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12 fevereiro 2013

PARA ACABAR DE VEZ COM A LUSOFONIA


PARA ACABAR DE VEZ COM A LUSOFONIA
A lusofonia é a última marca de um império que já não existe. E o último impedimento a um trabalho adulto sobre as múltiplas identidades dos países que falam português
Lusofonia é um conceito vago, demasiado vago - e uma versão kitsch de uma boa relação de Portugal com os países que foram colónias, que são ex-colónias. Alimentada pela esquerda mais retrógrada e pela direita mais nacionalista e nostálgica do império, a lusofonia tem uma história, balizada por alguns acontecimentos.
Num primeiro momento, surge a ilusão de unir o Atlântico ao Índico, Angola a Moçambique, através de um projecto político que reforçava a necessidade de encontrar recursos económicos extraordinários no momento em que começavam a sentir-se no país os efeitos da revolução industrial. (Note-se que hoje é novamente com este argumento, agora usando a terminologia do investimento empresarial e da cooperação económica, que se evoca a lusofonia.) O projecto foi apresentado no Congresso de Berlim (1884-85) e fundamentava-se no direito de ocupação daqueles territórios, direito esse que na verdade era falso - à época, nenhuma potência colonial ocupava mais do que franjas do território africano. Este projecto, designado como Mapa Cor-de-Rosa, foi inteiramente rejeitado pelos países que traçaram as fronteiras africanas, nomeadamente pela Inglaterra (que impôs o Ultimato de 1890).
Num segundo momento, dá-se a apropriação salazarista da tese do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), tese essa que está presente na defesa política e diplomática do colonialismo, em particular entre 1933 e 1961: “A primeira data corresponde ao ano da publicação deCasa-grande & Senzala, obra em que são lançados os fundamentos da doutrina luso-tropicalista; a última, ao ano da publicação de O Luso e o Trópico, livro em que a doutrina surge em “estado acabado”” (O modo português de estar no mundo, Cláudia Castelo). O luso-tropicalismo, que se configurou como a essência da identidade dos portugueses, passou a ter como objectivo criar as bases de um império mítico construído sobre os afectos e o multi-racialismo (no qual o autor nunca vira sinais de tensão). Sem bases históricas, baseando a sua teoria na origem, também ela “mestiça”, do português face à influência de judeus e árabes, na sua capacidade de adaptação aos trópicos e no seu humanismo cristão, Gilberto Freyre, sociólogo com prestígio internacional, deu à sua tese uma cientificidade que assegurou a política do Estado (a partir da segunda metade dos anos 50) e produziu, no campo cultural, um conjunto vastíssimo de miríades que acabaram por estruturar o campo das mentalidades.
Depois do 25 de Abril, muito do trauma e do luto pela perda das últimas colónias foi feito através de uma relativização da violência dos portugueses sobre os africanos - a guerra colonial portuguesa teria sido mais branda do que as de outros países colonizadores. Como se os massacres das tropas portuguesas em Wiriyamu e Mihinjo não fossem a expressão da barbárie… Impôs-se aquilo que seria uma cultura comum, cuja matriz era a portuguesa - e para a qual a confusão entre língua e cultura era oportuna e baseada na relativização das dores.
Perdido o que restava do império, a crise da identidade nacional não foi superada por um trabalho de revisão das narrativas identitárias nem por um trabalho colectivo sobre as memórias na educação, na política, nas actividades culturais e artísticas. Demorou mais de 20 anos a aparecer uma literatura; algumas, muito poucas, artes performativas abeiraram-se do problema, e só a geração de cineastas que começou a filmar na década de 90 se confrontou com as narrativas míticas e com o presente das ex-colónias. “As contas a ajustar com as imagens que a nossa aventura colonizadora suscitou na consciência nacional são largas e de trama complexa demais. A urgência política só na aparência suprimiu uma questão que também na aparência o país parece não se ter posto. Mas ele existe. Querendo-o ou não, somos agora outros, embora como é natural continuemos não só a pensar-nos como os mesmos, mas até a fabricar novos mitos para assegurar uma identidade que, se persiste, mudou de forma, estrutura e consistência” (Eduardo Lourenço).
