Dispensa-se dizer que é um astro
absoluto no firmamento do futebol, conhecido em todo o mundo. Foi a estrela
mais brilhante do Mundial de 1966, o primeiro a ser transmitido em directo pela
televisão, e o mundo inteiro pude ver, em branco e preto, as suas acrobacias.
Eusébio, “o artilheiro africano de Portugal que conseguiu atravessar por nove
vezes essas impenetráveis muralhas nas retaguardas rivais”, ganhando o primeiro
lugar na classificação dos goleadores.
Costuma-se dizer que foi com Pelé e
com Eusébio, chamado “a resposta europeia ao Pelé” apesar de ser apenas de dois
anos mais novo, que o futebol mudou a cor da pele, numa curiosa sintonia com as
vitórias que nos anos 60 os portugueses conseguiam graças aos futebolistas
negros e mulatos moçambicanos com as vitórias que obtêm os futebolistas negros
e mulatos brasileiros.
Muito antes de George Weah, Didier
Drogba, Michael Essien ou Samuel Eto’o, havia o nome de Eusébio da Silva
Ferreira que, mesmo jogando toda a sua carreira profissional em Portugal, no
Benfica, de 1961 até 1975, Moçambique e África podem orgulhar-se de terem como
símbolo do futebol mundial de uma inteira época. Sempre disse que a sua foi a
melhor geração de sempre. “Era só coração e é por isso que havia assim tantos
jogadores bons. Portugal, Inglaterra, Brasil, Argentina: muitos. Por isso eu
fico feliz com aquilo que tive, de ter sido um grande jogador. Fico feliz de
ter sido parte de uma época.”
A história de Eusébio é
paradigmática e pode ser interpretada como um “furto” ao futebol africano ou
como o “reconhecimento” do valor dos futebolistas africanos na Europa e no
mundo. Qualquer seja a resposta, o dado mais relevante é que ele foi um
vencedor e os seus golos foram fundamentais para uma nova e positiva visão dos
futebolistas africanos. Claro que havia muita ambiguidade porque o futebol
estava perfeitamente inserido no sistema colonial, num período em que a luta
anticolonial atinge o seu ápice, como é recordado por Mauro Valeri, no livro La razza in campo: a FRELIMO,
a Frente de Libertação de Moçambique, é criada em 1962, dois meses antes da
final da Copa dos Campeões, por Eduardo Mondlane, que será assassinado em 1969
com uma carta-bomba.
Mia Couto descreve esta ambiguidade
emO dia em que fuzilaram o guarda-redes
da minha equipa. Nesse conto exemplar, no bar Viriato, algures em
Moçambique, um dia, um dos bonecos dos matraquilhos apareceu pintado de preto.
Os soldados portugueses desataram a rir e chamaram o boneco de Eusébio. De
repente, mais três bonecos ficaram pretos, então ficaram com os nomes de
Coluna, Vicente e Matateu. O dono do bar estava muito zangado, mas não estava à
espera daquilo que aconteceu logo a seguir. Os bonecos ficaram todos pretos.
Chegaram os soldados, mas já ninguém deles se ria. Estavam irritados. Até que
um deles, com a espuma de raiva na boca, sacou a pistola e disparou contra o
guarda-redes que ficou reduzido em estilhaços espalhados pelo bar.
Como todos os miúdos, Eusébio jogara
futebol nos descampados e com a bola de trapos, mostrando, desde logo, as suas
qualidades extraordinárias. Como todos os grandes, conta com muito orgulho as
suas origens, “já era um grande jogador, só não era profissional”. Eduardo
Galeano descreve com esta imagem a infância do futebolista moçambicano: “Filho
de mãe viúva, jogava futebol com os seus muitos irmãos nos areais dos
subúrbios, do amanhecer ao pôr-do-sol. Chegou aos campos de futebol a correr
como só corre alguém que foge da polícia ou da miséria que lhe morde os
calcanhares. E dessa forma, disparado em ziguezague, foi campeão da Europa aos
vinte anos. Então chamaram-lhe a Pantera”.
O primeiro clube do Eusébio foi “Os
Brasileiros”, na Mafalala, o bairro onde vivia. Os seus ídolos eram Garrincha,
Didi, Pelé. “Nasceu destinado a engraxar sapatos, vender amendoim ou roubar os
incautos. Em criança, chamavam-lhe Ninguém”, escreveu Eduardo Galeano no
belíssimo retrato que publicou no livro Futebol: sol e sombra. “Foi africano de Moçambique o
melhor jogador de toda a história de Portugal. Eusébio: pernas altas, braços
caídos, olhar triste.”
