença das forças angolanas - um pequeno contingente de cerca de 200 homens - no território, como ameaça para as forças armadas (mais de 4.000 homens) e a uma carta da qual só apresentam uma eventual minuta, do PM para o Secretário-Geral das Nações Unidas solicitando uma força de interposição (estabilização).
ii. A 1ª justificação visava obter o apoio popular através do apelo ao sentimento nacionalista contra um "invasor" estrangeiro (funcionou outrora) e a 2ª que se tratava de "agressão" contra as FA, ameaçadas de controlo e extinção, feita nas suas costas e contra a sua vontade porque, justificam, a Guiné não está em guerra.
iii. As verdadeiras motivações continuam por "desvendar" uma vez que as apresentadas não colheram. E um dado imediato é o impedimento da realização da 2ª volta das eleições presidenciais na data aprazada.
iv.Reivindicam para o "regresso" aos quartéis, a criação de um Conselho Nacional de Transição; nomeação de um novo Presidente da República e de um novo Primeiro-Ministro; Eleições legislativas e presidenciais, em simultâneo, num prazo de dois anos; manutenção, obviamente, das chefias militares; recusa de qualquer solução que inclua o regresso de Raimundo Pereira e Carlos Gomes, Jr. às suas funções de Presidente da República interino e Primeiro-Ministro, respectivamente. Regresso dos militares às casernas.
v. Pergunta-se: Que legitimidade têm os militares para interromper a ordem constitucional democraticamente instalada e impor a sua vontade?
vi. As reacções internas e externas não se fizeram esperar.
vii. Tiveram, os golpistas, um tímido mas declarado apoio inicial da parte dos cinco candidatos que contestavam os resultados eleitorais de que falamos atrás -  depois deram o dito por não dito - bem como de algumas forças políticas da oposição e condenação de toda a população e das organizações internacionais e de todo o mundo, destacando-se a veemência e contundência da CPLP, da União africana, do Secretário-Geral das Nações Unidas, do Conselho de Segurança, da União Europeia que exigiram o retorno imediato e incondicional à ordem constitucional e sanções aos golpistas. A CEDEAO condenou-o ao mesmo tempo que se apressava em pactuar ao propor negociar uma solução.
viii. O Governo da Guiné-Bissau falava em todos os fóruns com a legitimidade e a autoridade que a legalidade internacional lhe conferia, através do seu representante para política externa - Ministro das Relações Externas. Um erro que os golpistas cometeram e que lhes custou a veemência, a firmeza e a constância do discurso de condenação em todas as frentes bem como a inquestionável solidariedade internacional.
ix. A solução encontrada pela CEDEAO, que se tem mostrado incapaz de todo, de resolver este tipo de problema, não representava nem de perto nem de longe, a tolerância zero estipulada pela organização, pois contemplava os interesses dos golpistas ignorando o governo legítimo, democraticamente eleito e indo mais longe ao cercear, para agradar os golpistas, o acesso ao poder de alguns dirigentes do PAIGC ao invocar que o presidente e o PM interinos não poderiam candidatar-se às eleições que ela (CEDEAO) preconizava. Em conclusão: Não há memória da CEDEAO ter resolvido um golpe de estado em que os golpistas não fiquem incólumes e o golpe, de forma directa ou encoberta, legitimado.
x. Como era de esperar, o PAIGC, uma vez mais firme nas suas posições de reposição da ordem constitucional, rejeitou liminarmente a recomendação proposta pela CEDEAO, pois representava na realidade legitimação do golpe e um pacto com os golpistas para os quais não havia sanções.
xi. Os interesses que gravitam à volta da CEDEAO são vários e de vária índole. Por comodidade e algum decoro apenas os caracterizamos como sendo uns de carácter endógeno, outros exógenos em relação à própria região. Quer uns quer outros, todos à volta daquilo que podemos sintetizar como interesses hegemónicos na região e de passagem algum ressabiamento.
xii. A UA e UE tomaram medidas concretas. A primeira suspendendo de imediato a Guiné-Bissau da Organização enquanto a segunda fechava as suas fronteiras aos golpistas, ambas exigindo o retorno à ordem constitucional.
xiii. A firmeza do PAIGC tem sido nota dominante. Não abdicar minimamente dos seus direitos constitucionais. A procissão ainda vai no adro e é nesta firmeza e defesa de princípios que, a meu ver, estará a solução política, não direi definitiva mas duradoura, dos golpes de estado. Deverão ser procurados procedimentos complementares. A luta armada terminou há 40 anos. Uns poucos, muito poucos, são os militares ainda vivos, com verdadeiro e legítimo estatuto de antigos combatentes para a independência nacional, isto é, oriundos da luta armada. E é para eles, só para eles, que se deve procurar afincadamente uma saída militar, diria, humanista, condigna.
xiv. A questão do narcotráfico deve ser vista e tratada numa óptica global. Só a Guiné-Bissau por si só, não tem meios, nem humanos, nem materiais nem financeiros para resolver o problema.
xv. Feita esta panorâmica da espiral de violência na Guiné-Bissau, que vem desde os tempos da luta armada, penso que estão criadas condições minimalistas para um debate sobre As Crises Político-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e  Soluções,  tema proposto pelo Centro de Estudo e Estratégias do MNE. Não se trata, obviamente, de uma palestra que exigiria uma outra abordagem, mas sim de uma nota introdutória, de um auxiliar de memória, dos parâmetros que devem nortear o debate. Não há posições acabadas, mas apenas tópicos para reflexão.