Porém, a lusofonia, no logro de ser uma pátria de uma língua comum, uma forma torpe de neo-colonialismo, é também a prova da incapacidade de construção de um país pós-colonial que não consegue olhar as suas ex-colónias numa relação de confronto de interesses e de respeito pelas identidades que cada um desses países pretende construir. Com tudo isto há, por parte da esquerda conservadora, uma pretensa relação, baseada nos afectos e nos negócios; e, na direita, uma relação que se baseia na nostalgia, nos negócios e na defesa do uso da língua conforme à sua matriz lusitana.
Ora, para que esta pretensão neo-colonial exista, a RTP África, a RTP Internacional - e, de uma forma mais naïf, o JL- são os instrumentos adequados. Já o Acordo Ortográfico, por sua vez, é, sobretudo pela forma como foi feito, uma tentativa de resistir ao estilhaço da lusofonia. No entanto, também não saem bem aqueles que acusam o referido Acordo de cedência da língua a outros países - como se ela fosse uma propriedade dos portugueses. E não deixa de ser paradoxal que um Governo que tanto exige da lusofonia, como se ela fosse o campo ideal de negócios - e como se alguma vez o capital tivesse um país -, tenha feito desaparecer a cultura da missão do Instituto Camões na última Lei orgânica - e não tenha, neste momento, nenhum conselheiro cultural em nenhum dos países africanos de língua oficial portuguesa.
Colonizar ou neo-colonizar e civilizar sempre estiveram juntos; por isso é recorrente encontrar, sob a forma de cooperação, a imposição de um assistencialismo em língua portuguesa que civilize sem “lhes” perguntar (a eles) - como reclama Appadurai - o que querem (o que quer o outro) e como querem (como quer esse outro) a cooperação.
Neste processo de reconstrução de identidades, o Brasil há muito começou com a investigação e a construção de narrativas das suas memórias - pese embora o trabalho sobre o passado índio ser muito menos relevante do que o africano -, e até se conseguiu construir como um país de glamour e terra de oportunidades, mito que o liberta definitivamente de Portugal e o transforma numa pátria de oportunidades míticas tanto para os europeus como para os chineses, para os antilhenses ou para os africanos. A responsabilidade desta construção mítica e aparentemente glamorosa não é, naturalmente, dos historiadores nem dos estudioso da cultura.Mais: em África, muitos africanos começaram também os seus trabalhos de reconstrução da identidade - de si mesmos enquanto sujeitos históricos e num dado contexto, e dos seus países. Disso são prova os trabalhos dos angolanos Victor Barros e António Tomás, dos moçambicanos Mia Couto e Eliso Macamo e, em Portugal, os pertinentes estudos de Joaquim Valentim, Cláudia Castelo, ou o trabalho da revista/sítio webBuala, entre outros. De facto, “se a lusofonia se mantém como um princípio organizador das representações sociais dos portugueses, não há concordância entre os portugueses e africanos a esse respeito: os portugueses valorizam-na, os africanos rejeitam-na. Dito de outro modo, a este nível, a valorização da lusofonia não encontra correspondência da parte dos africanos que são, em boa medida, interlocutores por excelência dessa lusofonia. Mais ainda, os africanos não só manifestam uma posição contrária à dos portugueses em relação à lusofonia, como a importância que atribuem à sua identidade étnico-nacional se encontra associada negativamente à valorização da dimensão lusófona nas representações das semelhanças dos portugueses com outros povos”. (Joaquim Valentim, Identidade e Lusofonia nas Representações Sociais de Portugueses e de Africanos).
É compreensível. E se é possível criar uma comunidade de países que têm como língua oficial o português, com todas as suas variantes, e cujo uso pelas populações pode ir dos 100% (em Portugal) aos 4% (em Timor) ou aos 40% (em Moçambique), não é possível entender uma pátria lusófona comum a países com outras diversidades linguísticas, economias tão diferentes, regimes políticos distinto e, em particular, histórias singulares.
Uma das maiores violências criadas pelo luso-tropicalismo não foi querer impor ao Brasil uma essência de ser luso. Foi, embora admitindo para o Brasil a herança índia e para Portugal a herança árabe, excluir das ex-colónias africanas a sua história pré-colonial. Ora, a expressão mais perversa da lusofonia é a amnésia sobre o passado pré-colonial dos países africanos ou de Timor e, de algum modo, a repetição dessa expressão do colonialismo que foi “a descoberta” destes povos - que só passaram a ter história no momento em que os “descobridores” os encontraram. A lusofonia é, pois, a última marca de um império que já não existe. É também um impedimento a um trabalho adulto sobre as múltiplas identidades de quem vive em Portugal.
