Bem vindos,

Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

28 fevereiro 2013

GUNGUNHANA "ERA FILHO DO REI DE PORTUGAL!"


GUNGUNHANA "ERA FILHO DO REI DE PORTUGAL!"


Assim foi apresentado o dono do vasto império vátua - que no século  XIX englobava grande parte do território de Moçambique - na cerimónia que assinalou os 110 anos da batalha de Chaimite, decorrida no passado dia 28 de Dezembro, no Museu Militar, em  Lisboa.
O que aconteceu então para que este "filho do rei de Portugal", admirado e respeitado tanto pelas tribos nativas como pelas potências estrangeiras da altura, tenha sido capturado e enviado para Lisboa
onde foi humilhado e vergonhosamente exposto à população após a sua chegada?

Texto de Sílvia Fernandes

Fotos de Gil Garcia e Arquivo Pessoal
A resposta surgiria no decorrer da própria cerimónia no Museu Militar, através do orador, coronel  Américo José Henriques. Entre a assistência, sentados lado a lado, os descendentes de Gungunhana e de Mouzinho de Albuquerque, o imperador africano detido e o oficial português  que o deteve. Um cenário que muitos defendem ser possível apenas entre os portugueses, cujos laços amigáveis criados com os povos em tempos colonizados prescindem de teorias, estudos e discursos políticos, podendo ser facilmente testemunhados em momentos como este.
Maria Júlia e Maria Manuela são filhas de Eugenia, neta de Gungunhana e de uma das mulheres que com ele terão desembarcado em Lisboa em Março de 1896. Do lado de Mouzinho de  Albuquerque, está Miguel Sanches de Baêna, descendente indirecto, uma vez que o oficial português não chegou a ter filhos. A cerimónia prossegue. "Gungunhana era como um filho do rei de Portugal, assim como já haviam sido o seu avô, Manukuse e o seu pai, Muzila", continua Américo Henriques.
Manukuse, membro de um dos ramos da tribo zulu, foi o fundador do Império dos vátuas, povo  altivo, guerreiro. Através de massacres das tribos rivais, ou de alianças estratégicas, entre as quais com o rei de Portugal, Manukuse consegue estender o seu império desde o Zambeze até à região de Lourenço Marques (actual Maputo), abrangendo parte do território de Moçambique, África do Sul e Rodésia (actual Zimbabué). Quando morre, em 1858, o seu filho Muzila envolve-se numa guerra sangrenta com o irmão pelo poder e é graças ao apoio dos portugueses, nomeadamente ao arsenal oferecido, que consegue subir ao trono. Após a sua morte, é a vez de o filho, Gungunhana, disputar o trono com os irmãos, tornando-se imperador depois de mandar assassinar Mafe-mane, herdeiro legítimo. Dono de um vasto império, Gungunhana desperta o interesse dos ingleses e dos colonos sul--africanos, particularmente de Cecil Rhodes e da South African Company, que vêem nos portos moçambicanos de Lourenço Marques e Beira dois pontos estratégicos para o escoamento das matérias-primas do Transval. E Gungunhana estava a meio caminho, podendo ser um aliado poderoso para se chegar ao litoral moçambicano, então sob administração portuguesa.
"É a intriga internacional que faz com que Gungunhana atraiçoe os acordos que mantinha com a  coroa portuguesa". Através de constantes "embaixadas", nomeadamente inglesas e alemãs,  enviadas para junto do imperador africano, a relação com os portugueses é "envenenada". "Foram  os interesses internacionais que viraram os africanos contra os portugueses", afirma Américo Henriques, acrescentando de seguida que infelizmente, a história repetiu-se" décadas mais tarde. E como diz um velho ditado africano numa cheia de duplicidade, conforme escreveu Georges  Liengme, missionário que conviveu de perto durante três anos com o imperador vátua.
A gota de água em relação à coroa portuguesa acontece em finais de 1894, quando, mais uma vez  instigados por forças estrangeiras, os guerreiros vátuas atacam a linha dos caminhos-de-ferro às  portas de Lourenço Marques. A notícia surge na imprensa europeia da época com grande impacto, tentando mostrar Portugal como uma potência fragilizada, incapaz de garantir, não só a segurança  das populações não negras da região, como também incapaz de garantir a segurança do transporte  de mercadorias, sector vital para a presença europeia em África. O rei decide contra-atacar e envia António Enes como comissário régio para tentar resolver a situação no local. "António Enes não  era um militar, mas era um profundo conhecedor da realidade africana, com uma grande visão  estratégica, que soube escolher uma elite militar para o acompanhar na sua missão", explica  Américo Henriques. António Enes tinha duas hipóteses: ou ia directamente a Manjacaze, "capital" do império vátua - opção arriscada dado o elevado número de régulos tribais aliados ao imperador  que iria encontrar pelo caminho - ou criava uma série de pontos fortificados, apertando aos poucos  o cerco a Gungunhana, levando-o assim a uma submissão pacífica. Optando por esta segunda solução, as forças portuguesas dividiram-se em três colunas que avançariam para o interior do continente ao longo das margens de três rios, criando uma cintura a Manjacaze: a sul, o Incomati;  no centro, o Limpopo; e um pouco mais a norte, o Inharrime. Mouzinho de Albuquerque integrava  esta última força, que partiu de Inhambane.


