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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

27 dezembro 2016

SAMORA MACHEL COMO ESTADISTA

Fidel Castro e Samora Machel

Jorge Fernando Jairoce[1]

             INTRODUÇÃO
Celebrar ou comemorar Samora parece que virou moda e tem suscitado inúmeros debates em torno da sua figura, uns a deusificá-los, outros indimoniá-los e outros ainda a não reconhecer seus efeitos. É só acompanhar os debates nos orgãos de comunicação social e nas redes sociais poderão perceber estas diferentes representações de Samora Machel.
A figura e a contribuição de Samora Machel  já foram analisadas com competência por historiadores e biógrafos, de forma que não me cabe fazer uma outra análise histórica de seu governo com factos e citações. Não me parece relevante discutir a polêmica sobre a governação de Samora, porque esta já foi amplamente tratada por outros autores. Não é, também, meu objetivo fazer um perfil com a enumeração de suas qualidades e defeitos, de seus muitos acertos e muitos erros. Parece-me, todavia, que há uma abordagem que poderia ser útil: a do ensaio de teoria política.
 Importa saber como a acção política de Samora se relacionou com a construção da Nação e do Estado moçambicano, resultante da transição de um Estado Colonial para um Estado Moderno de experiência socialista. Nesta perspectiva algumas questões pessoalmente me inquientam: Por que sua figura é tão importante para os moçambicanos apesar de haver governado o País de forma autoritária, como alguns sugerem? Por que considerá-lo um estadista? Ou como alguns propõem, um líder populista cujo discurso emocionava o povo? Na verdade acho  muito difícil elaborar uma biografia completa sobre Samora, ou mesmo, tentando, só poderemos representar uma parte daquilo que as nossas fontes permitirão enxergar.
Ora, tenho o desafio de falar de  Samora como estadista, diferente de um político que simplesmente governa. Por isso, discutirei nesta minha humilde apresentação o conceito de estadista baseando em dois autores clássicos como Aristóteles e Maquiavel. Mais adiante apresentarei algumas pistas que indiciam Samora Machel como um estadista e por fim apresentarei algumas reflexões sobre a  historicidade de Samora.


I.                   CONCEITO DE ESTADISTA E A HISTÓRIA

·         Para Aristóteles em “A Política”, o que o estadista mais quer produzir é um certo caráter ético-moral nos seus concidadãos, particularmente uma disposição para  a virtude ou  prática de acções virtuosas.

·         Já em Maquiavel em “ O Princípe”, a condução do Estado é considerada uma arte e o estadista, um autêntico artista. Para Maquiavel, o estadista é adaptável às circunstâncias, harmonizando o próprio comportamento à exigência dos tempos. Sua virtude é a flexibilidade moral, a disposição de fazer o que for necessário para alcançar e perenizar a glória cívica e a grandeza - quer haja boas ou más acções envolvidas - contagiando os cidadãos com essa mesma disposição.
Em jeito de síntese da visão dois autores, pode-se afirmar, primeiro, que o estadista é o dirigente político que, não  obstante suas próprias fraquezas e hesitações, tem a visão antecipada do momento histórico que seu país ou sua nação está vivendo e tem a coragem de enfrentar o velho em nome do novo; segundo, que um momento decisivo na história de um povo – o da Revolução Nacional  – é aquele no qual esse povo se transforma em uma Nação não apenas formal mas real, e, terceiro, a preocupação pela construção de um Estado-nação. Sob estas três perspectivas, concluo que Samora Machel foi o grande estadista que Moçambique teve na década 70 e 80.
Um estadista é sempre um político com qualidades extraordinárias de inteligência e capacidade de liderança, mas nem todos os líderes políticos com essas qualidades se transformam em estadistas, porque, é preciso também que chegue ao poder em um momento da história de seu país em que sua sociedade e sua economia estejam enfrentando uma crise e se tornando madura para a mudança. Nesses momentos, abre-se a oportunidade para o surgimento de um dirigente político capaz de compreender a oportunidade e se antecipar ao movimento da sociedade. Samora Machel surgiu na vida política moçambicana em um desses momentos. Portanto compreender Samora torna  necessário situar todos os acontecimentos e o contexto econômico e social mais amplo em que ele cresceu, trabalhou, lutou e governou.
Ora, considerando os diferentes contextos de governação, podemos distinguir três tipos de líderes políticos: aquele que se antecipa à sua sociedade, aquele que a acompanha e aquele que a faz voltar para trás. A grande maioria está na segunda categoria. Da mesma forma que, em um plano mais amplo, o Estado é uma expressão da sociedade, de suas  forças e de suas fraquezas, seus governantes também são em geral meros produtos médios dessa sociedade. Possuem qualidades pessoais, ambição e sorte para chegar à chefia do governo, mas não logram se sobrepor à sociedade que os produziu. Outros, seja por uma questão de incompetência, ou de arrogância, ou de falta mínima de espírito republicano, ou ainda por uma combinação desses defeitos, tomam decisões equivocadas e causam males profundos a seu povo; são o inverso dos estadistas, porque só olham para trás, ainda que acreditem fazer o oposto.
Os estadistas são o primeiro tipo de líder político (aqueles que se antecipa à sua sociedade), e o mais raro. Um estadista tem capacidade de se antecipar aos factos, de compreender em que sentido estão caminhando os acontecimentos, porque sabe ou intui quais as alianças internas e internacionais é preciso fazer, quais decisões tomar, e quais postergar. Ele é estadista porque é um solitário que ouve a muitos, mas toma suas decisões só, e assume a plena responsabilidade pelas mesmas. Porque tem amigos, mas não hesita em abandoná-los. Porque seu critério para tomar as decisões não é apenas o poder pessoal, mas é também o poder nacional, a realização de sua visão de futuro. Ora, face a esta constatação, será Samora Machel um estadista ou político.


II.     VIRTUDES DE SAMORA MACHEL COMO ESTADISTA NO CONTEXTO DA SUA GOVERNAÇÃO
Para  distinguir Samora como estadista tomamos como  referências os vários discursos por ele proferidos e nos depoimentos de algumas figuras que conviveram abertamente como Samora, assim como  a consulta de fontes biográficas elaboradas sobre Samora Machel. Deste modo, elegi para esta apresentação algumas das acções e projectos políticos que revelam as caracteríticas de Samora como estadista, que tem a ver com o processo de construção do Estado – nação e a luta pelo desenvolvimento económico e social.