Para lá dos seus contornos coloniais, a lusofonia tem o efeito de uma epistemologia negativa: impede que se entenda que a razão da criação de comunidades de países tem por base interesses políticos e económicos, bem como jogos de partilha territorial. É também assim com a francofonia, a Commonwealth, o G8 e o G20.
Foi por causa desta realpolitik que Lula da Silva, enquanto Presidente do Brasil, estabeleceu parcerias económicas Sul-Sul com a maioria dos países subsarianos. Para esta estratégia, a lusofonia pouco importou: o argumento cultural foi a africanidade comum (outro mito, naturalmente).
Quanto aos outros países cuja língua oficial é o português, não nos resta se não admitir que produzem as suas pesquisas e trabalhos sobre as suas identidades. Se a presença dos estudos portugueses e da literatura é quase residual nas universidades destes países, isso não ocorre por falta de lusofonia mas sim por haver um excesso dessa caricatura da produção cultural portuguesa exportada que tem o nome de “Cultura Lusófona”.
Os portugueses não têm nenhum atributo de excepcionalidade mítica. Não precisamos de uma diplomacia lusófona; do que precisamos é de uma diplomacia de direitos e de igualdades. Este é o momento de conhecer e dar visibilidade às produções culturais e artísticas, às literaturas e aos trabalhos científicos destes países por aquilo que valem, por serem incontornáveis no mundo global, por conterem, até, uma estranheza que é, porventura, consequência da morte dessa mesma lusofonia.

Artigo originalmente publicado no ipsílon, suplemento cultural do jornal  Público (18/1) por António Pinto Ribeiro

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Para acabar de vez com a lusofonia”?! Resposta a António Pinto Ribeiro

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Renato Epifânio - A 18 de Janeiro de 2013, publicou António Pinto Ribeiro (APR), no Suplemento “Ípsilon” (pp. 38-39) do Jornal “Público”, um texto intitulado “Para acabar de vez com a lusofonia”, que, alegadamente, tem sido “alimentada pela esquerda mais retrógrada e pela direita mais nacionalista e nostálgica do império”.
No seu manifesto anti-lusófono, APR consegue até a proeza de apresentar o Ultimato Inglês de 1890 com um acto anti-colonialista – quando se tratou, tão-só, da afirmação (vitoriosa) do colonialismo inglês sobre o colonialismo português –, isto para além de caricaturar o pensamento de Gilberto Freyre (que, alegadamente, “nunca vira sinais de tensão no multi-racialismo”) e de diabolizar a colonização portuguesa, como se a “expressão da barbárie” tivesse sido a sua única face.
Tudo isto para concluir que a lusofonia é um “logro”, uma “forma torpe de neo-colonialismo”, a “última marca de um império que já não existe”. Tal virulência “argumentativa” só se destina, porém, aos portugueses – já que, alegadamente, “os portugueses valorizam-na [a lusofonia], os africanos rejeitam-na”. Na sua virulência sectária, APR acaba pois por atirar sobre si próprio, renegando-se como português.
Para o evitar, ainda que correndo o risco das generalizações, bastaria salvaguardar que “em geral…”. O problema é que nem sequer isso é verdade. Conforme pode ser confirmado por pessoas que sabem do que falam quando falam de lusofonia (como, por exemplo, o Embaixador Lauro Moreira, que trabalhou longos anos na Missão Brasileira da CPLP: Comunidades dos Países de Língua Portuguesa), esta é cada vez mais valorizada – não só pelos portugueses, mas também pelos africanos dos países de língua oficial portuguesa, não esquecendo o Brasil e Timor-Leste.
Timor-Leste, de resto, é, provavelmente, o país que mais valoriza, para desgosto de APR, a lusofonia. Por razões óbvias: se Timor-Leste conseguiu resistir à ocupação indonésia, mantendo a sua autonomia cultural, e, depois, aceder à independência política, foi, em grande medida, por causa de tão maldita palavra: lusofonia. Não decerto por acaso, as autoridades timorenses fizeram questão de consagrar o português como língua oficial do país, e não o inglês, como pretenderam (e pretendem) a Austrália e outros países anglófonos. A razão é simples: Timor-Leste sabe bem que a lusofonia é a melhor garantia do seu futuro político.
