Bem vindos,

Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

28 janeiro 2015

O CONTO NHINGUITIMO, DE LUÍS BERNARDO HONWANA, E OS EMBATES A PARTIR DA RELAÇÃO SUJEITO/OBJETO

LUÍS BERNARDO HOWANA’S SHORT STORY NHINGUITIMO AND THE CONFRONTATIONS REGARDING THE RELATION SUBJECT/OBJECT

Luiz Carlos de Oliveira (UNIOESTE)
Claudiana Soerensen (UNIOESTE)
RESUMO:
O presente trabalho aborda o conto moçambicano Nhinguitimo, de Luís Bernardo Honwana (1964). A partir da teoria pós-colonialista apresentada por Bonnici (2005), pretendemos evidenciar a relação sujeito/objecto presente em sociedades como a moçambicana, em que o sistema colonialista foi a marca principal, com todas as suas implicações. A análise do referido conto nos serve de fonte para a discussão proposta. O que se quer, com o estudo, é demonstrar como é explicitado e caracterizado, através da fala dos personagens, o discurso do colonizador e a resistência a esse discurso pelos colonizados. Parte-se da hipótese de que há, nas sociedades coloniais, uma relação sujeito/objecto na qual o colonizador se diz “sujeito” e trata o outro enquanto “objecto”. Palavras-chave: Literatura; Pós-Colonialismo; Sujeito/Objecto.
Palavras-chave: Literatura; Pós-Colonialismo; Sujeito/Objecto.

Aprofunde em:
http://revistaboitata.portaldepoeticasorais.com.br/site/arquivos/revistas/1/luiz%20e%20claudiana.pdf

