Por
NUNO DOMINGOS
O discurso do Estado Novo sobre o
negro mudou nos anos 60 e Eusébio ajustava-se bem a esta imagem.
No Portugal dos anos 60, abundavam
as imagens de Eusébio da Silva Ferreira. Ele aí estava, espalhado por jornais e
revistas, mas também em programas e serviços noticiosos da Radiotelevisão
Portuguesa. Atleta do Benfica e da selecção nacional, sempre na sua função de
jogador de futebol, era aclamado pelo seu inegável talento. No Portugal
metropolitano de então, onde rareavam ainda os naturais de África, nunca um
negro merecera tanto destaque e fora objecto de tamanha glória. Uma
representação destas distinguia-se da imagem do africano, que proliferara na
cultura popular. Como demonstrou Isabel Castro Henriques (A Herança Africana
em Portugal, ed. CTT), o negro era quase sempre ridicularizado com evidente
crueldade, em livros, imagens, jornais, bandas desenhadas, campanhas
publicitárias e anedotas. A construção de um outro tipo de africano, fundada
numa distância que permitia as maiores efabulações, só tomou um sentido mais
concreto durante a guerra colonial, onde o africano era o inimigo, o
"turra".
Desde os seus primórdios, o
Estado Novo contribuíra decisivamente para a disseminação de um racismo
generalizado, garantindo-lhe até um carácter científico. Em exposições e
congressos, nos trabalhos de diversas ciências coloniais, e em muitas
publicações oficiais, expunha-se um outro africano culturalmente diferente, que
fazia parte integrante do império português, mas que era colocado à parte, como
se se tratasse de um todo racial e cultural discrepante. O império afirmara o
atraso civilizacional das populações africanas, legitimando assim uma conquista
colonial anunciada como uma missão de desenvolvimento destas regiões e dos seus
povos. Justificou-se, desta forma, que Portugal atribuísse uma cidadania
específica à maioria dos povos que governava, enquadrada pelo chamado sistema
de indigenato, que cessou em 1961, precisamente no ano em que Eusébio começou a
jogar no Benfica, depois de chegar a Portugal em Dezembro de 1960.
É evidente que as retóricas
integracionistas do Estado Novo na década de 60 obrigavam a outras
representações do africano, nomeadamente a de um sujeito colonial assimilado à
sociedade portuguesa. Eusébio ajustava-se bem a esta imagem. A sua
autobiografia, publicada em 1966 em Portugal e redigida por Fernando G. Garcia
a partir de um conjunto de entrevistas (traduzida em inglês no ano seguinte),
conta a história de um "bom rapaz", narrativa mestra e memória
oficial a partir daí repetida em jornais, biografias e bandas desenhadas.
A "verdadeira"
história de Eusébio apresenta um conjunto de etapas, do Bairro da Mafalala na
Lourenço Marques colonial, onde vivia com a mãe Elisa num contexto de pobreza
honrada, os jogos de bairro e a equipa dos "brasileiros", as idas à
escola, o deslumbramento com o centro da cidade colonial, que pouco conhecia, a
entrada no futebol local, a transferência atribulada para o Benfica e os
diversos passos da brilhante carreira profissional.
Nesta história, a lista
impressionante de feitos desportivos é intervalada pelo relato do casamento com
Flora e pela incorporação de Eusébio, em 1963, no Exército português,
profusamente fotografada e utilizada como propaganda. A incorporação militar, o
casamento e a vida familiar contribuíam para a construção quase perfeita da
biografia de um indivíduo assimilado, preocupado com o trabalho e com a família
e plenamente integrado no Portugal de Salazar, um jovem de origens
desfavorecidas que, apesar da sua notoriedade, continuava a perceber o seu
lugar social.
A apropriação oficial da
imagem de Eusébio não anulava os efeitos produzidos pelo facto de um negro se
ter tornado uma figura dominante da cultura popular portuguesa. Eusébio entrou,
tal como a fadista Amália, num universo de glorificação cultural até aí
constituído por indivíduos com origens e percursos muito distintos, consagrados
em actividades oficialmente legitimadas e de onde o futebol e o fado se
encontravam afastados.