EXPEDIÇÃO PUNITIVA
Dia 2 de Fevereiro 1895. A algumas dezenas de quilómetros de Lourenço Marques, a coluna que  subia pelo Incomati trava a batalha de Marracuene. "Neste combate batemo-nos em quadrado e  suportámos um assalto violentíssimo - numa proporção de 30 para um - chefiado por dois dos  régulos mais importantes da região: Mazulo e Matibejana", conta Américo Henriques. Apesar da  vitória das forças portuguesas chefiadas por Caldas Xavier, cujo impacto se fez sentir na imprensa  europeia, os dois régulos conseguem fugir. No entanto, perante as potências estrangeiras, a imagem de Portugal sai reforçada e a campanha prossegue. A Gungunhana é dada a oportunidade de entregar os dois régulos, que, entretanto, se refugiam em Manjacaze. Seria como uma prova de  boa vontade do imperador africano para com a coroa portuguesa. Até porque os dois homens haviam também estado envolvidos no ataque ocorrido em 1894 contra à linha-férrea.
"No entanto, ele recusou entregá-los. Se o fizesse perdia a confiança dos outros régulos seus  subordinados. E assim ficou em posição frontal connosco", explica Américo Henriques, acrescentando que "foi então que nós decidimos preparar uma expedição punitiva a Manjacaze para o Outono de 95, para capturá-lo." Esta expedição, que deveria seguir pelo rio Inharrime, foi atrasada por diversas vezes por dificuldades logísticas. Entretanto, a coluna que subia pelo  Incomati chega a Magul, onde trava nova batalha. Mais uma vez, as forças portuguesas, agora comandadas por Aires de Orneias, saem vitoriosas e a notícia volta a espalhar-se. Encorajada com este resultado, a coluna de Inharrime decide avançar no terreno, apesar do fraco apoio logístico.
Ao seu encontro, Gungunhana, envia um grupo de guerreiros chefiados pelo seu filho Godide, e as duas forças acabam por se confrontar em Coolela, tendo os portugueses alcançado nova vitória.
Gungunhana, ao tomar conhecimento do resultado da batalha, decide fugir e quando o coronel Rodrigues Galhardo, que chefiava a coluna de Inharrime, entra com as suas tropas em Manjacaze,  este está deserto.
Por esta altura, António Enes regressa a Portugal para apresentar o seu relatório ao rei. Mas antes  cria um novo distrito, o de Gaza (até então só existiam o de Lourenço Marques e Inhambane),  nomeando como governador Mouzinho de Albuquerque, a quem deixou ordens expressas para capturar Gungunhana. Também data desta altura a transferência da sede do Governo de Moçambique, da ilha para Lourenço Marques. "O governador, antes da chegada do comissário régio, era o coronel Fernando de Magalhães, que, tal como os seus antecessores, vivia na ilha de  Moçambique. Aí é que era a sede do governo de Moçambique. O António Enes tirou o Governo  da ilha e levou-o para Lourenço Marques, para o sul, para o campo da batalha", explica Américo Henriques.