 ·         Unidade, trabalho e vigilância
Samora tem sido uma figura de consenso quando se fala de unidade, trabalho e vigilância. A segurança do povo,  a unidade e o interesse pelo trabalho constituía uma das grandes preocupações de Samora Machel.  Em seus numerosos discursos ele fala de produzir para desenvolver o país, pois só assim poderíamos sair da pobreza, aliás elegeu a década 80 de luta contra o subdesenvolvimento. O PPI elaborado em 1977, mostra, o nível de preocupação de Samora em promover a agricultura comercial e a industrialização do País, pese, embora não tenha surtido os efeitos desejados, por falta de financiamento adequado e os malefícios da guerra. Em 1976, numa reunião com os operários das empresas industriais de Maputo  Samora chamava atenção aos operários que produzir é um acto de militância e que a luta pela independência económica implicava aumento de produção. Apontou ainda a grave insuficiência na organização da classe trabalhadora. Apelou ainda nesta reunião a necessidade de uma ofensiva política e organizacional generalizada na frente de produção.
Quem não se recorda dos discursos de Samora sobre combate aos ditos Xiconhocas, ou seja, aqueles que viviam do suor do povo, os corruptos e marginais, preguiçosos e sanguessugas. Samora considerava este grupo de pessoas como verdadeiros inimigos da revolução e era abertamente intolerante a corrupção, mesmo que fosse praticado pelos seus correligionários e as leis desta época atestam o que digo, refiro –me por exemplo as Lei contra a Segurança do Estado e do Povo e das Vesgatadas (Chicotadas).  Os Xiconhocas (imagem de representação dos bandidos, malandros, preguiçosos e sabotadores da economia do povo) tinham medo dele, por isso, que os níveis de criminalidade no seu tempo era reduzidos. Para Samora a corrupção era vista como perda da  virtude pelo conjunto dos cidadãos, por isso poucos eram aqueles que tinham coragem de surripiar a coisa pública e mesmo alheia.
Aqui vale apenas também perceber a intuição, a habilidade de Samora em unir interesses contrários. Antes da sua morte Samora preocupou-se bastante pela busca pela Paz, não sendo por acaso que assinou o humilhante Acordo de Incomáti (de não agressão) com o regime do Apartheid. Ainda antes da sua morte vendo o nível de deterioração da economia como foi reconhecido no IV Congresso abriu-se para o Ocidente. A entrada na economia de Mercado também faz parte da sua visão em desenvolver a economia nacional.
É importante a analisar a perspectiva política central de Samora que era fazer do Estado um instrumento a serviço da nação. Já na época da sua governação lutava pelo excesso do burocratismo e espírito de deixar andar nas instituições públicas. A ofensiva política e organizacional constitui um exemplo claro das suas acções. Uns dos aspectos  a realçar nesta ofensiva era sua exigência pela disciplina, rigor, pontualidade e entrega ao trabalho.

·         Construção do Estado-nação
Em outras palavras, Samora entendeu que seu desafio era o de construir uma Nação e um Estado, era o de formar um verdadeiro Estado-nação independente, ao invés de aceitar a permanente subordinação modelos colonialistas. É verdade que não chegou a essa política no primeiro dia do seu governo, mas foi construindo-a aos poucos, através de acordos e compromissos, de avanços e recuos. Os resultados, entretanto, foram inegáveis.
O nacionalismo  advogado por ele é essencialmente a ideologia da formação do Estado-nação; é a ideologia que um povo, sentindo-se capaz de se transformar em uma nação, usa para poder se dotar de um Estado com soberania sobre seu território. Samora acreditava que o povo só se torna Nação quando, no quadro da Revolução Popular, conta com um Estado ou tem condições objectivas de obtê-lo e, assim, forma um Estado-nação e Samora tal como Renan via a construção da Nação como um plesbicíto diário, por isso que no seu discursivo, dizia sempre abaixo o tribalismo e viva unidade nacional. Essa Nação irá, depois, buscar suas origens em um passado mais longínquo, de forma a poder fundar sua unidade em mitos e heróis comuns e se possível antigos, daí a sua preocupação em valorizar a experiência dos heróis das resistências anti coloniais e da luta de libertação nacional.

· Diálogo com o povo
Só participar num comício dele era uma honra, por isso ninguém queria perder. Também porque o que ele falava era tão forte emocionalmente que tocava cada um dos que estava lá presente. Samora Machel era um Presidente muito mobilizador, daí que mesmo em meio a muitas dificuldades as pessoas sentiam-se motivadas a ir trabalhar.  Por isso ele era considerado muito amigo do povo. Algumas das decisões anunciadas no comício eram sábias e positivas, sempre procurando estar na dianteira dos interesses do povo, por isso, alguns autores o consideram presidente populista e era na verdade.
No diálogo como o Povo, encontramos as características do Estadista referido pelo Maquiavel., visto que Samora estava sempre disposto a fazer o que fosse necessário para alcançar e perenizar a glória cívica e a grandeza - quer haja boas ou más acções envolvidas - contagiando os cidadãos com essa mesma disposição. Ele conseguia nos seus discursos simular e manipular da opinião pública. Sobre a manipulação da opinião pública, quem não se recorda da sua expressão em pleno comício "é ou não é?". Obviamente que o público respondia positivamente.