Armindo Ferreira
[i] Tema do debate para o qual fui convidado para "Animador"
[ii] Amilcar não poderia exercer nenhum cargo do poder de estado na Guiné-Bissau sendo filho de pais cabo-verdianos.
[iii] Bubo na Tchuto encontrava-se escondido nas instalações da Representação das NU em Bissau depois de ter regressado da Gâmbia para onde fugira para não ser preso por acusação de narcotráfico.

ENTREVISTA COM MARIANO MATSINHE


ENTREVISTA COM MARIANO MATSINHE

Mariano Matsinha produziu uma obra, intitulada “Um homem, mil exemplos: a vida e luta de Mariano de Araújo Matsinha”, onde o combatente faz várias revelações sobre vários assuntos dentro da Frelimo.
Mariano Matsinha é um histórico da Frelimo, que começou na UNAMI e um dos negociadores com Samora Machel e Joaquim Chissano do acordo de Lusaka, na Zâmbia, de 7 de Setembro de 1974 com os portugueses para pôr fim à guerra colonial de 10 anos. Este antigo general, foi ex-Ministro de vários governos inclusivé do Governo de Transição de 1975.

Clica no link para escutar a entrevista:

06 setembro 2012

HÁ MUITAS RAZÕES PARA SE IRRITAR COM OS DIRIGENTES AFRICANOS


HÁ MUITAS RAZÕES PARA SE IRRITAR COM OS DIRIGENTES AFRICANOS


Por Jorge Fernando Jairoce


Há muitas razões para estar irritado com os dirigentes políticos de  África, visto que cada dia vão tomando  caminho  de governação autocrática empurrando seus (alguns)  países de volta para o olho da tempestade e ameaçando deste modo as conquistas democráticas das últimas décadas.
Vários líderes procuram agora cimentar seus lugares e se recusam a se aposentar e assistir as eleições do lado de fora, ou recusam-se a entregar o poder depois de perder as eleições presidenciais.
Temos vários exemplos de líderes que não querem abandonar o poder colocando os seus países em conflitos políticos internos. Um dos líderes históricos do Senegal Abdoulaye Wade perdeu as eleições este ano apesar de todas as tentativas para se manter no Poder enquanto José Eduardo dos Santos teve uma sorte diferente ao renovar mais um mandato. Espera-se que a realização de eleições presidenciais em outros países como Serra Leoa, Mali, Mauritânia, Madagáscar, Zimbábwe e Quênia dependendo dos resultados possam mudar a configuração política em África para o melhor ou pior (em caso de manutenção no poder por via fraudulenta). Destaca-se aqui o Robert Mugabe que parece pretender aposentar-se como presidente. Yoweri Museveni do Burundi e Paul Biya dos Camarões, afiguram-se entre os líderes que mais tempo estão no poder apesar de terem vencido suas respectivas eleições presidenciais  com acusações de negligência eleitoral séria. Denis Sassou Nguesso presidente do Congo também está apostado  para continuar a cimentar a sua liderança autoritária. Assim, continuaremos a ter em África uma fortaleza de dirigentes autocratas e corruptos. É caso para dizer que o poder é doce.  
O que aconteceu no segundo semestre de 2011 na África do Norte e, mais especificamente, na Tunísia, Egito e Líbia não parece ter tido qualquer tipo de efeito sobre os líderes africanos da África Subsaahariana visto que muitos deles, ainda se agarram ao poder e em alguns países têm perseguidos e presos os líderes da oposição.