12 novembro 2014


ANA MAFALDA LEITE**


RESUMO: O artigo caracteriza algumas das tendências da poesia moçambicana publicada no Século XXI e os tópicos desenvolvidos pelos poetas.
OS últimos dez anos surgiram vários livros de poemas de autores moçambicanos, que têm em comum uma aproximada data de nascimento: a década de setenta. Podemos designá-los como Pertencentes a uma Geração, que começa a publicar em revistas e jornais na década de noventa, mas cuja publicação em livro praticamente se inicia no século XXI, sendo que alguns deles não chegaram ainda a fazê-lo, porque as condições editoriais mudaram com a privatização do mercado do livro.
Neste mesmo período, a prática de recitais e de declamação de poemas reuniu e continua a reunir muitos jovens, que amam e escrevem poesia, mostrando o interesse por esta arte, performatizada e dramatizada ao vivo. Assim, a poesia continua muito viva em Moçambique, e alguns nomes se destacam, já com publicação em livro ou em vias de tal acontecer. Animadores culturais, debatendo o estado da literatura do país, movimentando-se entre o desejo do “novo” e a leitura da herança literária dos poetas das gerações anteriores, são seduzidos pela poesia do mundo, deslocando-se para outros lugares experimentais, como a música e as artes plásticas. A prática experimental é híbrida, expressando-se por vários tipos de dicção como, por exemplo, o exercício da poesia, da prosa poética, de uma escrita tipo diário, ou de contos e novelas, parecendo ser uma tónica na escrita dos jovens autores. A qualidade dos textos de Ruy Ligeiro, Domi Chirongo, Dinis Muhai, Jorge Matine, Sangare Okapi e Tânia Tomé, entre vários outros, mostra como o panorama poético do país está em processo de renovação e de mutação.
Há no enquadramento histórico da nação vários acontecimentos que transformam as escolhas temáticas e a enunciação dos autores do século XXI. Entre estas novas vozes e o percurso iniciado em Charrua (que os dois poetas agora “mais velhos”, Eduardo White e Armando Artur, despoletaram), continuado pelos poetas da geração de noventa de Xiphefo (como o caso de Guita Júnior e de Mohamed Kadir) e intermediado pela singular qualidade de escrita de um poeta como Nelson Saúte ou ainda pela publicação diversificada de Rogério Manjate e de Adelino Timóteo – verificamos nestas novas vozes surgidas uma postura de sujeitos em desajustamento entre a sua realidade, e a realidade exterior, como que à margem da sociedade, ou em processo de deslocamento.
São poetas que se enunciam socialmente “desenquadrados”, “excêntricos”, espectadores críticos dos poderes, da corrupção, das desigualdades sociais, do uso indevido das armas, das misérias e fragilidades do quotidiano.
O posicionamento deste novo sujeito poético, comum à maioria das vozes, é de distanciamento e de perplexidade perante a sua sociedade actual. O descentramento do sujeito poético toca o campo psicológico e o sentimental, e a desadequação é também ideológica, cultural e geográfica. Esse deslocamento é também de género, como no caso das novas dicções femininas, em que se revelam, de forma não convencional, a emoção e o desejo de uma mulher sujeito, enquanto diferença e conquista de um lugar individual-social.
A estrutura por vezes dramática de algumas das obras mostra um distanciamento crítico entre o sujeito enunciador, a incompatibilização entre o mundo e o poeta, que se desdobra em actor e espectador do dramático Theatrum mundi que o circunda, exercitando a poesia como uma forma temporal, que ganha estatuto de memória-consciência. Assim, a poesia é uma forma-abrigo, criada para compensar a desfasagem entre o eu e o mundo; a brecha criada entre ser e estar, entre o sujeito e a realidade social, permite ao poeta, homo faber, usar a palavra para criar um mundo alternativo, fazer-se matéria e cosmos verbal.
A desarticulação das utopias retoma em voz off um livro inaugural nesta perspectiva, As Falas do Escorpião de Eduardo White, e envereda por uma escrita organizada numa espécie de exterioridade observadora, narrativo-confessional, às vezes orquestrada pelos sons do “rap” e da poesia musical, em que a denúncia da violência, do mal-estar, é exemplar e fragmentariamente apresentada.
Estes modos enunciativos prendem-se, entre muitos outros factores, após o fim da guerra civil, com o desenvolvimento veloz que a sociedade moçambicana tomou, no advento de uma sociedade capitalizada, pelo desenvolvimento desigual, pela prevalência do surgimento de uma sociedade tecnológica voraz, pelo desenvolvimento de um mercado da cultura, com forte impacto também no campo editorial.
Escolho neste artigo os livros de três autores, apenas como uma forma de iniciar uma reflexão (que irá alongar-se em outro momento) contemplando poetas que perfazem um núcleo irradiador de procedimentos retóricos diversos e de novas propostas temático-formais.
A enunciação do sujeito feminino: escrita do sonho e do corpo na poesia de Sónia Sultuane
Tem a poesia esse dom de fingir todas as verdades, todas as emoções, de se querer do sonho a presença, a totalidade e perfeição. No primeiro livro de poemas de Sónia Sultuane, Sonhos, a poeta percorre o espaço que vai de si própria para uma outra em que se procura e desafia, “como queria ser a outra dos meus sonhos” (S, p.47), feminino sujeito que se quer intenso e pleno no seu sensitivo imaginário, por entre as pausas de um cadenciado ritmo de escrita.
“Menina ainda tornei-me mulher/enfrentei o mundo, e a mim mesma” (S, p.15): um percurso que reflecte os sentimentos e sensualmente os convoca em todas as suas contradições. Desejo, ausência, saudade, ilusão, sonho, distância, alegria, dor. Imaginando através das palavras, as formas que têm os sentimentos, de tanto os sentir. Imaginando o amor, vivendo-o nessas imagens que ele encontra nos muitos espelhos da alma: “Amar-te é algo sem dimensão ou justificação/ é viver sempre na imaginação/…/estar sempre a sonhar” (S, p.28).