CAPTURA EM CHAIMITE
Entretanto, vendo o avançar das tropas portuguesas, o imperador vátua manda entregar um dos  régulos, Matibejana, oferece marfim e outro tipo de riquezas e até envia o seu filho Godide como  sinal de boa vontade, mas já de nada lhe vão servir estas atitudes. "O objectivo agora era, única e  exclusivamente, a sua captura", afirma Américo Henriques. Só que Gungunhana estava desaparecido desde a batalha de Magul, enquanto que, do lado português, a campanha para tentar apanhar o "Leão de Gaza" continuava. Até que um dia, num dos pontos fortificados ao longo da linha do Limpopo , surge um indígena de nome Hassane, com uma informação valiosa: Gungunhana está  escondido em Chaimite, panteão vátua, onde se encontram enterrados o seu avô, Manukuse e o seu pai, Muzila. Mouzinho de Albuquerque toma conhecimento da notícia, sabe que tem de agir rapi-damente, mas não tem tropas suficientes para empreender um ataque massivo ao último reduto vátua. Mesmo assim, decide pegar em 46 homens e avançar, entrando em Chaimite no dia 28 de Dezembro de 1895. Ninguém sabe muito bem por que é que os cerca de 300 guerreiros vátuas não  dispararam sobre os homens de Mouzinho de Albuquerque. "Terá sido do factor surpresa ou tão  pura e simplesmente da ousadia do oficial branco?" A verdade é que, "muito superiores em  número, poderia ter sido um verdadeiro banho de sangue, mas em Chaimite apenas morreram dois  homens, conselheiros de Gungunhana, fuzilados pelas tropas portuguesas", explica Américo  Henriques. Quando Gungunhana sai da sua palhota, Mouzinho ordena que lhe amarrem as mãos.
Depois exige que Gungunhana se sente no chão, algo impensável para um imperador. Perante a  recusa deste, afirmando que o chão estava sujo, Mouzinho obriga--o a sentar-se à força como sinal de submissão. Assim foi capturado o temido «Leão de Gaza».
"A captura de Gungunhana foi trágica, mas teve de ser. Sobretudo porque a situação do ponto de vista internacional era tão precária para Portugal que nós tínhamos que mostrar aos estrangeiros,  com determinação e até com uma certa crueldade, a nossa posição ou eles não nos aceitavam",  sublinha Américo Henriques, acrescentando que "a nossa filosofia de colonização foi sempre  branda e a ideia deles era violenta. E nós tivemos também que ser violentos para eles nos  respeitarem. Os estrangeiros, não os nativos, que esses sempre nos conheceram da mesma maneira.
Esta é a verdade de 1895", conclui. Terminada a apresentação, ao sabor de um Porto, Maria Júlia e  Maria Manuela, bisnetas de Gungunhana, Miguel Sanches Baêna, descendente de Mouzinho de  Albuquerque, e ainda os descendentes do régulo Matibejana, vindos propositadamente dos Açores para esta   cerimónia, brindam aos seus antepassados e trocam, entre sorrisos e abraços, as suas próprias  versões dos acontecimentos. Passaram-se 110 anos. Estamos no Museu Militar, em Lisboa.

REVELAÇÕES
Maria Manuela e Maria Júlia nasceram e cresceram em Portugal. Sempre souberam  da sua ascendência através das histórias que a mãe, Eugenia, lhes contava na infância, histórias essas marcadas pela imposição do silêncio. "Não deveríamos falar do assunto", conta Maria Júlia. Porquê? "Talvez por vergonha, não sabemos muito bem, a verdade é que desde pequenas a nossa mãe dizia que não devíamos falar do assunto." Talvez por isso, também, só muito recentemente tenha surgido algum  interesse pela figura do bisavô. Aconteceu por uma ironia do destino, no Verão de 2005. O filho de Maria Manuela estudava na base do Alfeite e o seu superior era o comandante Luís Sanches de Baêna. "Por um acaso, descobriram que estavam frente a frente como descendentes de dois grandes rivais: Gungunhana e Mouzinho de Albuquerque. "Depois disso surgiu o convite para participarmos nas comemorações dos 110 anos da batalha de Chaimite, no Museu Militar", explica Maria Júlia. E a pergunta impõe-se: Qual a sensação ao sentar ao lado do descendente do homem que capturou o vosso bisavô? Depois de alguns segundos,  a resposta surge acompanhada de uma lágrima. "Uma grande emoção. Ficámos sentadas à frente, no lugar dos generais, e não estávamos a contar com aquela honra. Foi uma mistura muito grande de sensações. Não há revolta, não há  ressentimentos, o que existe é uma grande curiosidade para nos conhecermos  melhor."