Aquelas pernas altas que lhe davam
uma velocidade estonteante chamaram à atenção os olheiros do Benfica de Lisboa
que o recrutaram imediatamente para jogar em Portugal, enquanto jogava pelo
Sporting de Lourenço Marques.
Na verdade, Eusébio queria jogar no
Desportivo, porque o ídolo dele, em Moçambique, era Mário Coluna. Mas quando se
apresentou para o teste com a equipa, foi mandado embora porque não tinha o
equipamento para treinar. Ofendido, foi directamente para o Sporting que o
aceitou imediatamente.
A sua carreira internacional está
marcada pelo Sport Lisboa e Benfica. Existem diversas histórias à volta da ida
de Eusébio para o Benfica. A mãe, Elisa Anissabeni, está presente em todas. A
primeira história conta que, no começo de 1961, chegou a Lourenço Marques a
equipa brasileira do São Paulo, treinada por Josi Bauer. Tendo o Sporting de
Lourenço Marques ganho o último campeonato, organizou uma partida com a equipa
brasileira. Eusébio marcou dois golos e jogou uma belíssima partida. Josi Bauer
queria mesmo que ele ficasse na sua equipa, mas não conseguiu chegar a um
acordo económico. Falou dele aos dirigentes do Benfica que “namoraram” a mãe de
Eusébio e conseguiram o campeão. A outra versão da história reza que Bauer
teria falado com Bela Guttman, o então treinador do Benfica, num barbeiro em
Lisboa e esse apanhou logo a seguir o avião para ver com os seus olhos o
fenómeno, em Lourenço Marques. Existe ainda uma versão que fala de um italiano,
Ugo Amoretti, treinador da selecção dos Naturais de Moçambique, não se sabe
como. Foi para Itália de férias com o objectivo de encontrar um clube que
contratasse o jovem Eusébio. Quando regressou para fechar o negócio, o jogador
já tinha sido recrutado pelo Benfica, com a bênção da mãe.
Eusébio costuma dizer que os
dirigentes do Benfica foram muito atenciosos com a família. “Foram falar com a
minha mãe e o meu irmão, e ofereceram 1.000 euros por três épocas. O meu irmão
pediu o dobro e eles pagaram. Eles assinaram o contrato com minha mãe e
deram-lhe o dinheiro. Ela depositou-o no banco em Moçambique com a cláusula que
se o filho não se tornasse um campeão de futebol, devolveria o dinheiro!”
Na Europa encontraria outros
moçambicanos, Matateu, Vicente, Hilário, Mário Coluna, que chegara ao Benfica
em 1954. O salário de Eusébio era duas vezes mais alto que o salário mais bem
pago até então a um futebolista africano... Pois ele era a Pérola Negra. Ele
era o Rei! Mas naquela época, os contratos não eram milionários como hoje. Por
isso, Eusébio fica feliz quando vê os jogadores actuais assinarem contratos
muito chorudos. “Fomos nós que ajudamos a que isso se tornasse possível!”, diz
Eusébio que se tornou uma estátua viva. Ele foi o único futebolista que teve
direito a uma estátua, no estádio onde se fez campeão profissional, ainda em
vida.
No auge da sua carreira foram muitos
os clubes europeus que o queriam. O Inter e a Juventus, na Itália, o Real
Madrid, na Espanha, entre outros. Em 1964, aquando do convite da Juventus, o
presidente do conselho dos ministros de Portugal, António Salazar, decretou
Eusébio como instituição nacional, mandou-o para a tropa e apenas teve
autorização para sair de Portugal para compromissos de futebol.
Foram vinte anos de carreira numa
época em que o jogo era muito duro. Quase brutal. E não havia as atenções para
a preparação física como há hoje. O joelho direito de Eusébio é o testemunho
disso. Foi operado seis vezes no mesmo sítio. Ele bem queria jogar até aos 50
anos como Sir Stanley Matthews ou como Matateu, mas teve que parar aos 39.
Depois de ter sido premiado com duas Botas de Ouro e com sete Bolas de Prata. E
ter-se tornado uma lenda do futebol mundial.
PAOLA ROLLETTA
* Texto que
inclui no livro “Finta Finta” (Texto Editores, 2012), que reúne perfis de 31
futebolistas de Moçambique que fizeram sucesso no estrangeiro
Notícias, Quarta, 08 Janeiro 2014
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