No mundo amoroso imaginado pela escrita, a poeta tenta regressar à envolvência da infância e à candura excessiva de ser, “deixem-me no meu mundo doce e infantil, mas meu”(S, p.13), experimentando-se ludicamente, ao brincar com o seu pensamento da emoção, refazendo-o pela distância, inventando-o, sem mágoa, com a alquimia já criativa da palavra: “vou brincando com o meu pensamento,/tentando encontrar-me distante,/ mas presente,/ no que és presente, quando és ausente” (S, p.38).
Torna-se o amador na coisa amada à custa de tanto imaginar, e a beleza procurada está em si, nessa invenção sensorial, que se filtra e ilumina entre ser e escrever, revelando-se devagar. Procura dos versos que levam Sónia a querer achar em si outras imagens de ser, em que o desejo se imagina e fulgura, fonte misteriosa que desprende a emoção. Nesse “sonho desperto” (S, p.38) a vontade de volver a uma imagem múltipla, em que narcisicamente se reinventa, enquanto personagem, tal como ao amor e seus imaginados sentidos, se descobre a poeta em palavra, a desejar ser totalidade, plenitude, sonho desperto em poema: “como queria ser a outra dos meus sonhos, alegre, misteriosamente bela/ e que não vagueia lentamente e triste,/ mas que vive,/ a beleza que arde tão dentro, como queria ser a outra, a dos meus sonhos mais viva ternamente” (S, p.47).
Não é fácil escrever poemas sobre o amor quando esse mesmo tema percorre séculos de escrita na literatura. No entanto, encontramos nestes fragmentos confessionais/poemas, a singularidade narcísica da constituição do corpo, enquanto emoção, sua exposição e questionamento.
Na sua segunda colectânea de poemas, Imaginar o Poetizado, a autora assume quase uma reivindicação da forma de sentir e do ser amoroso, tornando a sua reflexão mais sensorial e menos reflexiva, ao escrever sobre o prazer, a força erótica e a assumpção de um erotismo social, secularmente negado à mulher. Nessa perspectiva, os poemas de Sónia Sultuane, além de muito femininos, são também insinuantemente inconformistas pela temática sensorial e seu desnudamento emocional. Como fragmentos confessionais amorosos, estes textos suspendem-se na intemporalidade – o amor está em todos os tempos e vive sempre no presente – em que a recordação é sempre um acto de presentificação dos sentidos, e a ausência dela, morte e deformação: “quando recorde só os teus olhos, não o teu olhar,/ a tua sombra, não o teu corpo,/ os teus beijos, não o teu gosto,/ os teus ecos, não as tuas palavras, quando todos os sentidos estiverem mortos” (IP, p. 31).
Obsessivamente, como que saboreando pedaços de “nogat”: “deixavas-me trincar o teu doce,/ e a cada mordidela,/sentia os teus lábios de mansinho,/ como podia esquecer-me desse sabor/ a torrado, de cor de canela,/ cor desses teus lábios adocicados,/ onde hoje trinco e mordo,/ à procura desse néctar,/com o mesmo gosto a “Nogat”(IP, p.13) – a poeta tenta descrever o sabor – sentir, feito corpo, na travessia entre o conhecido e o desconhecido, entre desejo, força, arrebatamento, e o medo, que se torna similarmente crescente, como a invasão de uma sombra, que a leva aos patamares da cegueira, zona de provável escuridão: “olho-me, sinto-me profundamente/ vontade, desejo,/ toco-me, entrego-me a mim…/entrego-me a esta escuridão/ mete medo…neste medo” (IP, p.59).
O corpo está cravado em cada um dos poemas, e de cada um deles se evola ou solta um aroma, uma forma de tacto, de paladar, de som, de concretas imagens. Os cinco sentidos são insuficientes para a captação integral do sentir amoroso, corporiamente inebriado. Feminina por excelência, esta forma de implicação da escrita, como corpo, erotiza a letra/som, que se inscreve entre pele e pena, e entre voz e verbo; há um arrebatamento e uma fisicidade da palavra que a torna concreta, sensível.
Palavra poética nascida dos sentidos, que renasce em amorosa vulnerabilidade, exibindo um corpo, que fala, diz, contradiz, vibra, linguagens não codificadas, na sua surpresa de acontecimento, de dádiva e de entrega. O amor que nos poemas de Sónia Sultuane se faz revelação não é apenas um amor da alma, mas do corpo, um verbo feito carne, encarnação. A alma que o sopra é apenas o início do rastilho que acende a explosão de todos os físicos sentidos: “A tua alma, a alma das almas,/ já a viste? Já com ela falaste? Já a sentiste?/ deixa-me rir”(IP, p.41).
O poema “Africana” amplifica o tema da identidade, uma vez que tende a territorializar o feminino. Além desta primeira identidade, e lembrando com alguma ironia o poema “Se me quiseres Conhecer”, de Noémia de Sousa; a poeta assume a sua africanidade: “dizes que me querias sentir africana/ dizes e pensas que não o sou,/ só porque não uso capulana,/ porque não falo changana,/ porque não uso missiri nem missangas,/ deixa-me rir…”. Quer este poema desenhar um percurso identitário de abertura às diferenças de género, de raça, de língua e de cultura, num continente e num país, que se caracteriza também pela coexistência harmónica de tal múltipla diversidade: “pelo sangue que me corre nas veias,/ negro, árabe, indiano,/essa mistura exótica, que me faz filha de um continente em tantos/ onde todos se misturam,/ e que me trazem esta profundidade,/ mais forte que a indumentária, ou a fala,/e sabes porquê?/ porque visto, falo, respiro, sinto e cheiro a África,/ afinal o que é que tu saberás? O que é que tu sabes?” (IP, p.15).
Interrogativa, reticente, dialogal, esta voz percorre os poemas como o sangue nas veias de um corpo amoroso, palavras que são o próprio sujeito em acto de constituição e de revelação: “As palavras que te dou/ são o que sou,/ são o que sinto,/ e como me sinto,/essas são as minhas palavras EU” (IP, p.29).
No Colo da Lua, terceiro livro de poemas de Sónia Sultuane, testemunha uma plenitude de alguns dos atalhos percorridos na actividade artística, simultaneamente espiritualizada por uma introspecção dos sentidos e dos sentimentos. Há nestes poemas a procura de harmonia de um corpo que quase voa, na sua aspiração ao sonho e à verdade, à pureza das sensações, à celebração do desejo. O poema que dá título ao livro, “No colo da Lua”, diz-nos da apetência amorosa, de expansão e abertura do sujeito ao mundo, ao universo inteiro, da vontade da poeta falar às estrelas, se aninhar no colo da lua, o mágico planeta da noite que a enfeitiça, e que transfigura o sonho em realidade:

“Quero olhar o céu/ e contemplar a sua sombra dançando/ na cadência do meu coração,/ mergulhar no seu infinito,/ no reflexo do azul esverdeado pro¬fundo,/sentir o cheiro do mundo percorrer-me as entranhas,/ falar às estrelas prateadas,/ sentar-me no colo da lua amando a imensidão do universo,/ sa¬boreando cachos de uvas pretas adocicadas,/ para poder entregar-me a todos os sabores exóticos,/cantando e suspirando pela vida” (CL, p.11).
A experiência sensorial torna-se quase um acto de levitação graciosa em torno das coisas, corpo alado, cujas asas ou pétalas acariciam o que tocam, e no que é tocado se sentem acariciadas. O corpo vive dessa dualidade de ser por um lado, quase imaterial, é dança, música, sopro, flor, pétala, esvoaçante, como se pode ler em vários poemas, como por exemplo, “Noiva”: “����Danço nas sombras do luar prateado,/ visto-me de sari vermelho bordado com missangas douradas/trazidas de Bombaim/nas árvores imaginárias de vida/ penduro os meus cabelos que esvoaçam na brisa/ trançados com folha de laranjeira e jasmim (...)”(CL, p.12).
O movimento aéreo de leveza retoma Sonhos, o primeiro livro, e leiam-se os poemas “Se Soubesse Voar”, “Gaivota” ou “Liberdade”, como experiências desta volição volátil, que se combina com outro elemento, o aquático, ritualizado em purificação e embelezamento, como se expressa em “Pétalas”: “Banhei o meu corpo com pétalas de rosas vermelhas,/ o cheiro exótico do deserto e o óleo da sedução,/entrei na tenda do desejo/ cheirando a rosas e a incenso da imaginação,/entreguei-me, no meu leito coberta de sedas,/ tão leves como a ilusão (…)” (CL, p.37). Repare-se como os diferentes sentimentos, sejam de desejo, separação ou tristeza, ilusão ou encantamento, são ductilizados e irmanados em subtil e cuidadosa evocação, com imagens harmónicas e sensualizadas.
Associados na descrição, são referidos vários elementos delicados do oriente, que percorrem os poemas de Sónia Sultuane, como os tecidos, os ornamentos, as essências e perfumes, as evocações florais: “No lago das orquídeas deitadas/ banhei-me à conversa com as flores de lótus/ baixinho, diziam-me que os cisnes/dormiam embalados com a música das folhas/ trazidas pela corrente do sul,/ pediram-me que me banhasse tranquila/ pois a brisa do sol,/ embebedava-as com o meu perfume/a noz-moscada e flor-de-lis/ pediram que entrelaçasse-me as águas cristalinas/para que o meu cheiro não assustasse/nas margens do lago as borboletas que nasciam” (CL, p.9).
Ao mesmo tempo, o corpo, entrançado na sua matéria, comunga da sucumlência dos frutos e do inebriamento olfactivo dos odores de diversos aromas. Em apetecidos poemas como “Essa Boca Linda”, “Noites de Prazer” ou “Manjares Exóticos”, se expressa a frutificação do desejo, lembrando o par inicial que, no paraíso, provou o fruto proibido e experimentou a tentação do amor: “Saboreias no meu corpo o gosto do amor,/ nos meus mamilos dou-te o gosto do morango carnudo,/no meu ventre o gosto de abacaxi (…)”(CL, p.5).
Há uma celebração assumida do prazer e do desejo físico, da comunhão dos corpos, que a escrita feminina de Sónia Sultuane assume, voluptuosamente. Inebriado, em “Noites de Prazer”, o sujeito poético confessional, escreve que não se arrepende de ter transformado um sentimento como o amor na grandeza do seu ser: “não me arrependo (....) De não ter seguido e queimado as etapas da vida,/mas de ter vivido a vida conforme as etapas/ e o fogo do meu coração, (...). De não ter sucumbindo à vontade carnal,/mas ter amado com a alquimia dos sentidos,/ de não ter deixado o meu coração/ser uma armadilha,/mas ser a presa dos meus sentimentos (...)”(CL, p.4).
Mas, envolvidos nesta linguagem de tules e sedas esvoaçantes, outros temas perpassam na poesia de Sónia Sultuane: a maternidade, a infância, a igualdade das mulheres, a espiritualidade. Temas ritmados ao som de pautas de música, da valsa ao jazz, com os movimentos sentimentalmente sofisticados do tango: “danço o tango dos sentimentos”, diz-nos a poeta; ou em combinatória irisada de escritas, como num lento jogo de sombras enluarado, regista-se ainda uma sonâmbula evocação de quem nasceu poeta, e se embriaga de poesia e de “poetas invisíveis e imaginários” (CL, p.2).
“Essa Boca linda, suculenta e carnuda, “esse manjar de néctares” vem en¬riquecer, pela enunciação de Sónia Sultuane, a poesia moçambicana de uma emoção de sincero fingimento e de voluptosa feminilidade.
Ser de escrita, deambulação e música na poesia de Chagas Levene
Tatuagens de Estrelas, de Chagas Levene, é um livro em que o sujeito deam¬bula observando paisagens interiores e exteriores, reflectindo, perplexo, pelo estado das coisas na sua terra: fome, desemprego, prostituição, corrupção, violência, droga.
Mas a dicção do sujeito é calma, fragmentário o comentário, por vezes quase como que uma anotação de diário. O curioso título “Nos bolsos levo só poemas”, além da sua carga metapoética, poema por dinheiro, poesia por bens materiais, a indicação do hábito da anotação breve e importante, que o bolso guarda.
Entre o som das teclas da escrita e dos tiros a homologia torna-se abrupta e trágica: “Neste mundo em que as metralhadoras/ batem mais rápido seus textos/ do que uma máquina de escrever/ nos bolsos levo só poemas/ para reacender as estrelas de madrugada” (TE, p.10). Outros poemas como “Bum Bum Bum cada mina mata um/ Lá na terra da mamã tem um campo com minas/ quem pisou morreuuuu (…) (TE, p.66), ou “Ra Tá Tá AKM mata Pá”, introduzem-nos num universo, em que a violência das armas e da morte é absurdamente normalizada no quotidiano, como um jogo infantil, ou ao ritmo da canção. “Querem que eu dance a canção martelada de uma arma?/ querem que eu troque a discoteca por um gatilho?//Os pássaros voam festejam a vida/ na outra esquina está uma arma a gritar// Hoje não ficarei na cidade/ vou correr pelos campos/ para soltar pássaros engaiolados” (TE, p.74).
A violência deste “locus horrendus” é assim tentadamente substituída pela procura de um “locus amoenus”, no campo, nos jardins, junto aos rios, onde o sujeito se desencanta na procura do amor. Confessionalmente reflecte sobre ele em “O Amor é um Rio”, “A ver as Nuvens”, “Canção de Embalar na Estação Seca”, “A Lua a servir-me de Travesseiro”, “Beijos teus só os tive imaginados”, “Tatuar teu corpo de estrelas”, entre vários outros, num misto de ironia e desentendimento, recorrendo a uma escrita entrecortada de uma intelectualizada emoção, quase à maneira melancólica e desprendida de Ricardo Reis. “É preciso amar nem que não haja estrelas// Vamos entrelaçar nossas mãos/correr até ao ancoradouro do rio/ lá as árvores são grandes/ belas para nos fazerem sombra/ vamos lá sentar-nos para ver os barcos/a rasgarem o rio mais que incêndio em capim seco// Teu sorriso ampara como muralha a uma cidade// Nossas mãos uma na outra abrem-me o mundo (…) chovem estrelas dos teus olhos/ cubro-me com esse manto/ e de noite deito-me com a lua/ a servir-me de travesseiro” (TE, p.20).
Ao mesmo tempo há na emoção de Levene uma pureza, quase inocente e credível, na beleza do sonho, que as imagens das estrelas convocam, entremeadamente, em muitos poemas. As estrelas povoam a poesia do autor, enquanto brilho redentor, e quase impossível, da noite estrelada em brilho enlouquecido da tela de Van Gogh, que serve de capa ao livro. Perguntamo-nos, é necessário o brilho na madrugada, porque ela escureceu?
O poeta olha o mundo como no poema “Passarela”, observando: “quando a lua minguada se excita cinzenta/ vem uma rameira criança arranca um cravo/ coloca por baixo do seu grande decote em u/ nisso a lua ilumina-a mostrando seus lábios…” (TE, p.12). Muitos textos evocam o tema da prostituição, relembrando a poesia de Craveirinha, como por exemplo em “Vários Braços tem o Poema”: “Veste-te como puderes Zézinha/ retoca-te antes maquilha-te a rua quer-te invulgar/ desculpa os versos do tempo que se foram (…) teu corpo despido/ um poema antigo (…) (TE, p.27). Congeminando preferir “ser poema a poeta”, a “querer viver com palavras”; diz-nos: “Meu Deus o que é a poesia?// Sinto-me deprimido e com a gaveta a abarrotar de papéis/ tenho uma alma de papel e tinta vinda dos livros que li/ dos livros também tenho a forma do meu corpo/ uma forma de papel” ( TE, p.14).
Pessoano, impessoal, máscara e idealização de ser, o poeta, que usou a heteronímia, em publicações anteriores em revistas, é um ser de escrita por excelência. A singularíssima enunciação de Chagas Levene retoma também um intertexto, que oscila entre os ritmos populares urbanos e musicais de Gabriel o Pensador, por exemplo, o hip hop, sungura, e a incorporação da herança literária de Fernando Pessoa, Armando Artur, Eduardo White.
O poema de abertura “Mtsitso” incorpora formal e tematicamente o poema “Quero ser tambor” e “Karingana wa Karingana” de José Craveirinha e introduz um subliminar intertexto craveirínhico, que perpassa, como linha condutora, por muitos dos seus poemas deste primeiro e também do segundo livro: “Mãe/ esta noite está a erguer-se com estrelas/ muito mais do que aquelas das estórias/ à volta da fogueira// São mais que cem/ são mais que mil/ são incontáveis/ são infindáveis// Mãe/ eu quero uma mbila de papelão/ se não puder ter uma verdadeira/ para tocá-la/ e subir através dos seus sons/ até às estrelas” (TE,p.9).