Apesar do reconhecimento do
seu mérito, a apreciação entusiástica que mereceu não resultava de uma
inusitada consciência de igualdade racial, tão-pouco poderia servir de prova de
que a sociedade portuguesa estava preparada, devido a uma característica
cultural adquirida, a aceitar a diferença. A relevância de Eusébio dependia do
seu valor enquanto elemento de uma economia particular, no contexto de uma
troca muito específica, proporcionada pelo processo de profissionalização do
futebol. O jogador moçambicano oferecia quase todas as semanas capitais
preciosos à representação nacional mas sobretudo clubista, a uma específica
cidadania exercida diariamente por muitos indivíduos, quase todos homens,
durante incontáveis encontros, conversas e imensas retóricas, nos quais se
manifestava uma identificação, uma forma de apresentação na vida de todos os
dias. Os que no campo representavam com o seu génio desportivo esta pertença
(ser do Benfica, do Sporting, do Porto, ou da selecção) mereciam quase todas as
recompensas, independentemente da sua origem ou da cor da sua pele. O valor de
Eusébio nesta economia particular dependia da manutenção de um nível
performativo constante, de um ritmo laboral intenso, com consequências físicas
conhecidas, como asseveram as inúmeras cirurgias ao seu martirizado joelho.
As exibições no Mundial de
1966 ampliaram a reputação de Eusébio, oferecendo-lhe uma dimensão global. Este
enorme atleta, personagem principal de uma cultura de consumo em expansão que
gerava novas identificações, juntou-se à memória visual colectiva de uma
geração, ao lado de outros ícones da cultura popular dos anos 60. Em
Inglaterra, país que na altura já abdicara da grande parte das suas colónias,
governada em 1966 por um governo trabalhista, os negros eram uma enorme
raridade nos campeonatos desportivos e nenhum chegara à selecção nacional.
O efeito do poder mediático
de vedetas populares como Eusébio foi alvo de escrutínio, as suas posições
interpretadas, os resultados políticos dos seus actos avaliados. Se o Estado
Novo sempre desconfiara da espectacularização do desporto assente no movimento
associativo, veio depois a perceber que esta lhe podia ser útil. Para as oposições
ao regime, menos preocupadas em reconhecer o efeito propriamente político da
invulgar notoriedade social de um negro em Portugal, importava denunciar a
utilização de Eusébio na defesa da "situação", enquanto elemento da
narcotização do povo - ao lado do fado, do chamado nacional-cançonetismo e de
Fátima - e especificamente da propaganda imperial, fundada na mitologia do
pluri-racialismo, num período em que Portugal lutava pelos seus territórios
numa guerra travada em três frentes.
É interessante verificar que
nas últimas décadas Eusébio veio a tornar-se objecto de interesse para os
estudiosos do continente africano, entendido como um pioneiro do futebol em
África, um exemplo de talento extraordinário e, simultaneamente, ao lado de
outros grandes nomes negros da história do desporto internacional, nomeadamente
norte-americanos, desde Joe Louis a Jesse Owens, alguém que vingara num mundo
fortemente discriminatório. O desejo de alguns académicos e jornalistas
estrangeiros em encontrar no discurso de Eusébio posições emancipadoras e
politizadas esbarrou quase sempre em respostas evasivas e no habitual refúgio
no mundo do futebol. Na verdade, o universo que ele, desde pequeno nos espaços
livres da Mafalala, aprendera a dominar. Para aquele que foi considerado,
depois do Mundial de 1966, como "o melhor da Europa", e de quem se
falava estar a disputar com Pelé o título de "rei do futebol
mundial", África e a política africana estavam muito longe.
De regresso a África
O Estado Novo tratou de
voltar a lembrar que Eusébio era africano, parte de um Portugal enorme que se
prolongava para sul. Se é evidente que o impacto de Eusébio na sociedade
portuguesa não pode ser avaliado apenas à luz de uma história política, sendo
essencial investigar o efeito simbólico da notabilidade de um jogador negro, é
também certo que na década de 60 a sua glória serviu a defesa de uma
excepcionalidade colonial. Foi esta que serviu de justificação à soberania
sobre os territórios africanos e a sua história, contada e recontada até aos
nossos dias, contribuiu para lançar um manto sobre o passado, ajudando a
reproduzir mitos sobre a tolerância racial dos portugueses.
Um ano antes do Mundial de
1966, o embaixador português Franco Nogueira, numa conferência na embaixada
portuguesa em Londres (em Maio de 1965), falou sobre os princípios orientadores
da política portuguesa em África: "O nosso primeiro princípio orientador é
a igualdade racial - uma pequena noção que trouxemos para África há mais ou
menos 500 anos". Portugal orgulhava-se do seu império se constituir como
um "espaço multirracial", uma "democracia racial real" onde
todos "trabalham harmoniosamente para os mesmos fins".
Falso e mitificador, o olhar
de Franco Nogueira, ao incluir o império dentro da sociedade portuguesa,
acabava por realçar o facto de que o mundo governado pelos portugueses na
década de 60 era maioritariamente negro e africano, realidade por vezes
esquecida nas análises historiográficas sobre Portugal. E qual era o lugar que
a gestão colonial portuguesa atribuíra a esta grande maioria da população?
Segundo a história mediatizada da vida de Eusébio existia em Moçambique um
contexto de igualdade de oportunidades e uma ausência de preconceito racial,
bem ilustrados por um percurso de mobilidade social, desde o Bairro da Mafalala
até à metrópole e aos grandes estádios europeus.
Poderá um caso excepcional
ilustrar a excepcionalidade de um regime colonial? É que o lugar da população
africana, na grande sociedade portuguesa de 60, era bem diferente do
representado pelo caso de Eusébio. A sua integração estava longe de estabelecer
qualquer padrão que pudesse explicar os 500 anos de colonialismo de que falava
Franco Nogueira.
Mais fiável parecia ser a
história da cidade onde o jogador moçambicano cresceu. Desde a sua fase
moderna, iniciada no final do século XIX e projectada pela industrialização da
África do Sul, que Lourenço Marques se dividira entre um centro colono,
predominantemente branco, e um subúrbio precário, predominantemente negro. Pela
força, afastaram-se as populações locais para a periferia. Separada
fisicamente, a mão-de-obra africana que se acumulava nos subúrbios, essencial
para o funcionamento do sistema colonial, foi enquadrada por leis e normas.
Estas regulavam uma discriminação racial, a qual era evidente não apenas na
lógica do indigenato, mas que se traduzia no quotidiano, nos espaços públicos,
nas escolas, nos transportes e nos locais de trabalho, onde sofreram durante
muito tempo o flagelo do trabalho forçado. O historiador Valdemir Zamparoni
explicou bem este mesmo processo, na sua tese sobre a capital de Moçambique.
Já depois do fim do
indigenato persistia o que, num artigo publicado em 1963 no jornal A Tribuna, o arquitecto Pancho
Guedes chamava de "cinto do caniço" que separava o centro urbano da
"cidade dos pobres, dos serventes e dos criados", isto é a cidade dos
africanos. Lourenço Marques carecia então, segundo o arquitecto, de "uma
genuína integração social - ou serão os "pretos" só para estar nas
cozinhas e nas recepções?"
Os habitantes dos bairros
periféricos da cidade, onde nasceu Eusébio em 1942, trabalhavam nas indústrias
locais, nos portos e nos caminhos-de-ferro, nos serviços domésticos, em
actividades ditas informais, dependendo de pequenas lavras, ou faziam parte da
forte emigração para o país vizinho, controlada e taxada pelo estado colonial.
Esta estrutura laboral era fortemente racializada, pertencia a um sistema onde
a cor da pele mostrava os contornos da organização social. Na grande sociedade
portuguesa de 60, o lugar dessa maioria africana, mesmo depois do fim do
indigenato, continuava a revelar a herança de um colonialismo predador e
racista, não muito diferente dos outros colonialismos nos seus propósitos e
objectivos, nos meios e nas estratégias, e absolutamente nada excepcional.
Explicada pela conjugação
única entre a profissionalização do futebol e a procura de talentos, a força da
cultura popular mediática e um regime que necessitava de defender por todas as
formas o mito do pluri-racialismo lusófono, a carreira extraordinária de Eusébio
não belisca a imagem pérfida do sistema colonial português. Tão-pouco deve
servir de modelo para descrever, hoje, as relações raciais em Portugal.
Investigador do ICS-UL
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