Em 2011, a África pela primeira vez testemunhou a remoção do poder de três presidentes sem uma eleição. Este foi um fenómeno histórico espectacular.  Será que nos próximos anos os outros autocratas vão  deixar o cargo? Será que vai ser através de eleições ou de uma revolta como a que se presenciou no norte da África? Espero o seu comentário.

DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS ETNIAS NO PERÍODO COLONIAL À FORMAÇÃO DE REDES CLIENTELISTAS NOS ESTADOS AFRICANOS


DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS ETNIAS NO PERÍODO COLONIAL  À FORMAÇÃO DE REDES CLIENTELISTAS NOS ESTADOS AFRICANOS


Por Jorge Fernando Jairoce (Texto para debate)

Uma das estratégias utilizadas para a dominação colonial em África logo após a Conferência de Berlim foi a táctica de dividir para reinar, ou seja colocar as várias unidades políticas locais ou as tribos locais a lutarem para entre si com o intuito de fragilizá-los politicamente abrindo assim as possibilidades de controle territorial. Uma vez dominadas, os colonialistas elaboraram uma construção social das etnias, privilegiando o acesso ao poder, privilégios de certas etnias e subestimando outras  como as mais frágeis e incapazes de realizarem determinadas tarefas do interesse colonial a não ser por coação física (uso da violência física e trabalhos mais penosos) - é o caso por exemplo da política colonial belga no Ruanda que criaram condições de conflitos recentes entre os hutus e tutsis (para entender com mais detalhes veja o filme Hotel Ruanda no arquivo do blog).
Assim, os Estados Coloniais foram criando alianças com chefes  locais considerados  "grandes homens localmente" e  incorporando etnicamente algumas  unidades administrativas vinculadas à população local criando um tipo de relações patrão-cliente. Isso foi reforçado por uma preocupação burocrática com a demarcação territoral ,  busca de legitimidade política e sujeição das populações locais.  Daí que afirmo que  as Etnias foram construidas socialmente pelas  elites coloniais que procuravam a base para uma modernização conservadora.  O interessante é que este  legado colonial de autoritarismo burocrático assentes nas relações patrão-cliente e numa dialética complexa de fragmentação étnica, assimilação e competição tem persistido em sociedades pós-coloniais africanas . Existem redes clientelistas na articulação Estado-Sociedade  em vários países africanos apesar de nem sempre serem de carácter étnico e isto tem a ver em parte com a racionalidade patrimonialista dos Estados africanos e também  com a savalguarda de  interesses políticos (manutenção no poder). Assim, explica-se o caráter personalista, materialista e oportunista do poder político em África  originando em alguns casos os conflitos políticos. Essas redes também penetram nas instituições da sociedade civil e da democracia liberal, minando  consequentemente os vários  programas de reforma sócio-econômica e política. Assim, vai-se construindo os Estados-Nação em África.