Em Porto de Luzes, a segunda colectânea do autor, os brilhos entrelaçam-se, num jogo pictural e imagético, com a água, provocando tensão e também harmonia. A escrita é uma “Dança num deserto”, entre viagem, voo e luz, navio, estrela e infinitude, sabendo o poeta que a liberdade se conjuga dramaticamente: “Uma vida trágica/ mas cheia de magia e borboletas”.
Chagas Levene, por entre uma dicção confessional e perplexa, revela a consciência da herança literária recebida, em fogo de escrita – a recepção do facho a que Noémia de Sousa aludia no seu poema sobre Rui de Noronha – agora, na sua poesia ancorada, porto de luzes, que teima em fazer luz escrever, embora com desencanto, essa voz colectiva, nacional, de esperança. Os sentidos do livro retomam alguma utopia ascensional, com metáforas delicadas como nuvens, estrelas, papagaios de papel. A borboleta hieroglífica, em seus trajectos, uma mensagem histórica e literária, a perdida “morada azul das canções”: “Sou tudo o que antes de mim outros foram/ por isso dei-te as borboletas roubadas de colecções raras/ para que compreendas a dor de um ser que já não voa// Antes de mim outros transformaram o silêncio em palavras/e deram-me a morada azul das canções”.
A escrita do poeta torna-se assim, além de lugar de memória e de interrogação, de desejo e de sonho, espaço de reencontro do sujeito com a sua arte poética, espécie de “Pirotecnia”, em que a estrela reverbera, tatuada em papel, e em que a representação do fogo herdado, refeito em escrita, teima oximoricamente em animar o cosmos da subjectividade do sujeito: “A minha tristeza é a felicidade/ com que construo a pirotecnia dos meus poemas”.
A poesia será para Levene uma forma-abrigo – porto de luzes – criada para compensar a desadequação entre o ser e o mundo: “Em meus bolsos existem castelos escandalosos de estrelas!/ Meus olhos há muito que ardem em pântanos,/ como as estrelas em meus poemas./ Agora eu brilho brilho brilho/ como se fosse uma invenção minha”. A fractura existente entre o sujeito e a realidade social leva o poeta a usar a palavra para criar um mundo alternativo, fazer-se matéria e cosmos verbal: “Em meus olhos ainda arde a esperança/ De pegar-te pela cintura como a um poema pela manhã”.
Viagem, memória e loucura na poesia de Celso Manguana
O livro de Celso Manguana Pátria que me Pariu provoca no leitor um singular espanto em ler, de forma simples, escandida em verso breve, uma certeira crítica social, visível logo a partir do trocadilho que o título propõe, representativa de uma geração desencantada com as mudanças do projecto político do país.
Este conjunto de poemas está organizado em duas partes complementares, mas diversas. A primeira organiza-se com um conjunto de poemas, que poderíamos apelidar de epigramáticos, em que a temática é convertida em palavras-chave, nelas condensada por uma técnica de repetições. Os poemas articulam sintacticamente proposições simples e directas, que actuam com o desdobramento paralelístico de uma só figura rítmica, e realizam o máximo de intensidade de significação num mínimo de espaço de verso.
Diria Zenão que a brevidade é um estilo que contém o necessário para manifestar a realidade, adequado para carecterizar o discurso de Celso Manguana. Termos como rigor, despojamento, concisão, substantividade, arquitectura e mesmo geometria servem esta poesia epigramática, que tem o valor da frase inscrita na lápide, recolhendo a moralidade da lucidez crítica anti-épica e anti-heróica. Mas, simultaneamente a uma certa enxutez da asserção, confere-lhe o poeta um ritmo refrânico e cantante pelo uso da rima externa e interna: “Pátria/ quero só uma/ o lugar de/ morte/A nenhuma/ cidadania/ pertenço/ conheço/ três/ lugares/ de exílio/ O amor/A memória/A loucura/ Memória/ percorrida/ loucura/ visitada/ e quantos/ amores// Vou/ para norte/ sempre/ para morte/ Caminho/ sozinho/ não/ despeço/ peço/ lume/ Charro/ aceso/ prossigo/ para/ norte/ obviamente/ para/ morte/ (minha pátria)” (PQMP, p.2).
Ao fazermos uma identificação das palavras-chaves-temas mais significativas do livro, encontramos no primeiro poema o “programa” que orienta esta escrita: pátria, morte e três lugares substantivos de exílio (amor, memória, loucura).
É nesta travessia ou itinerário poético que Celso Manguana começa por intertextualizar o cancioneiro épico da literatura de combate, revertendo a significação utópica em distopia – “Vou/ para norte/sempre/para morte... charro/ aceso/ prossigo/ para/ norte/ obviamente/ para/ morte (minha pátria)”. Invertendo a direcção, de sul para norte, o poema de Celso, talvez por razões objectivas (lembrando a necessidade de revitalizar o norte do país) inflecte um deslocamento e direcciona, no sentido contrário, do centro para a periferia, o percurso de um dos emblemas da poesia revolucionária, que saudava a conquista a partir do movimento norte-sul.
Leia-se, por exemplo, Eu o Povo de Mutimati Barnabé João, nomeadamente o poema “Para Sul” (“Na noite em que passámos o rio Rovuma/ Apontei para Sul com o nariz, com o coração, com os pés...”). Ao colectivo da viagem de conquista do país, sucede agora a individualidade de um percurso pessoal, em demanda dos lugares de “exílio”, de fuga e de achamento de si.
Mas Pátria que me Pariu é também o título de um texto de Gabriel o Pensador sobre a sua terra, o Brasil, recuperado intertextualmente pelo poeta mo¬çambicano. A duplicidade de leitura, cancioneiro épico e texto música, permite ajustar a componente popular da poesia de combate com o ritmo rap.
A pátria “Sonâmbula” (e veja-se a referência implícita ao romance Terra Sonâmbula), poema dedicado aos pais, refere a amarga evidência da fome: “acorda/ com/ fome// Custa amar/ uma bandeira/ assim// Tem/ o/ amargo/ gosto/ do asilo// Almoço/ de pão/ com badjias/ sabe bem/ todos/ os dias?” (PQMP, p.5). Repare-se na ironia da interrogação retórica, que revitaliza a interrogativa crítica do verso craveirínhico, e que surge em vários outros poemas, como por exemplo no poema à memória de Samora Machel e de Carlos Cardoso: “Quanto custa/ quanto custa mesmo/ amar a liberdade? ..Que dizer/ da vida/ quando/ Mesmas/ armas/ libertam/ e/ também/ matam?” (PQMP, p.8)
A demanda da pátria, do sonho, da paz sem armas, da ausência de violência, não se confronta coma realização destes ensejos: “Mas sonhamos/ talvez/ sonhamos// Só a meia-haste// meninos/ regressamos/ a/ Nachingweya/ não/ temos armas// Procuramos a Pátria.” (PQMP, p.8).
Falamos de um itinerário poético, programaticamente caracterizado pela demanda de um mundo substantivo, socialmente amoroso, que faz do poema dedicado à memória de Siba-Siba Macuácua, a confissão do crédito de um amor maior, embora cepticamente desacreditado: “Esta coisa/ de deixar/ que o amor/ a bandeira/ de Junho/ seja o/ amor/ primeiro// E como cega/ todo o amor/ sincero!”.O poeta regressando ao tema, diz mais adiante, em outro poema: “Onde o amor/ florescer/ a pátria pode/ nascer...” (PQMP, p.11).
O ritmo escandido dos poemas, palavra a palavra, na sua simplicidade solene, de efeméride aos mortos, epigramática e refrânica, evoca ainda Zaida Lchongo, e a implicação festiva e social das letras e dos ritmos das canções da artista.
A serialização dos poemas de Celso Manguana, realiza-se pela insistência temática e formal, e o gume da crítica social não se deixa amortecer pela nostalgia, embora o reduto do sonho, os lugares de exílio, entre os quais a infância, criem fortes imagens oníricas: “A infância/ minha outra/ Pátria// Às vezes/ quero/ lá voltar// com sal/ amadurecer as mangas(...)Talvez seja só/ para ver/ o papagaio/ da minha/ meninice/ a voar/ no mar/ no tempo/ e pousar/ no futuro” (PQMP, p.6). São visíveis as referências aos poemas knopflianos de Mangas verdes com sal nesta evocação da infância, gostosamente assumidos numa herança de escrita.
Técnica de repetições, andamento anafórico e paralelístico, reiteração topológica de palavras iguais ou parónimas, repetição de tipo aliterativo, ou em eco, a poesia de Celso Manguana testemunha um certo humor, extraído de uma ágil manipulação de sintagmas directamente extraídos do falar coloquial, assim como afirma que a quase nudez vocabular, longe de ser um pejorativo estético, pode constituir-se num legítimo princípio de estilo, que tem o pudor das exterioridades gritantes e leva ao despojamento.
“Sobre amor/escrevo noutros/ versos” diz o poeta. E a segunda parte do livro cumpre esta afirmação. O ritmo muda, e os textos em prosa poética, mais longos e extensivos, preparam-se para um tom assumidamente lírico e confessional: “Vem de dentro este frio. Do lado esquerdo lado do peito. Como se aplaca este frio que vem do coração?” (PQMP, p.23).
O encadeamento de motivos, o envolvimento do eu lírico e do eu participante, da vivência amorosa e da convivência política, opera-se não por um pacto exterior, mas por dentro, na textura da linguagem, o que lhe confere uma singular eficácia. Assim, a espera do amor, a esperança, o desespero, a diarística amorosa do sujeito emocionado, cruza-se em imagens da fragilidade do mundo social/individual, em simbiose de forte comoção (déficit econó¬mico e amoroso): “Esperar. E esperar. Do chapa-100. Há Chapa-100 que nos leva para o amor?” (PQMP, p.28).


*VIA ATLÂNTICA Nº 16 DEZ/2009
** Universidade de Lisboa

Referência Bibliográfica
LEVENE, Chagas. Tatuagens de Estrelas. Maputo: Ndgira, 2007.
LEVENE, Chagas. Porto das Luzes. Maputo: Ndgira, 2010.
MANGUANA, Celso. Pátria que me Pariu. Maputo: Fundac, 2008.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó, A Magia das Letras Africanas. Rio de Janeiro: Quartet Editora&Comunicação Ltda, 2008.
SULTUANE, Sónia. Sonhos. Maputo: Ndgira ,2001
SULTUANE, Sónia. Imaginar o Poetizado. Maputo: Ndgira,2006.
SULTUANE, Sónia. No Colo da Lua. Maputo: Ndgira,2009.
Via Atlantica16.indd 28 26/01/2011 15:00:22
In Notícias Quarta, 12 Novembro 2014


02 setembro 2014


 
Kidjo
É uma mulher de várias facetas. A mãe de todas elas é o facto de ser africanista. O mundo conhece-a mais como cantora, mas ela é, acima disso, uma activista dedicada às crianças, sendo por isso embaixadora de boa vontade do UNICEF.
 A promoção da mulher e da rapariga também são uma causa para a bebinense Angélique Kpasseloko Hinto Hounsinou Kandjo Manta Zogbin Kidjo, ou simplesmente Angélique Kidjo. Durante cerca de dez dias até domingo, a cantora que entre nós se popularizou com o tema “Agolo” foi estrela nos quatro espectáculos (o último deles no encerramento da FACIM) da quarta edição do More Jazz Series, festival organizado pelo saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça. Foi o fascínio dos fãs que a passaram a conhecer melhor, pois para além de cantar também explanava as causas que abraça. Uma dessas causas é, também, a promoção do continente, pretexto para esta entrevista com a beninense:
- Tem ideia do quão poderosa é a sua música?
- Não tenho! Não tenho em absoluto a noção desse poder. Quando faço música, sinceramente não olho para esses detalhes. Se ela tiver algum poder, tomara, gostaria que fosse o poder de levar as pessoas a levarem melhor as suas vidas, que elas saibam quem elas são e o que é que podem fazer melhor para si e para o próximo. Isso é, na verdade, o poder da música, o poder de levar as pessoas a encontrar as soluções para a sua vida, para a vida do próximo, para a vida dos nossos países e, especialmente, para o meu caso, para a vida de África.
- Vive há muitos anos fora da sua Cotonou e do seu Benim mas conserva muito do seu país e do seucontinente, a cantar ou não. Como é que consegue manter as suas origens depois da tanta estrada quepercorreu ao longo de décadas fora de África?
- Eu venho sempre a África. Se não ao Benin, vou a muitos outros países do continente. África toda é também minha terra e uma inspiração presente não só quando estou cá fisicamente, porque espiritualmente, acreditem, eu estou sempre aqui. Já fui à Tanzania, Tunísia, Senegal e em muitos outros países, numa lista a que se acrescenta agora Moçambique. Em todos os países africanos em que estive senti-me em casa. Estou agora em casa. Antes de partir, eu nasci em África, fiz aqui a minha escola primária, secundária e os meus estudos universitários. Por outro lado, nasci numa família em que a cultura é muito importante e durante os meus tempos de criança sempre me aproximei dos mais velhos para colocar perguntas diversas sobre muitos temas. Sou uma pessoa que gosta de perguntar, porque assim ensinaram-me, porque assim tive e tenho a certeza de que aprendo. Portanto, quando aprendes quem tu és e de onde vens, nunca deixarás de ser o que és. Eu nunca quis ser diferente do que alguma vez fui, sou a mesma de há tempos atrás. Sou africana e nunca o negarei, é a minha identidade e isso sempre será evidente em mim. Não tenho nada a cobiçar na Europa ou na América, não sou nem europeia nem americana. O que é bom na cultura deles implemento na minha mas nunca deixo de ser o que sou, nem mesmo interrompo o que sou para estar na pele deles, porque eu sou eu, sou africana. Não apenas por uma questão de pertença, o meu continente é mesmo uma inspiração. As coisas que ainda temos que superar, as nossas virtudes, a nossa história, incluindo a de sofrimento, como o tempo da escravatura, são uma eterna inspiração para que cada um de nós batalhe para que nos tornemos melhores do que somos e alcancemos o que tanto queremos.
- África está em muitos dos seus pronunciamentos e uma das mensagens que tem transmitido é a da esperança no futuro. Com tudo o que se passa hoje, como as várias crises que assolam o continente, que futuro augura para os africanos?
- Somos um continente de desafios. Enfrentamos hoje desafios enormes, talvez os maiores do que alguma vez enfrentámos no nosso passado. Por exemplo, em 2050 África será o continente com maior número de jovens no planeta. Estamos preparados para isso, em termos sociais, políticos e económicos? Enfrentamos desafios de desenvolvimento e, sinceramente, apesar de algumas evidências de que algo esteja a ser feito em alguns países, não vejo tanto a ser feito para enfrentar os nossos desafios do futuro. Naturalmente que há que encorajar alguns esforços que estão a ser feitos, mas mesmo esses precisam de ser levados muito mais a sério. Penso que em termos de continente a aposta séria que deve ser levada a cabo é a criação de infra-estuturas. De forma mais ousada, porque este é o ponto em que nos encontramos mais atrasados, em que não nos conhecemos e não partilhamos nada ou quase nada uns dos outros, dentro de África. Isso pode ser visto apenas do ponto de vista económico mas não é só em termos de economia que é nefasto. Mesmo em termos culturais, em que sabemos pouco uns dos outros, em que as indústrias culturais não fluem como devia ser, há que trabalhar muito.
- Até que ponto em termos culturais África não se conhece a si mesma?
- Por exemplo, para além dos artistas mais badalados, por exemplo aqueles que actuam em palcos de fora, são repercutidos. É uma cadeia grande, que para mim é absurda. Ou seja, para eu ser um artista africano de renome devo ir primeiro para fora? Para que alguém conheça a música de Moçambique, do Benin, do Senegal ou de outra parte precisaríamos mesmo dos outros? Não, não deve ser assim. Volto à economia: nas estatísticas sobre o comércio internacional deparamo-nos que o comércio intra-africano, ou seja entre os países africanos, é apenas de um por cento. Isso não é normal. Temos dentro de África muito ou quase tudo o que precisamos, mas não alcançamos. É uma questão de vontade política, o desenvolvimento de infra-estuturas como estradas, linhas férreas, portos, etc. sei que no vosso país, como em alguns outros, se está a apostar e muito bem nas infra-estruturas, mas, olhando para o continente como um todo, muito há por fazer. Isso é apenas um exemplo que dou. Depende de nós, africanos, queremos nos ver diferente do que o mundo nos vê hoje. Questionemos as opções que nos são impostas e lutemos para as melhores soluções para os nossos países e povos. Incluindo na cultura. Podemos, sim, dizer ao mundo “olhem, nós podemos fazer melhor para nós mesmos”. É tempo também de os nossos líderes africanos olharem para o seu povo como um potencial para um continente melhor, saberem que se investirem nos seus povos, em termos de educação e saúde, terão países mais ricos. A corrupção é uma ponta de icebergue que deve ser derretida, porque também, no nosso caso, mina muito o desenvolvimento. A corrupção existe também na Europa e na América, mas porque os cidadãos têm educação, os seus países são desenvolvidos. As vagas de emigração dos países africanos para a Europa ou América, as fugas de cérebros, etc., não existiriam se se trabalhasse efectivamente para os nossos países. Por tudo isso, para mim, tem que haver um investimento forte na educação, principalmente na educação da rapariga…
- … porquê sublinha a educação da rapariga?
- Porque durante décadas, séculos até, a mulher e rapariga foram tidos como seres inferiores e nada mais do que corrigir essa aberração secular. Está provado que com o investimento na educação da rapariga, o PIB dos países sobe. Porquê? Porque uma rapariga educada, quando for mãe colocará os seus filhos, rapaz e rapariga, na escola e assisti-los de forma igual. Esse investimento também fará com que a educação destes dois filhos gere netos educados, com capacidade de educar mais. Os benefícios da educação para a sociedade são óbvios. Mais: com uma mulher educada um marido não será o único com a responsabilidade de sustentar o lar. Com recursos conjuntos planifica-se muito, incluindo o número de filhos. A partir da planificação da economia doméstica, com a mulher envolvida, muito mais se poderá planificar, como a educação. Se planificarmos melhor a educação, por exemplo, não teremos tanta gente a cantar a tom alto, lá fora, e com um tom sarcástico, que África é uma terra pobre, de gente pobre. Essas pessoas que cantam isso são as mesmas que têm negócios e tiram de África vários milhares de milhões de dólares todos os anos. Em França, na América ou em qualquer outra parte jamais dizem que África é rica, o que de facto é. Portanto, temos uma grande responsabilidade de transformar a nossa sociedade africana, transformar os nossos países e s nossos continentes. Temos definitivamente que mudar para o melhor. Alguns países estão no caminho certo. Moçambique é um deles, que está a mudar, passo a passo, um passo mais rápido que o outro rumo ao que deve ser feito por todos nós. Temos que mudar muito mesmo, incluindo a nossa forma de nos relacionarmos com os nossos parceiros externos. Como é que se explica que a Nigéria, há muitos anos uma potência em áfrica, um colossal produtor de petróleo, com exportações impressionantes, só agora, há poucos anos, é que começou a construir uma refinaria. Ou seja, compram o petróleo da Nigéria, refinam-no e vendem-no de novo à Nigéria, ao povo nigeriano. Isto é de loucos, não é? Já é momento de acabarmos com aberrações como esta. Eu acredito na nossa capacidade de transformar o nosso continente.
- Tem exemplos de países africanos que pode citar para que outros sigam e se transformem para um nível de desenvolvimento aceitável?
- O Botswana é um bom exemplo para todos. A partir dos diamantes, a sua principal riqueza, criou para o seu povo um nível de vida incrivelmente melhor. A população do Botswana, em termos estatísticos, não é comparável à população sul-africana ou moçambicana, mas a fórmula pode ser a mesma ou nela inspirada. O vosso país está a fazer muito boas coisas. Vi aqui obras de construção de estradas e foi-me dito que há uma aposta muito grande em termos de infra-estruturas. É o caminho certo. Aliado a isso, é necessário olhar-se para as outras potencialidades e fazer delas ponto de partida para o desenvolvimento deste país que é lindo. Seria para mim decepcionante não construir o vosso país como o estão a construir. Com uma rede de estradas que ligue vários pontos do norte e os do sul, o que é produzido no norte pode ser facilmente consumido no sul ou no centro a custos aceitáveis, o que é produzido no sul chegaria mais facilmente ao norte e ao centro. Para além disso, o comércio com os países vizinhos pode ser incrementado e com vantagens para todos. Por outro lado, o sector fiscal tem que ser justo. Se os cidadãos pagam impostos, tem que haver a transparência no destino que se dá a essas contribuições, proporcionando-se melhores serviços aos cidadãos, havendo uma gestão o mais transparente possível. A transformação a que me refiro preconiza isso.
- Uma das suas batalhas é contra as desigualdades no mundo. Até que ponto elas podem ser combatidas?
- O ponto que eu não percebo e ninguém ainda me deu uma resposta para a seguinte questão: como é que este continente que todos sabemos que tem tanta riqueza tem tanta gente a viver na pobreza. Não sou boa a matemática e julgo não ser necessário sê-lo para vermos que esta equação é vergonhosa. Países com riqueza na Europa conseguem ter melhores serviços para o seu povo mas aqui acontece justamente o inverso. Porquê? É uma das desigualdades que não me agrada. Outra: em África há desigualdade do género. Porque é que os rapazes vão e são acarinhados a ir à escola e as raparigas não? Apregoou-se que as mulheres são menos inteligentes, o que não é verdade, é de loucosfazer passar isso por verdade. Era uma forma de exercício de poder que não faz sentido. Meu pai dizia: o homem digno desse nome não tem medo da inteligência da sua parceira. Aquele que a esconde na cozinha está a condenar a sua família à pobreza. É uma hipocrisia criminosa, essa. Quando o BokoHaram raptou aquelas raparigas, justamente porque são raparigas não se fez qualquer movimento para resgata-las nem para condenar o acto. Escandaloso! Se fossem rapazes a Nigéria se teria mobilizado.

- Acredita que a actual geração de africanos pode eliminar essas desigualdades?
- Se começarmos agora, claros que vamos a tempo. Mas o problema está mesmo aí, no começo. Se começarmos já, veremos os resultados em pouco tempo. Se não começarmos é um pesadelo adiado. Se virmos essas transformações e os resultados que elas trarão na vida diária, os que querem manter o status quovão mudar de ideia, o que acontece a África não vai continuar assim, porque os estrangeiros que deslealmente fazem negócios em África não continuarão assim.
- Uma das suas facetas é a do activismo, incluindo a parceria com o UNICEF, com quem tem trabalhado. Crê que o seu engajamento encontra soluções para os problemas que se predestina a combater?
- Creio, sim! As pessoas ouvem-me, sinto isso. A África de antes, de há alguns anos, não é a mesma de hoje mas, obviamente, há muitas mentalidades a mudar. Gostaria de ver mesmo diferenças na forma de pensarmos o continente. Há que dar direcção às mudanças que estão a ocorrer, em alguns casos dando-lhes o melhor discernimento. A mudança de mentalidades inclui também mudanças na forma como encaramos algumas convicções culturais. Ninguém me vai dar cultura na falta de educação de raparigas e na mutilação genital feminina, por exemplo. Dirão que é uma tradição, mas julgo que pelos seus efeitos, que incluem dificuldades para que as mulheres tenham filhos e mortes durante o parto, não dão orgulho nem dignidade a ninguém.

- Uma das críticas que faz é à falta de conhecimento da história de África pelos africanos…
- … oh, sim! Falando da história do nosso continente, a começar pela da escravatura, é uma frustração. Sabemos de tudo sobre o nosso passado a partir de livros escritos por aqueles que nos escravizaram, pelos que geraram lucros grandes à custa dos nossos recursos, incluindo humanos, ao longo de séculos. Quando viajas pelo mundo e encontras um descendente de escravos africanos, a relação que se desenvolve à partida é de fricção, porque eles sofreram uma lavagem cerebral que lhes faz pensar que nós, que ficámos em África, os vendemos no comércio negreiro. Eles cometeram o crime, não reconhecem o crime e fazem-nos responsáveis por este crime. Nunca falam dos africanos que se rebelaram contra a escravatura. Alguém disse-me, não há muito tempo que “não é a nós, europeus, que cabe contar a parte positiva da vossa história, é a vocês que isso cabe”. De que é que estamos à espera?
- Ainda que grande parte das suas audiências não se perceba o que diz nas músicas, por não entender a língua em que canta, entende-se a mensagem quando a explica, em inglês ou francês, que elas são maioritariamente de activismo. Quando compõe é essa a intenção?
- A música em África é exactamente isso, um activismo. Cantamos causas, ambições, vontades, ambições… A nossa história não é escrita, na maioria das vezes, e cabe a nós divulga-la. A música é um dos meios para tal. Eu dedico muito tempo a ouvir os mais velhos. A minha avó materna contou-me muitas histórias do tempo da escravatura, que lhe foram contadas por gerações anteriores e remontando do tempo da escravatura. Falou-me de gente da comunidade e de familiares aprisionados e vendidos para escravatura. Sinto que devo escrever essas histórias, antes que a minha memória desapareça. Os meus ancestrais estavam na linha da frente da resistência à escravatura e sei das suas histórias pela tradição oral, que inclui cânticos no seio dos meus familiares. Dizia, essa história faz também as minhas canções como forma de partilha. Não tenho a ideia imediata de incitar ao activismo, mas a minha ideia final é essa, fazer com que mais de nós seja sabido. Sei muito da história do continente não necessariamente por via da leitura de livros, porque poucos, mas colocando questões aos mais velhos, por exemplo. Sei sobre Samora Machel, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere mais assim do que por via de uma produção historiográfica activa.Existe alguma coisa e li, mas podia ser mais, podia ser mais divulgada e sobretudo podia preconizar mais o continente. Gostaria que mais africanos, incluindo cientistas, historiadores africanistas, trabalhem de modo a que tenhamos menos crianças a sonharem em ir à Europa ou América no lugar de sonharem com o seu próprio continente. Façamos da geração deles uma geração feliz em África. Na verdade, não precisamos muito da Europa ou da América para sermos felizes, é uma questão de olharmos para as opções que existem dentro do nosso continente.
GIL FILIPE, In: Notícias, Quarta, 03 Setembro 2014




Escritora brasileira Madú Costa

A escritora afro-brasileira Madú Costa, que durante duas semanas esteve em Maputo a trocar experiencias com artistas nacionais, especialmente escritores jovens moçambicanos, traçou um balanço positivo da sua primeira viagem à África, afirmando que concretizou em quase 100 por cento com aquilo que tinha preconizado nessa deslocação a Moçambique.
Para esta escritora que também é cantora e contadora de histórias, o ponto mais alto foi a sua participação no Festival Nacional da Cultura que decorreu de 14-19 do corrente na cidade de Inhambane, evento que celebrou a nossa moçambicanidade, Madú Costa diz que saiu deste evento enriquecida pela enorme diversidade cultural do país. No festival, foi palestrante de um tema sobre a “Democracia racial no Brasil” e a questão da afirmação do negro.
Nesta festa da cultura, a escritora aponta que, “fui recebida com muito amor, carinho, respeito e admiração pelos moçambicanos. Ali deu para eu entender melhor a questão da preservação e valorização das nossas raízes, daqui de África”.
A cantora destacou ainda a importância do Festival Nacional da Cultura como um porto que no futuro poderia aportar mais artistas do seu país, para que muitos tenham um maior conhecimento sobre as suas origens. “Eu logo que pisei o solo moçambicano tornei-me moçambicana. Agora sou moçambicana! Eu me moçambicanizei. No aeroporto, fui recebido por amigos que me amarraram a capulana, um dos maiores símbolos do país e ainda ganhei um ramo de flores. Foi tudo muito emocionante, destaque para a escritora Fátima Langa, o Alex Dau e os jovens escritores do Khuphaluxa”.

A passagem de Madú Costa por Maputo, não passou despercebida. Ela deixou um pouco do seu perfume e marca pessoal por onde passou. Isso aconteceu na Casa-Museu José Craveirinha na Mafalala, onde foi recebida pelo filho do poeta, Zeca Craveirinha que descreveu a trajectória de luta de José Craveirinha. A brasileira deixou-se encantar e emocionou-se com quantidade de acervo decorativo na casa do poeta-mor. Madú Costa, antes de deixar aquela casa, teve tempo de ler alguns versos da vasta obra de Craveirinha.
Outro evento que superou todas as suas expectativas foi o encontro com os jovens do movimento literário Khuphaluxa que juntamente com o Centro Cultural Brasil e Moçambique dedicaram a escritora um sarau cultural que comportou teatro, poesia, música e dança. Foi uma festa animada em que, mais uma vez, afinada a brasileira, não deixou os seus créditos em mãos alheias…cantou, dançou e declamou e foi ovacionada. Os jovens fizeram uma homenagem merecida e ao nível de uma grande personalidade.

O mesmo aconteceu na Noite de Poesia, organizado pelo Movimento Poetas D`alma, dinamizado por Felling Capela, nosso colega de imagem. “Eu fiquei encantada com a pujança e tanta energia dos jovens poetas! Aquilo sim, é um espaço de literatura de intervenção, porque o poeta é um ser que se indigna e questiona as coisas do seu tempo. Foi interessante ouvir eles declamarem combinando com a música. A Shoodi que actuou lá naquele dia, foi fantástica. Quero um dia, se Deus quiser, voltar àquele centro cultural. Amei o ambiente de casa cheia”.
Não foi só da palavra que Madú Costa viveu em Maputo. As artes cénicas, nomeadamente o teatro, fizeram parte do brinde desta artista. Com efeito, no Teatro Avenida, viu a peça “Chapa100-My Love” e teve a oportunidade de privar com a decana Manuela Soeiro, Directora Geral da Companhia Mutumbela Gogo. “È uma obra de intervenção social, que cobra as autoridades governamentais para ter em conta esta questão do transporte na cidade. Procura também humanizar o cobrador e o chapeiro que são sempre vistos como profissionais de categoria subalterna. E o final da obra, é interessante ver, a participação do público infantil a subir o “chapa”…como forma de mostrar a dura realidade que a sociedade vive”.
Foi ainda ver a obra “Niketche”, uma obra encenada por Alex Elliot a partir da obra da Paulina Chiziane, com o mesmo nome. “Olha, na minha terra a poligamia é um fenómeno raro, diferentemente da realidade moçambicana: homem casado com cinco mulheres! Oba! Foi uma peça que para os estrangeiros e nacionais fazerem reflexão sobre o papel da mulher na sociedade”. A peça passou no Centro Cultural Franco-Moçambicano.
A Escritora apresentou ainda uma palestra na Escola de Jornalismo, na Universidade Eduardo Mondlane e na sede da Associação de Amizade e Solidariedade com os Povos (AMASP). E ainda houve tempo para se despedir do seu amigos no espaço cultural “Clube 21” na Feira Popular do músico Ildo Ferreira onde não faltou comida típica moçambicana, música e boa conversa animada.
A cantora que regressou a sua cidade ontem, já agendou nova visita a Moçambique para breve, desta vez, segundo conta, “gostaria de sair para as zonas rurais, conhecer as crianças moçambicanas e quiçá, montar um projecto educacional com criança.

FOTOS: ALBINO MOISÉS

In: Notícias, Quarta, 27 Agosto 2014



Havia dúvidas sobre se o M’saho iria acontecer, depois de Inhambane ter sido palco do Festival Nacional de Cultura. Mas, imediatamente, a organização do evento tratou de dissipar dúvidas e comunicou que, de facto, aquele festival de timbila teria lugar no último final-de-semana do mês de Agosto, como religiosamente acontece.
“Mas será que este evento teria o sucesso desejado?”, cogitavam muitos. Porém, estas dúvidas foram se dissipando logo no início dos preparativos do evento, na medida em que Zavala, particularmente Quissico, começou a “vestir-se a rigor” para o M’saho.
Nem o mau tempo, que ameaçou descarregar violentas bátegas de chuva durante o fim-de-semana, muito menos os fortes ventos, que espalhavam nuvens de poeira, fizeram as pessoas desistirem de estar presentes no Miradouro de Quissico. O palco do festival de timbila.

Mas o M’saho é M’saho. E não há nada, nem festival algum que vai impedir que ele se realize. É assim como pensam os organizadores desta festa e é assim como procederam. Vários grupos fizeram-se ao palco do Miradouro, ponto a partir do qual é também possível observar um outro espectáculo criado pela natureza: o longo lençol verde formado, na sua maioria, por  palmeiras e que é atravessado pelas límpidas e cristalinas águas das oito lagoas de Quissico que se comunicam com o Oceano Índico. Beleza paradisíaca.

O Miradouro esteve cheio. Gente vinda de diversos pontos do país, mas também de outras paragens do mundo. Ficaram
lá para ver a festa da timbila começar. E iniciou com o mkwaio, que é a selecção dos melhores marimbeiros existentes em todo o distrito de Zavala, convidado para cantar o Hino Nacional com recurso a timbilas. Depois se seguirá a exibição dos ritmos e dos cânticos. Fortes Fortes. Onde os bailarinos exibem coreografias estonteantes, e executam simulações guerreiras, com escudos, flechas e cajados, que nos vão fazer viajar pelos tempos de Ngungunhane e outros heróis, reis e imperadores.
Um espectáculo de encher os olhos. Depois foi o desfile dos grupos, sendo que a surpresa para nós foi a entrada de Timbila ta Guilundo, do mestre Venâncio Mbande. É que, quando anunciaram a subida desta orquestra, Venâncio Mbande retirou-se do palco, como que a querer dizer: “Agora é a vez dos meus filhos. Dos meus descendentes. Eu já fiz a minha parte. Por isso quero deixar os meus meninos fazerem o que sabem fazer. Mostrar o que eu ensinei”. E Venâncio Mbande saiu e foi sentar numa cadeira a ver os filhos tocarem e dançarem loucamente. E aqui são os filhos, netos e demais familiares de Venâncio Mbande quecompõem este agrupamento, que na linha do seu fundador, continua a desfilar qualidade.
Foram subindo vários outros grupos, mas a orquestra Timbila de Chizoho, criado pelo Professor Cremildo Pedro Nhantole, é um dos melhores da actualidade. E eles conseguiram se impor. Fazem furor quando sobem ao palco. Uma das coisas que impressiona é o facto de esta orquestra ser composta por crianças. Na sua maioria meninas. E aqui queremos recordar que, no ano passado, foi escolhido para representar Moçambique num festival internacional de cultura, que decorreu na França. Este grupo infanto-juvenil tem uma alta capacidade de criatividade e coreografias giras.
Vendo este agrupamento, fica claro que está em curso o processo de passagem de testemunho dos mais velhos para os petizes, sobre os valores desta expressão cultural. Mas também temos a Timbila de Muane, que é um grupo extremamente forte e versátil.


FRANCISCO MANJATE, In: Notícias, Quarta, 03 Setembro 2014