Bastaria o exemplo timorense para afirmar a lusofonia como factor de libertação e não de opressão, como pretende APR. Mas vamos aos PALOPs: Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Se, como pretende APR, a língua portuguesa é a memória viva da “violência dos portugueses sobre os africanos”, por que estranha razão nenhum desses países renegou a língua portuguesa como língua oficial? – antes, pelo contrário, tudo têm feito para sedimentar a língua portuguesa em cada um desses países. Será porque continuam a ser “colonialistas”?? Ou serão apenas mosoquistas??? Decerto, não é porque valorizem a lusofonia – já que, não o esquecemos, por uma qualquer “excepcionalidade mítica” que nos transcende, “os africanos rejeitam a lusofonia”.
E passemos ao Brasil – segundo APR, “Lula da Silva, enquanto Presidente do Brasil, estabeleceu parcerias económicas Sul-Sul com a maioria dos países subsarianos. Para esta estratégia, a lusofonia pouco importou”. Para azar de APR, não há muito tempo, o Embaixador brasileiro Jerónimo Moscardo, na insuspeita Fundação Mário Soares, esclareceu precisamente que assim não é, na sua conferência “Agostinho da Silva e a política externa independente do Brasil”. De resto, como APR sabe ou, pelo menos, deveria saber (mas, estranhamente, não refere), Agostinho da Silva foi, em Portugal e no Brasil, onde foi assessor do Presidente Jânio Quadros, o grande prefigurador de uma comunidade de língua portuguesa[1].
Temos plena consciência que há muita gente que, no que concerne à lusofonia, apenas valoriza a dimensão económica. Mas isso, por si só, não desqualifica a lusofonia – também, entre nós, houve muita gente a valorizar a Europa por causa dos famosos “fundos”. Pertinente referência, esta – tanto mais porque APR, falando do “estilhaço da lusofonia”, não fala uma única vez da Europa, do Euro ou da União Europeia. Compreende-se bem porquê tão gritante omissão: é precisamente face ao estilhaço (este sim, real) da União Europeia que cada vez mais portugueses compreendem que foi um colossal erro estratégico termos, durante décadas, desprezado os laços com os restantes povos lusófonos. Isso fragilizou, em muito, a nossa posição no plano global e na própria União Europeia – onde estamos, cada vez mais, numa posição subalterna.
Face ao estilhaço (este sim, igualmente real) da globalização, o que acontecerá naturalmente, por mais que isso desgoste os arautos do pós-modernismo, é que os países se religarão com base naquilo que de historicamente há de mais sólido: as afinidades linguístico-culturais. Nessa medida, também para Portugal a lusofonia é a mais sólida garantia do seu futuro: cultural, económico e político. Não perceber isto é não perceber nada. A lusofonia não é pois uma excrescência do passado mais o fundamento maior do nosso futuro. Um fundamento firme: sem escamotear a violência da colonização portuguesa – não há colonizações não violentas –, a verdade, que pode ser confirmada todos os dias, é que a relação que existe entre o povo português e os outros povos lusófonos não é equiparável a relação que há entre outros povos ex-colonizadores e ex-colonizados. Não perceber isto é não perceber nada. Mesmo nada.
De uma forma paternalista (para não dizer neo-colonialista), APR pretende aconselhar os outros povos lusófonos a renegarem a lusofonia, como se eles não pudessem escolher qual o melhor caminho para o seu próprio futuro – como até APR já percebeu, a lusofonia é, cada vez mais, essa escolha. Daí, de resto, o tom virulento do artigo – se a lusofonia fosse algo assim tão estilhaçado… Apenas num ponto damos razão a APR: “os portugueses não têm nenhum atributo de excepcionalidade mítica”. Ou seja, o nosso futuro enquanto país não está garantido. Mas isso, precisamente, só reforça a importância desse caminho que se cumprirá pela simples mas suficiente razão de que interessa a todos. Como aconteceu no caso timorense. Como, apesar de tudo, acontece com a Guiné-Bissau – se esta tem futuro, é porque há uma Comunidade Lusófona que está disposta a fazer algo (ainda que, até ao momento, não o suficiente). Como acontece também, enfim, com Portugal – no beco sem saída da troika, a Lusofonia é, cada vez mais, a nosso único caminho de futuro. Pena que APR não o perceba.
Renato Epifânio é presidente do MIL – Movimento Internacional Lusófono.

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