III.USOS E ABUSOS DA HISTÓRIA NA EXALTAÇÃO DE SAMORA MACHEL
Alguns discursos expressos por diferentes personalidades não parecem representar aquilo que Samora era de facto, mas as nossas pretensões individuais em expressar algo, que na minha, opinião, se pretende transmitir uma certa moralidade à sociedade ou mesmo usar Samora Machel como uma referência  moralizadora para a sociedade moçambicana. O problema que estas pretensões não possuem nenhuma base de historicidade, o que acaba de certa escamoteando determinadas circunstâncias temporais da nossa História. Por exemplo, tenho ouvido recorrentemente discursos como: se Samora estivesse vivo teria tomado essa ou aquela atitude. Ora, estes posicionamentos, revelam os nossos posicionamentos e não dele. De tal forma, que sou opinião que apontemos as virtudes e as limitações da governação Samoriana nas circunstâncias temporais da sua actuação política. Samora se estivesse vivo teria a mesma virtude no cenário político internacional? Aliás, ele demonstrou em vários momentos as mudanças políticas e económicas em função da conjuntura política e económica nacional e internacional. Existe exemplos de alguns líderes africanos que foram mudando com o tempo. Passaram de líderes queridos para inimigos do Povo. Teria aceite alternância do poder? São algumas incertezas e difíceis de prever historicamente. Por isso, que me refiro que em alguns momentos os discursos não me parecem estarem a analisar feitos de Samora, mas sim a deusificá-lo . É verdade que o passado pode ser aproveitado para tudo que se queira fazer do presente. Nós menosprezamos quando mentimos sobre ele (o passado) ou quando escrevemos a História que mostra um dos seus lados. Podemos por em prática o que aprendemos de Samora tanto de um modo cuidadoso quanto desastroso. Isso não siginifica que não somos capazes de ver a história como fonte de conhecimento, apoio e ajuda, mas que devemos ter cautela com o emprego que dela fazemos. É isso que chamo de uso e abuso da História, talvez porque em Moçambique, valoriza-se bastante a História Política, razão pela qual a nossa História esteja muita virada para análises do processo de resistência anticolonial, governação colonial, a luta pela libertação nacional e o processo de construção do Estado-Nação e a guerra dos 16 anos. Pouco aborda-se outras componentes da História Social, Cultural e Económica, refiro-me concretamente a história dos grupos rurais, mulheres, operários, comerciantes informais, prostituição, economia informal, políticas culturais e económicas e muito mais, que é outra vertente de análises de processos históricos, porque na verdade César não construi Roma sozinho, Faraó não construi as pirâmides sozinho e nem Samora tentou construir um  Estado-nação sozinho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As circunstâncias políticas da governação samoriana permitiram actuar como actuou, num período da construção do Estado- nação, mudanças de mentalidade em relação a governação anterior – colonial e a tentativa de seguir a experiência socialista. Samora preocupou-se imenso pelo interesse colectivo. E neste processo encontramos em Samora virtudes convencionais como honradez, veracidade, escrúpulos que não são típicas do político, que costuma ser propenso a certos vícios - desfaçatez, hipocrisia, venalidade, mas apesar de ter sido um bom estadista, possuía também suas invirtudes assim como qualquer homem.
Samora como estadista tomou decisões de alguma forma incompreendidas pois preocupou-se com o longo prazo e tomou decisões impopulares a curto prazo, enquanto a maioria dos políticos preocupa-se com resultados imediatos de suas acções.
Devemos continuar a celebrar Samora valorizando, seus feitos carismáticos, mas apontado também suas invirtudes e limitações, se é, que precisamos transmitir um legado histórico às diferentes gerações. Samora pelos seus feitos, a sua representação simbólica, configura-se a de um herói  real e não imaginário, criado e inventado.
Aliás, a invenção de heróis, símbolos e mitos em Moçambique no processo da construção na Estado-nação em Moçambique é um outro debate que  deve ser aprofundado nas pesquisas históricas. Para terminar vou socorrer da frase de Ortega & Gasset que afirma: “o estadista se preocupa com a próxima geração e o político com a próxima  eleição.

BIBLIOGRAFIA
ARPAC- Instituto de Investigação Sócio-Cultural. Samora Machel, História de uma vida dedicada ao povo moçambicano. Maputo: ARPAC, 2011
MACMILLAN, Margareth. Usos e abusos da História. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2010
MATOLA, Arlete, ZONJO, Johane, PADEIRO, Sérgio (Orgs.). Comunicações apresentadas nos seminários do Gabinete da Presidência da República. Maputo: Gabinete de Estudos da Presidência da República,  2011
MONTEIRO, Ana Piedade et all. Samora Machel na Ilha de Inhaca (1955-1959). Maputo: Centro de Estudos Africanos/ ImprensaUniversitária, 2012
MUIUANE, Armamndo Pedro. Datas e documentos da História da FRELIMO. 3ª Edição, Revista, melhorada e ampliada. Maputo: S.E, 2013
KOSELLECK, Reinhart  et all. O conceito de História. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013
MACHEL, Samora. Establishing People`s to Serve the Masses. Dar es Salaam: Tanzania, 1977
SILVEIRA, Hélder Gordim da, DE ABREU, Luciano, MANSAN, Jaime Valim (Orgs.). História e Ideologia: Perspectivas e debates. Passo Fundo: Editora da Universidade Passo Fundo, 2009

Discursos
MACHEL, Samora.  Colher no 25 de Setembro, força renovada para o combate. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1979
MACHEL, Samora.  Assembleias são escola do poder popular. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1986
MACHEL, Samora. Produzir é um acto de militância. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1979
MACHEL, Samora.  Estabelecer o poder popular para servir as massas. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1984







[1] Doutor em História pela Universidade  Federal do Rio Grande do Sul e Director da Biblioteca Nacional de Moçambique

28 janeiro 2015

O CONTO NHINGUITIMO, DE LUÍS BERNARDO HONWANA, E OS EMBATES A PARTIR DA RELAÇÃO SUJEITO/OBJETO

LUÍS BERNARDO HOWANA’S SHORT STORY NHINGUITIMO AND THE CONFRONTATIONS REGARDING THE RELATION SUBJECT/OBJECT

Luiz Carlos de Oliveira (UNIOESTE)
Claudiana Soerensen (UNIOESTE)
RESUMO:
O presente trabalho aborda o conto moçambicano Nhinguitimo, de Luís Bernardo Honwana (1964). A partir da teoria pós-colonialista apresentada por Bonnici (2005), pretendemos evidenciar a relação sujeito/objecto presente em sociedades como a moçambicana, em que o sistema colonialista foi a marca principal, com todas as suas implicações. A análise do referido conto nos serve de fonte para a discussão proposta. O que se quer, com o estudo, é demonstrar como é explicitado e caracterizado, através da fala dos personagens, o discurso do colonizador e a resistência a esse discurso pelos colonizados. Parte-se da hipótese de que há, nas sociedades coloniais, uma relação sujeito/objecto na qual o colonizador se diz “sujeito” e trata o outro enquanto “objecto”. Palavras-chave: Literatura; Pós-Colonialismo; Sujeito/Objecto.
Palavras-chave: Literatura; Pós-Colonialismo; Sujeito/Objecto.

Aprofunde em:
http://revistaboitata.portaldepoeticasorais.com.br/site/arquivos/revistas/1/luiz%20e%20claudiana.pdf

12 novembro 2014


ANA MAFALDA LEITE**


RESUMO: O artigo caracteriza algumas das tendências da poesia moçambicana publicada no Século XXI e os tópicos desenvolvidos pelos poetas.
OS últimos dez anos surgiram vários livros de poemas de autores moçambicanos, que têm em comum uma aproximada data de nascimento: a década de setenta. Podemos designá-los como Pertencentes a uma Geração, que começa a publicar em revistas e jornais na década de noventa, mas cuja publicação em livro praticamente se inicia no século XXI, sendo que alguns deles não chegaram ainda a fazê-lo, porque as condições editoriais mudaram com a privatização do mercado do livro.
Neste mesmo período, a prática de recitais e de declamação de poemas reuniu e continua a reunir muitos jovens, que amam e escrevem poesia, mostrando o interesse por esta arte, performatizada e dramatizada ao vivo. Assim, a poesia continua muito viva em Moçambique, e alguns nomes se destacam, já com publicação em livro ou em vias de tal acontecer. Animadores culturais, debatendo o estado da literatura do país, movimentando-se entre o desejo do “novo” e a leitura da herança literária dos poetas das gerações anteriores, são seduzidos pela poesia do mundo, deslocando-se para outros lugares experimentais, como a música e as artes plásticas. A prática experimental é híbrida, expressando-se por vários tipos de dicção como, por exemplo, o exercício da poesia, da prosa poética, de uma escrita tipo diário, ou de contos e novelas, parecendo ser uma tónica na escrita dos jovens autores. A qualidade dos textos de Ruy Ligeiro, Domi Chirongo, Dinis Muhai, Jorge Matine, Sangare Okapi e Tânia Tomé, entre vários outros, mostra como o panorama poético do país está em processo de renovação e de mutação.
Há no enquadramento histórico da nação vários acontecimentos que transformam as escolhas temáticas e a enunciação dos autores do século XXI. Entre estas novas vozes e o percurso iniciado em Charrua (que os dois poetas agora “mais velhos”, Eduardo White e Armando Artur, despoletaram), continuado pelos poetas da geração de noventa de Xiphefo (como o caso de Guita Júnior e de Mohamed Kadir) e intermediado pela singular qualidade de escrita de um poeta como Nelson Saúte ou ainda pela publicação diversificada de Rogério Manjate e de Adelino Timóteo – verificamos nestas novas vozes surgidas uma postura de sujeitos em desajustamento entre a sua realidade, e a realidade exterior, como que à margem da sociedade, ou em processo de deslocamento.
São poetas que se enunciam socialmente “desenquadrados”, “excêntricos”, espectadores críticos dos poderes, da corrupção, das desigualdades sociais, do uso indevido das armas, das misérias e fragilidades do quotidiano.
O posicionamento deste novo sujeito poético, comum à maioria das vozes, é de distanciamento e de perplexidade perante a sua sociedade actual. O descentramento do sujeito poético toca o campo psicológico e o sentimental, e a desadequação é também ideológica, cultural e geográfica. Esse deslocamento é também de género, como no caso das novas dicções femininas, em que se revelam, de forma não convencional, a emoção e o desejo de uma mulher sujeito, enquanto diferença e conquista de um lugar individual-social.
A estrutura por vezes dramática de algumas das obras mostra um distanciamento crítico entre o sujeito enunciador, a incompatibilização entre o mundo e o poeta, que se desdobra em actor e espectador do dramático Theatrum mundi que o circunda, exercitando a poesia como uma forma temporal, que ganha estatuto de memória-consciência. Assim, a poesia é uma forma-abrigo, criada para compensar a desfasagem entre o eu e o mundo; a brecha criada entre ser e estar, entre o sujeito e a realidade social, permite ao poeta, homo faber, usar a palavra para criar um mundo alternativo, fazer-se matéria e cosmos verbal.
A desarticulação das utopias retoma em voz off um livro inaugural nesta perspectiva, As Falas do Escorpião de Eduardo White, e envereda por uma escrita organizada numa espécie de exterioridade observadora, narrativo-confessional, às vezes orquestrada pelos sons do “rap” e da poesia musical, em que a denúncia da violência, do mal-estar, é exemplar e fragmentariamente apresentada.
Estes modos enunciativos prendem-se, entre muitos outros factores, após o fim da guerra civil, com o desenvolvimento veloz que a sociedade moçambicana tomou, no advento de uma sociedade capitalizada, pelo desenvolvimento desigual, pela prevalência do surgimento de uma sociedade tecnológica voraz, pelo desenvolvimento de um mercado da cultura, com forte impacto também no campo editorial.
Escolho neste artigo os livros de três autores, apenas como uma forma de iniciar uma reflexão (que irá alongar-se em outro momento) contemplando poetas que perfazem um núcleo irradiador de procedimentos retóricos diversos e de novas propostas temático-formais.
A enunciação do sujeito feminino: escrita do sonho e do corpo na poesia de Sónia Sultuane
Tem a poesia esse dom de fingir todas as verdades, todas as emoções, de se querer do sonho a presença, a totalidade e perfeição. No primeiro livro de poemas de Sónia Sultuane, Sonhos, a poeta percorre o espaço que vai de si própria para uma outra em que se procura e desafia, “como queria ser a outra dos meus sonhos” (S, p.47), feminino sujeito que se quer intenso e pleno no seu sensitivo imaginário, por entre as pausas de um cadenciado ritmo de escrita.
“Menina ainda tornei-me mulher/enfrentei o mundo, e a mim mesma” (S, p.15): um percurso que reflecte os sentimentos e sensualmente os convoca em todas as suas contradições. Desejo, ausência, saudade, ilusão, sonho, distância, alegria, dor. Imaginando através das palavras, as formas que têm os sentimentos, de tanto os sentir. Imaginando o amor, vivendo-o nessas imagens que ele encontra nos muitos espelhos da alma: “Amar-te é algo sem dimensão ou justificação/ é viver sempre na imaginação/…/estar sempre a sonhar” (S, p.28).
No mundo amoroso imaginado pela escrita, a poeta tenta regressar à envolvência da infância e à candura excessiva de ser, “deixem-me no meu mundo doce e infantil, mas meu”(S, p.13), experimentando-se ludicamente, ao brincar com o seu pensamento da emoção, refazendo-o pela distância, inventando-o, sem mágoa, com a alquimia já criativa da palavra: “vou brincando com o meu pensamento,/tentando encontrar-me distante,/ mas presente,/ no que és presente, quando és ausente” (S, p.38).
Torna-se o amador na coisa amada à custa de tanto imaginar, e a beleza procurada está em si, nessa invenção sensorial, que se filtra e ilumina entre ser e escrever, revelando-se devagar. Procura dos versos que levam Sónia a querer achar em si outras imagens de ser, em que o desejo se imagina e fulgura, fonte misteriosa que desprende a emoção. Nesse “sonho desperto” (S, p.38) a vontade de volver a uma imagem múltipla, em que narcisicamente se reinventa, enquanto personagem, tal como ao amor e seus imaginados sentidos, se descobre a poeta em palavra, a desejar ser totalidade, plenitude, sonho desperto em poema: “como queria ser a outra dos meus sonhos, alegre, misteriosamente bela/ e que não vagueia lentamente e triste,/ mas que vive,/ a beleza que arde tão dentro, como queria ser a outra, a dos meus sonhos mais viva ternamente” (S, p.47).
Não é fácil escrever poemas sobre o amor quando esse mesmo tema percorre séculos de escrita na literatura. No entanto, encontramos nestes fragmentos confessionais/poemas, a singularidade narcísica da constituição do corpo, enquanto emoção, sua exposição e questionamento.
Na sua segunda colectânea de poemas, Imaginar o Poetizado, a autora assume quase uma reivindicação da forma de sentir e do ser amoroso, tornando a sua reflexão mais sensorial e menos reflexiva, ao escrever sobre o prazer, a força erótica e a assumpção de um erotismo social, secularmente negado à mulher. Nessa perspectiva, os poemas de Sónia Sultuane, além de muito femininos, são também insinuantemente inconformistas pela temática sensorial e seu desnudamento emocional. Como fragmentos confessionais amorosos, estes textos suspendem-se na intemporalidade – o amor está em todos os tempos e vive sempre no presente – em que a recordação é sempre um acto de presentificação dos sentidos, e a ausência dela, morte e deformação: “quando recorde só os teus olhos, não o teu olhar,/ a tua sombra, não o teu corpo,/ os teus beijos, não o teu gosto,/ os teus ecos, não as tuas palavras, quando todos os sentidos estiverem mortos” (IP, p. 31).
Obsessivamente, como que saboreando pedaços de “nogat”: “deixavas-me trincar o teu doce,/ e a cada mordidela,/sentia os teus lábios de mansinho,/ como podia esquecer-me desse sabor/ a torrado, de cor de canela,/ cor desses teus lábios adocicados,/ onde hoje trinco e mordo,/ à procura desse néctar,/com o mesmo gosto a “Nogat”(IP, p.13) – a poeta tenta descrever o sabor – sentir, feito corpo, na travessia entre o conhecido e o desconhecido, entre desejo, força, arrebatamento, e o medo, que se torna similarmente crescente, como a invasão de uma sombra, que a leva aos patamares da cegueira, zona de provável escuridão: “olho-me, sinto-me profundamente/ vontade, desejo,/ toco-me, entrego-me a mim…/entrego-me a esta escuridão/ mete medo…neste medo” (IP, p.59).
O corpo está cravado em cada um dos poemas, e de cada um deles se evola ou solta um aroma, uma forma de tacto, de paladar, de som, de concretas imagens. Os cinco sentidos são insuficientes para a captação integral do sentir amoroso, corporiamente inebriado. Feminina por excelência, esta forma de implicação da escrita, como corpo, erotiza a letra/som, que se inscreve entre pele e pena, e entre voz e verbo; há um arrebatamento e uma fisicidade da palavra que a torna concreta, sensível.
Palavra poética nascida dos sentidos, que renasce em amorosa vulnerabilidade, exibindo um corpo, que fala, diz, contradiz, vibra, linguagens não codificadas, na sua surpresa de acontecimento, de dádiva e de entrega. O amor que nos poemas de Sónia Sultuane se faz revelação não é apenas um amor da alma, mas do corpo, um verbo feito carne, encarnação. A alma que o sopra é apenas o início do rastilho que acende a explosão de todos os físicos sentidos: “A tua alma, a alma das almas,/ já a viste? Já com ela falaste? Já a sentiste?/ deixa-me rir”(IP, p.41).
O poema “Africana” amplifica o tema da identidade, uma vez que tende a territorializar o feminino. Além desta primeira identidade, e lembrando com alguma ironia o poema “Se me quiseres Conhecer”, de Noémia de Sousa; a poeta assume a sua africanidade: “dizes que me querias sentir africana/ dizes e pensas que não o sou,/ só porque não uso capulana,/ porque não falo changana,/ porque não uso missiri nem missangas,/ deixa-me rir…”. Quer este poema desenhar um percurso identitário de abertura às diferenças de género, de raça, de língua e de cultura, num continente e num país, que se caracteriza também pela coexistência harmónica de tal múltipla diversidade: “pelo sangue que me corre nas veias,/ negro, árabe, indiano,/essa mistura exótica, que me faz filha de um continente em tantos/ onde todos se misturam,/ e que me trazem esta profundidade,/ mais forte que a indumentária, ou a fala,/e sabes porquê?/ porque visto, falo, respiro, sinto e cheiro a África,/ afinal o que é que tu saberás? O que é que tu sabes?” (IP, p.15).
Interrogativa, reticente, dialogal, esta voz percorre os poemas como o sangue nas veias de um corpo amoroso, palavras que são o próprio sujeito em acto de constituição e de revelação: “As palavras que te dou/ são o que sou,/ são o que sinto,/ e como me sinto,/essas são as minhas palavras EU” (IP, p.29).
No Colo da Lua, terceiro livro de poemas de Sónia Sultuane, testemunha uma plenitude de alguns dos atalhos percorridos na actividade artística, simultaneamente espiritualizada por uma introspecção dos sentidos e dos sentimentos. Há nestes poemas a procura de harmonia de um corpo que quase voa, na sua aspiração ao sonho e à verdade, à pureza das sensações, à celebração do desejo. O poema que dá título ao livro, “No colo da Lua”, diz-nos da apetência amorosa, de expansão e abertura do sujeito ao mundo, ao universo inteiro, da vontade da poeta falar às estrelas, se aninhar no colo da lua, o mágico planeta da noite que a enfeitiça, e que transfigura o sonho em realidade:

“Quero olhar o céu/ e contemplar a sua sombra dançando/ na cadência do meu coração,/ mergulhar no seu infinito,/ no reflexo do azul esverdeado pro¬fundo,/sentir o cheiro do mundo percorrer-me as entranhas,/ falar às estrelas prateadas,/ sentar-me no colo da lua amando a imensidão do universo,/ sa¬boreando cachos de uvas pretas adocicadas,/ para poder entregar-me a todos os sabores exóticos,/cantando e suspirando pela vida” (CL, p.11).
A experiência sensorial torna-se quase um acto de levitação graciosa em torno das coisas, corpo alado, cujas asas ou pétalas acariciam o que tocam, e no que é tocado se sentem acariciadas. O corpo vive dessa dualidade de ser por um lado, quase imaterial, é dança, música, sopro, flor, pétala, esvoaçante, como se pode ler em vários poemas, como por exemplo, “Noiva”: “����Danço nas sombras do luar prateado,/ visto-me de sari vermelho bordado com missangas douradas/trazidas de Bombaim/nas árvores imaginárias de vida/ penduro os meus cabelos que esvoaçam na brisa/ trançados com folha de laranjeira e jasmim (...)”(CL, p.12).
O movimento aéreo de leveza retoma Sonhos, o primeiro livro, e leiam-se os poemas “Se Soubesse Voar”, “Gaivota” ou “Liberdade”, como experiências desta volição volátil, que se combina com outro elemento, o aquático, ritualizado em purificação e embelezamento, como se expressa em “Pétalas”: “Banhei o meu corpo com pétalas de rosas vermelhas,/ o cheiro exótico do deserto e o óleo da sedução,/entrei na tenda do desejo/ cheirando a rosas e a incenso da imaginação,/entreguei-me, no meu leito coberta de sedas,/ tão leves como a ilusão (…)” (CL, p.37). Repare-se como os diferentes sentimentos, sejam de desejo, separação ou tristeza, ilusão ou encantamento, são ductilizados e irmanados em subtil e cuidadosa evocação, com imagens harmónicas e sensualizadas.
Associados na descrição, são referidos vários elementos delicados do oriente, que percorrem os poemas de Sónia Sultuane, como os tecidos, os ornamentos, as essências e perfumes, as evocações florais: “No lago das orquídeas deitadas/ banhei-me à conversa com as flores de lótus/ baixinho, diziam-me que os cisnes/dormiam embalados com a música das folhas/ trazidas pela corrente do sul,/ pediram-me que me banhasse tranquila/ pois a brisa do sol,/ embebedava-as com o meu perfume/a noz-moscada e flor-de-lis/ pediram que entrelaçasse-me as águas cristalinas/para que o meu cheiro não assustasse/nas margens do lago as borboletas que nasciam” (CL, p.9).
Ao mesmo tempo, o corpo, entrançado na sua matéria, comunga da sucumlência dos frutos e do inebriamento olfactivo dos odores de diversos aromas. Em apetecidos poemas como “Essa Boca Linda”, “Noites de Prazer” ou “Manjares Exóticos”, se expressa a frutificação do desejo, lembrando o par inicial que, no paraíso, provou o fruto proibido e experimentou a tentação do amor: “Saboreias no meu corpo o gosto do amor,/ nos meus mamilos dou-te o gosto do morango carnudo,/no meu ventre o gosto de abacaxi (…)”(CL, p.5).
Há uma celebração assumida do prazer e do desejo físico, da comunhão dos corpos, que a escrita feminina de Sónia Sultuane assume, voluptuosamente. Inebriado, em “Noites de Prazer”, o sujeito poético confessional, escreve que não se arrepende de ter transformado um sentimento como o amor na grandeza do seu ser: “não me arrependo (....) De não ter seguido e queimado as etapas da vida,/mas de ter vivido a vida conforme as etapas/ e o fogo do meu coração, (...). De não ter sucumbindo à vontade carnal,/mas ter amado com a alquimia dos sentidos,/ de não ter deixado o meu coração/ser uma armadilha,/mas ser a presa dos meus sentimentos (...)”(CL, p.4).
Mas, envolvidos nesta linguagem de tules e sedas esvoaçantes, outros temas perpassam na poesia de Sónia Sultuane: a maternidade, a infância, a igualdade das mulheres, a espiritualidade. Temas ritmados ao som de pautas de música, da valsa ao jazz, com os movimentos sentimentalmente sofisticados do tango: “danço o tango dos sentimentos”, diz-nos a poeta; ou em combinatória irisada de escritas, como num lento jogo de sombras enluarado, regista-se ainda uma sonâmbula evocação de quem nasceu poeta, e se embriaga de poesia e de “poetas invisíveis e imaginários” (CL, p.2).
“Essa Boca linda, suculenta e carnuda, “esse manjar de néctares” vem en¬riquecer, pela enunciação de Sónia Sultuane, a poesia moçambicana de uma emoção de sincero fingimento e de voluptosa feminilidade.
Ser de escrita, deambulação e música na poesia de Chagas Levene
Tatuagens de Estrelas, de Chagas Levene, é um livro em que o sujeito deam¬bula observando paisagens interiores e exteriores, reflectindo, perplexo, pelo estado das coisas na sua terra: fome, desemprego, prostituição, corrupção, violência, droga.
Mas a dicção do sujeito é calma, fragmentário o comentário, por vezes quase como que uma anotação de diário. O curioso título “Nos bolsos levo só poemas”, além da sua carga metapoética, poema por dinheiro, poesia por bens materiais, a indicação do hábito da anotação breve e importante, que o bolso guarda.
Entre o som das teclas da escrita e dos tiros a homologia torna-se abrupta e trágica: “Neste mundo em que as metralhadoras/ batem mais rápido seus textos/ do que uma máquina de escrever/ nos bolsos levo só poemas/ para reacender as estrelas de madrugada” (TE, p.10). Outros poemas como “Bum Bum Bum cada mina mata um/ Lá na terra da mamã tem um campo com minas/ quem pisou morreuuuu (…) (TE, p.66), ou “Ra Tá Tá AKM mata Pá”, introduzem-nos num universo, em que a violência das armas e da morte é absurdamente normalizada no quotidiano, como um jogo infantil, ou ao ritmo da canção. “Querem que eu dance a canção martelada de uma arma?/ querem que eu troque a discoteca por um gatilho?//Os pássaros voam festejam a vida/ na outra esquina está uma arma a gritar// Hoje não ficarei na cidade/ vou correr pelos campos/ para soltar pássaros engaiolados” (TE, p.74).
A violência deste “locus horrendus” é assim tentadamente substituída pela procura de um “locus amoenus”, no campo, nos jardins, junto aos rios, onde o sujeito se desencanta na procura do amor. Confessionalmente reflecte sobre ele em “O Amor é um Rio”, “A ver as Nuvens”, “Canção de Embalar na Estação Seca”, “A Lua a servir-me de Travesseiro”, “Beijos teus só os tive imaginados”, “Tatuar teu corpo de estrelas”, entre vários outros, num misto de ironia e desentendimento, recorrendo a uma escrita entrecortada de uma intelectualizada emoção, quase à maneira melancólica e desprendida de Ricardo Reis. “É preciso amar nem que não haja estrelas// Vamos entrelaçar nossas mãos/correr até ao ancoradouro do rio/ lá as árvores são grandes/ belas para nos fazerem sombra/ vamos lá sentar-nos para ver os barcos/a rasgarem o rio mais que incêndio em capim seco// Teu sorriso ampara como muralha a uma cidade// Nossas mãos uma na outra abrem-me o mundo (…) chovem estrelas dos teus olhos/ cubro-me com esse manto/ e de noite deito-me com a lua/ a servir-me de travesseiro” (TE, p.20).
Ao mesmo tempo há na emoção de Levene uma pureza, quase inocente e credível, na beleza do sonho, que as imagens das estrelas convocam, entremeadamente, em muitos poemas. As estrelas povoam a poesia do autor, enquanto brilho redentor, e quase impossível, da noite estrelada em brilho enlouquecido da tela de Van Gogh, que serve de capa ao livro. Perguntamo-nos, é necessário o brilho na madrugada, porque ela escureceu?
O poeta olha o mundo como no poema “Passarela”, observando: “quando a lua minguada se excita cinzenta/ vem uma rameira criança arranca um cravo/ coloca por baixo do seu grande decote em u/ nisso a lua ilumina-a mostrando seus lábios…” (TE, p.12). Muitos textos evocam o tema da prostituição, relembrando a poesia de Craveirinha, como por exemplo em “Vários Braços tem o Poema”: “Veste-te como puderes Zézinha/ retoca-te antes maquilha-te a rua quer-te invulgar/ desculpa os versos do tempo que se foram (…) teu corpo despido/ um poema antigo (…) (TE, p.27). Congeminando preferir “ser poema a poeta”, a “querer viver com palavras”; diz-nos: “Meu Deus o que é a poesia?// Sinto-me deprimido e com a gaveta a abarrotar de papéis/ tenho uma alma de papel e tinta vinda dos livros que li/ dos livros também tenho a forma do meu corpo/ uma forma de papel” ( TE, p.14).
Pessoano, impessoal, máscara e idealização de ser, o poeta, que usou a heteronímia, em publicações anteriores em revistas, é um ser de escrita por excelência. A singularíssima enunciação de Chagas Levene retoma também um intertexto, que oscila entre os ritmos populares urbanos e musicais de Gabriel o Pensador, por exemplo, o hip hop, sungura, e a incorporação da herança literária de Fernando Pessoa, Armando Artur, Eduardo White.
O poema de abertura “Mtsitso” incorpora formal e tematicamente o poema “Quero ser tambor” e “Karingana wa Karingana” de José Craveirinha e introduz um subliminar intertexto craveirínhico, que perpassa, como linha condutora, por muitos dos seus poemas deste primeiro e também do segundo livro: “Mãe/ esta noite está a erguer-se com estrelas/ muito mais do que aquelas das estórias/ à volta da fogueira// São mais que cem/ são mais que mil/ são incontáveis/ são infindáveis// Mãe/ eu quero uma mbila de papelão/ se não puder ter uma verdadeira/ para tocá-la/ e subir através dos seus sons/ até às estrelas” (TE,p.9).
Em Porto de Luzes, a segunda colectânea do autor, os brilhos entrelaçam-se, num jogo pictural e imagético, com a água, provocando tensão e também harmonia. A escrita é uma “Dança num deserto”, entre viagem, voo e luz, navio, estrela e infinitude, sabendo o poeta que a liberdade se conjuga dramaticamente: “Uma vida trágica/ mas cheia de magia e borboletas”.
Chagas Levene, por entre uma dicção confessional e perplexa, revela a consciência da herança literária recebida, em fogo de escrita – a recepção do facho a que Noémia de Sousa aludia no seu poema sobre Rui de Noronha – agora, na sua poesia ancorada, porto de luzes, que teima em fazer luz escrever, embora com desencanto, essa voz colectiva, nacional, de esperança. Os sentidos do livro retomam alguma utopia ascensional, com metáforas delicadas como nuvens, estrelas, papagaios de papel. A borboleta hieroglífica, em seus trajectos, uma mensagem histórica e literária, a perdida “morada azul das canções”: “Sou tudo o que antes de mim outros foram/ por isso dei-te as borboletas roubadas de colecções raras/ para que compreendas a dor de um ser que já não voa// Antes de mim outros transformaram o silêncio em palavras/e deram-me a morada azul das canções”.
A escrita do poeta torna-se assim, além de lugar de memória e de interrogação, de desejo e de sonho, espaço de reencontro do sujeito com a sua arte poética, espécie de “Pirotecnia”, em que a estrela reverbera, tatuada em papel, e em que a representação do fogo herdado, refeito em escrita, teima oximoricamente em animar o cosmos da subjectividade do sujeito: “A minha tristeza é a felicidade/ com que construo a pirotecnia dos meus poemas”.
A poesia será para Levene uma forma-abrigo – porto de luzes – criada para compensar a desadequação entre o ser e o mundo: “Em meus bolsos existem castelos escandalosos de estrelas!/ Meus olhos há muito que ardem em pântanos,/ como as estrelas em meus poemas./ Agora eu brilho brilho brilho/ como se fosse uma invenção minha”. A fractura existente entre o sujeito e a realidade social leva o poeta a usar a palavra para criar um mundo alternativo, fazer-se matéria e cosmos verbal: “Em meus olhos ainda arde a esperança/ De pegar-te pela cintura como a um poema pela manhã”.
Viagem, memória e loucura na poesia de Celso Manguana
O livro de Celso Manguana Pátria que me Pariu provoca no leitor um singular espanto em ler, de forma simples, escandida em verso breve, uma certeira crítica social, visível logo a partir do trocadilho que o título propõe, representativa de uma geração desencantada com as mudanças do projecto político do país.
Este conjunto de poemas está organizado em duas partes complementares, mas diversas. A primeira organiza-se com um conjunto de poemas, que poderíamos apelidar de epigramáticos, em que a temática é convertida em palavras-chave, nelas condensada por uma técnica de repetições. Os poemas articulam sintacticamente proposições simples e directas, que actuam com o desdobramento paralelístico de uma só figura rítmica, e realizam o máximo de intensidade de significação num mínimo de espaço de verso.
Diria Zenão que a brevidade é um estilo que contém o necessário para manifestar a realidade, adequado para carecterizar o discurso de Celso Manguana. Termos como rigor, despojamento, concisão, substantividade, arquitectura e mesmo geometria servem esta poesia epigramática, que tem o valor da frase inscrita na lápide, recolhendo a moralidade da lucidez crítica anti-épica e anti-heróica. Mas, simultaneamente a uma certa enxutez da asserção, confere-lhe o poeta um ritmo refrânico e cantante pelo uso da rima externa e interna: “Pátria/ quero só uma/ o lugar de/ morte/A nenhuma/ cidadania/ pertenço/ conheço/ três/ lugares/ de exílio/ O amor/A memória/A loucura/ Memória/ percorrida/ loucura/ visitada/ e quantos/ amores// Vou/ para norte/ sempre/ para morte/ Caminho/ sozinho/ não/ despeço/ peço/ lume/ Charro/ aceso/ prossigo/ para/ norte/ obviamente/ para/ morte/ (minha pátria)” (PQMP, p.2).
Ao fazermos uma identificação das palavras-chaves-temas mais significativas do livro, encontramos no primeiro poema o “programa” que orienta esta escrita: pátria, morte e três lugares substantivos de exílio (amor, memória, loucura).
É nesta travessia ou itinerário poético que Celso Manguana começa por intertextualizar o cancioneiro épico da literatura de combate, revertendo a significação utópica em distopia – “Vou/ para norte/sempre/para morte... charro/ aceso/ prossigo/ para/ norte/ obviamente/ para/ morte (minha pátria)”. Invertendo a direcção, de sul para norte, o poema de Celso, talvez por razões objectivas (lembrando a necessidade de revitalizar o norte do país) inflecte um deslocamento e direcciona, no sentido contrário, do centro para a periferia, o percurso de um dos emblemas da poesia revolucionária, que saudava a conquista a partir do movimento norte-sul.
Leia-se, por exemplo, Eu o Povo de Mutimati Barnabé João, nomeadamente o poema “Para Sul” (“Na noite em que passámos o rio Rovuma/ Apontei para Sul com o nariz, com o coração, com os pés...”). Ao colectivo da viagem de conquista do país, sucede agora a individualidade de um percurso pessoal, em demanda dos lugares de “exílio”, de fuga e de achamento de si.
Mas Pátria que me Pariu é também o título de um texto de Gabriel o Pensador sobre a sua terra, o Brasil, recuperado intertextualmente pelo poeta mo¬çambicano. A duplicidade de leitura, cancioneiro épico e texto música, permite ajustar a componente popular da poesia de combate com o ritmo rap.
A pátria “Sonâmbula” (e veja-se a referência implícita ao romance Terra Sonâmbula), poema dedicado aos pais, refere a amarga evidência da fome: “acorda/ com/ fome// Custa amar/ uma bandeira/ assim// Tem/ o/ amargo/ gosto/ do asilo// Almoço/ de pão/ com badjias/ sabe bem/ todos/ os dias?” (PQMP, p.5). Repare-se na ironia da interrogação retórica, que revitaliza a interrogativa crítica do verso craveirínhico, e que surge em vários outros poemas, como por exemplo no poema à memória de Samora Machel e de Carlos Cardoso: “Quanto custa/ quanto custa mesmo/ amar a liberdade? ..Que dizer/ da vida/ quando/ Mesmas/ armas/ libertam/ e/ também/ matam?” (PQMP, p.8)
A demanda da pátria, do sonho, da paz sem armas, da ausência de violência, não se confronta coma realização destes ensejos: “Mas sonhamos/ talvez/ sonhamos// Só a meia-haste// meninos/ regressamos/ a/ Nachingweya/ não/ temos armas// Procuramos a Pátria.” (PQMP, p.8).
Falamos de um itinerário poético, programaticamente caracterizado pela demanda de um mundo substantivo, socialmente amoroso, que faz do poema dedicado à memória de Siba-Siba Macuácua, a confissão do crédito de um amor maior, embora cepticamente desacreditado: “Esta coisa/ de deixar/ que o amor/ a bandeira/ de Junho/ seja o/ amor/ primeiro// E como cega/ todo o amor/ sincero!”.O poeta regressando ao tema, diz mais adiante, em outro poema: “Onde o amor/ florescer/ a pátria pode/ nascer...” (PQMP, p.11).
O ritmo escandido dos poemas, palavra a palavra, na sua simplicidade solene, de efeméride aos mortos, epigramática e refrânica, evoca ainda Zaida Lchongo, e a implicação festiva e social das letras e dos ritmos das canções da artista.
A serialização dos poemas de Celso Manguana, realiza-se pela insistência temática e formal, e o gume da crítica social não se deixa amortecer pela nostalgia, embora o reduto do sonho, os lugares de exílio, entre os quais a infância, criem fortes imagens oníricas: “A infância/ minha outra/ Pátria// Às vezes/ quero/ lá voltar// com sal/ amadurecer as mangas(...)Talvez seja só/ para ver/ o papagaio/ da minha/ meninice/ a voar/ no mar/ no tempo/ e pousar/ no futuro” (PQMP, p.6). São visíveis as referências aos poemas knopflianos de Mangas verdes com sal nesta evocação da infância, gostosamente assumidos numa herança de escrita.
Técnica de repetições, andamento anafórico e paralelístico, reiteração topológica de palavras iguais ou parónimas, repetição de tipo aliterativo, ou em eco, a poesia de Celso Manguana testemunha um certo humor, extraído de uma ágil manipulação de sintagmas directamente extraídos do falar coloquial, assim como afirma que a quase nudez vocabular, longe de ser um pejorativo estético, pode constituir-se num legítimo princípio de estilo, que tem o pudor das exterioridades gritantes e leva ao despojamento.
“Sobre amor/escrevo noutros/ versos” diz o poeta. E a segunda parte do livro cumpre esta afirmação. O ritmo muda, e os textos em prosa poética, mais longos e extensivos, preparam-se para um tom assumidamente lírico e confessional: “Vem de dentro este frio. Do lado esquerdo lado do peito. Como se aplaca este frio que vem do coração?” (PQMP, p.23).
O encadeamento de motivos, o envolvimento do eu lírico e do eu participante, da vivência amorosa e da convivência política, opera-se não por um pacto exterior, mas por dentro, na textura da linguagem, o que lhe confere uma singular eficácia. Assim, a espera do amor, a esperança, o desespero, a diarística amorosa do sujeito emocionado, cruza-se em imagens da fragilidade do mundo social/individual, em simbiose de forte comoção (déficit econó¬mico e amoroso): “Esperar. E esperar. Do chapa-100. Há Chapa-100 que nos leva para o amor?” (PQMP, p.28).


*VIA ATLÂNTICA Nº 16 DEZ/2009
** Universidade de Lisboa

Referência Bibliográfica
LEVENE, Chagas. Tatuagens de Estrelas. Maputo: Ndgira, 2007.
LEVENE, Chagas. Porto das Luzes. Maputo: Ndgira, 2010.
MANGUANA, Celso. Pátria que me Pariu. Maputo: Fundac, 2008.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó, A Magia das Letras Africanas. Rio de Janeiro: Quartet Editora&Comunicação Ltda, 2008.
SULTUANE, Sónia. Sonhos. Maputo: Ndgira ,2001
SULTUANE, Sónia. Imaginar o Poetizado. Maputo: Ndgira,2006.
SULTUANE, Sónia. No Colo da Lua. Maputo: Ndgira,2009.
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In Notícias Quarta, 12 Novembro 2014