UMA IMPERATRIZ PARA MOÇAMBIQUE?
Maria Manuela e Maria Júlia terão sangue régio a correr-lhe nas veias. Maria  Manuela ainda conheceu a terra do seu bisavô, quando, entre 1972 e 1976, acompanhou o marido destacado em serviço para Moçambique. Os seus dois filhos nasceram em Nampula e "o amor por aquela terra era tão grande que se não fosse a independência teria ficado por lá", conforme nos confessa. Maria Júlia, pelo  contrário não conhece Moçambique. Mas recorda-se bem da cerimónia solene da trasladação dos restos mortais do seu bisavô, dos Açores para Maputo, em 1985.
"Nessa altura, ainda se pensou falar com as autoridades moçambicanas, para nos darmos a conhecer, mas acabámos por não fazer nada", conta. O silêncio  manteve-se. Algum tempo mais tarde, uma equipa de cientistas açorianos revelava que as ossadas enviadas para Moçambique não pertenciam a Gungunhana.
Mesmo assim, Maria Júlia não esquece a forma como o Governo moçambicano, após a independência, enalteceu a figura do bisavô, como símbolo da luta anti colonialista. Então e por que não solicitar o reconhecimento como uma das herdeiras do império vátua? "Não pensei nisso, mas de qualquer maneira gostava muito de poder ir até lá e conhecer aquela terra", desabafa Maria Júlia. Aqui fica o recado.
Entretanto, se as ossadas que foram trasladadas para Moçambique eram falsas... podemos concluir que os restos mortais do último grande imperador vátua  continuam a descansar nos Açores, em solo português!...

TROFÉU DE GUERRA
Apesar de apelar ao silêncio, Eugenia, neta de Gungunhana e  mãe de Maria Manuela e Maria Júlia deixou algumas histórias do  seu régio antepassado. "O que nos foi contado foi que de facto ele  foi maltratado à sua chegada a Portugal. Terá sido exposto numa  carruagem transformada em jaula, que percorreu algumas ruas da  Baixa de Lisboa, onde foi vaiado e humilhado", diz Maria Manuela.
Os relatos da época também confirmam esta versão. O vapor  "África", depois duma viagem de dois meses desde Lourenço  Marques, entra no Tejo em Março de 1896. A população lisboeta  enche as ruas para ver o "trofeu de guerra", a "fera cruel", como é chamado por alguns jornais da época. Com ele terão  desembarcado outros prisioneiros, entre os quais o filho Godide, o régulo Matibejana e sete mulheres que a imprensa descreve com "ar altivo, feições  finas e bonitas".
Depois do cortejo, seguem para o forte de Monsanto, onde ficam detidos durante três meses antes de serem desterrados para a ilha Terceira, nos Açores. As mulheres terão permanecido em Monsanto, depois enviadas para S. Tomé e Angola. Nos  Açores, Gungunhana viverá ainda dez anos, onde aprende a ler e a escrever, e é  baptizado com o nome de Reynaldo Frederico. Nos seus últimos anos de vida, tornase numa atracção turística, gozando duma liberdade limitada. O objectivo terá sido mostrar à Europa que o grande "Leão de Gaza" tinha sido dominado, estava circunscrito, sem ser maltratado. "Nos Açores, não há registo de que tenha sido maltratado", conta Maria Júlia. "Sabe-se que se passeava pela ilha Terceira. As potências estrangeiras não podiam dizer que estava a ser maltratado, mas ao mesmo tempo não podiam contar mais com este aliado para as suas campanhas em África", concluem as bisnetas do grande "Leão de Gaza". No dia 23 de Dezembro de 1906, Gungunhana, ou Reynaldo Frederico, falece no hospital militar de Angra do Heroísmo, vítima duma hemorragia cerebral.

Nenhum comentário: