Lorenzo
Macagno
RESUMO
Desde o início da luta armada contra a presença de
Portugal (1964) até a independência de Moçambique (25 de junho de 1975), os
debates no seio da Frente de Libertação de Moçambique – Fremilo transitaram
pelo dilema "nacionalismo anticolonial" versus
"socialismo". Tais debates trazem para o centro da discussão os
dilemas que oscilavam entre o postulado de ser a Frelimo uma simples frente
de libertação nacional e, no outro extremo, um Estado/Partido, que mais
tarde se autodenominaria "marxista-leninista", o que possibilitaria,
na visão de seus porta-vozes, a modernização e o desenvolvimento do país. Este
artigo reconstrói esses debates sob o horizonte das contribuições de Benedict
Anderson e analisa as representações em torno da figura "mítica" do
líder nacionalista Samora Machel.
Palavras-chave: Imaginação nacional; Moçambique; Socialismo; Frelimo;
Samora Machel.
Em 1970, depois do assassinato de Eduardo Mondlane1 em 1969, o Comitê Central da Frente de Libertação de
Moçambique (Frelimo) decide nomear Samora Machel como seu sucessor. Na
qualidade de presidente da Frelimo e do Moçambique independente, Samora, como
informalmente era chamado pelos moçambicanos, teve um papel central no processo
de construção da nação. Desde o início da luta armada em 1964, contra a
presença de Portugal, até a independência do país, em 25 de junho de 1975, os
debates no seio da Frelimo transitaram pelo dilema "nacionalismo
anticolonial" versus "socialismo". Neste artigo,
reconstruo, sob o horizonte das contribuições de Benedict Anderson, alguns dos
marcos fundamentais desse debate, bem como suas implicações na construção de
uma imaginação nacional para o Moçambique pós-colonial. No centro da discussão
os dilemas oscilavam entre o postulado de ser a Frelimo uma simples frente
de libertação nacional e, no outro extremo, um Partido-Estado que mais
tarde se autodenominaria "marxista-leninista"2 capaz de trazer, na visão de seus porta-vozes, a
modernização e o desenvolvimento ao país.
Morto em 1986, na queda do avião oficial, em Mbuzini, no
qual viajava – as crônicas apontam que se tratou de um atentado planejado pelo
regime do apartheid na África do Sul3 –, Samora Machel é, até hoje, objeto de admiração e
motivo de disputas e desencontros. A partir do seu trágico desaparecimento, as
narrativas a seu respeito entrelaçam, indefinidamente, o mito com a história.
Esse entrelaçamento acabou produzindo um emaranhado de versões e contraversões,
do qual confluem múltiplas vozes à procura de uma comunidade imaginada – a
nação –, cuja genealogia é, ainda, alvo das mais variadas disputas.
A primeira vez que "vi" e "ouvi"
Samora Machel foi em 1996, quando cheguei ao sul de Moçambique para realizar um
trabalho de campo, cujo objetivo era, a princípio, indagar acerca da influência
da "cultura" portuguesa nos dilemas identitários contemporâneos
daquele país. Durante seis meses travei contato com uma geração de pessoas que
vivenciou a passagem da condição de indígena à de assimilado:
duas categorias que o sistema jurídico colonial contribuíra para criar. Um dos
meus objetivos era, portanto, entender as conseqüências contemporâneas do
chamado Sistema do Indigenato.4 Naquele momento comemorava-se, precisamente, o décimo
aniversário da morte de Machel e inúmeros eventos se realizavam para lembrar
essa data. Nelson Mandela foi convidado por Joaquim Chissano, sucessor de
Samora Machel, para homenagear quem, junto com ele, fora um lutador contra o
regime do apartheid e um amigo incondicional do povo sul-africano. Na
Universidade Eduardo Mondlane, intelectuais e líderes históricos da Frelimo –
tais como Sérgio Vieira e Marcelino dos Santos – reuniam-se para evocar o pai
da nação. A televisão moçambicana apresentou, naqueles dias, um
documentário sob o eloqüente título Samora e o povo, que começava com um
efusivo discurso de Samora Machel, pronunciado por volta de 1980, durante o
período da chamada Ofensiva Política e Organizacional. Tamanho foi meu impacto
com as imagens veiculadas pela emissão que, poucos dias depois, recorri à
Televisão de Moçambique (TVM) para obter uma cópia do documentário. Assim
começava o discurso inicial de Samora Machel:
A nossa luta é contra os saboteadores; a nossa luta é
contra os preguiçosos; a nossa luta é contra os ladrões; a nossa luta é contra
os drogados; a nossa luta é contra os marginais; a nossa luta é contra os
especuladores. A nossa luta é contra aqueles que querem oprimir e explorar o
povo, roubam os produtos, escondem e depois especulam. É, ou não é?
Essas palavras eram pronunciadas com histrionismo e
teatralidade. Tratava-se, sem dúvidas, do que mais tarde alguns analistas
qualificaram como o "estilo", a "essência" e o "brilho
carismático de Samora".5 A partir das evocações provocadas pelo documentário – e
da minha própria pesquisa no terreno – este artigo indaga sobre a relação,
aparentemente indissolúvel e irredutível, entre "Samora e o Povo" e,
portanto, sobre as relações entre o Partido-Estado (Frelimo) e os fragmentos –
vinculados à evocação mítica da figura de Samora – de uma certa imaginação
nacional.
Uma versão historiográfica mais ou menos consagrada6 explica a formação da Frelimo a partir da união no
exílio de três grupos nacionalistas moçambicanos (Udenamo, Manu e Unami). Em 25
de junho de 1962, os três grupos, reunidos em Dar es-Salam, concordam em formar
a Frente, realizando os preparativos para definir um programa de ação para o
mês seguinte (Mondlane, 1976, p. 128). O processo por meio do qual a Frelimo
passou de uma frente nacionalista a um partido "marxista-leninista"
foi explicado, com certo detalhe, no estudo de Sonia Kruks (1987). Seu
argumento procura evidenciar, entre outras questões, que a adoção dos
postulados "marxistas-leninistas" obedecia a um processo intrínseco
vinculado à singularidade e às especificidades da "luta de libertação
nacional". Ou seja, por mais que esses postulados fossem explicitados e
sistematicamente formulados no III Congresso da Frelimo ocorrido em 1977, já
existia um "marxismo tácito" que podia ser detectado, sobretudo,
desde 1968. As conclusões de Kruks contestam os argumentos
"anticomunistas" veiculados pela administração colonial portuguesa
durante a ditadura do Estado Novo, que explicavam a "opção marxista"
da Frelimo em termos de uma simples condição de dependência em relação à União
Soviética ou China.7
Um sintoma indicativo de que a orientação da Frelimo
cairia, cedo ou tarde, nos postulados teóricos do
"marxismo-leninismo" pode ser rastreado em uma famosa entrevista que
Aquino de Bragança8 realizou com Eduardo Mondlane em 1969, pouco antes do
seu assassinato. Nela o fundador da Frelimo admite não existir alternativa que
não a adoção do "marxismo-leninismo", declarando que uma coalescência
de pensamento que atuara durante os últimos seis anos
[...] autoriza a concluir que a Frelimo realmente agora é
muito mais socialista, revolucionária e progressista do que nunca. E é a linha,
agora, a tendência, mais e mais em direção ao socialismo do tipo
marxista-leninista. Porque as condições de vida de Moçambique, o tipo de
inimigo que nós temos, não admite qualquer outra alternativa (Mondlane, apud
Christie, 1996, p. 190).9
Após o assassinato de Mondlane, a direção da Frelimo
sofreu um processo de mudanças radicais. Passou-se a discutir, no interior da
organização, um conjunto de problemas derivados da "questão racial"
como critério de pertencimento e lealdade ao grupo. Aqueles que seguiam o
legado de Mondlane rejeitavam esse critério, argumentando sobre o seu caráter
politicamente reacionário e primário. Entretanto, o grupo próximo a Uria
Simango desconfiava da minoria branca que participava ao lado da Frelimo na
luta anticolonial. Finalmente, em maio de 1970, durante uma reunião do Comitê
Central, Simango foi expulso – e mais tarde fuzilado – sob a acusação de estar
ligado à conspiração secessionista de Lázaro Ncavandame.10 O sucessor de Mondlane seria, pois, um jovem e ativo
militante que, até então, desempenhara um importante papel no comando militar:
Samora Machel.
Como depositário desse desafio, Machel é erigido o novo
porta-voz da nação, mostrando-se um entusiástico formulador de uma espécie de
"marxismo caseiro", adaptado às singularidades da experiência
moçambicana. Nessa formulação, uma das preocupações dos novos porta-vozes da
nação seria a de educar, produzir e criar o novo homem moçambicano. Foi,
de fato, no campo da educação onde se desenvolveram as grandes batalhas
ideológicas de Moçambique independente.
Nos anos posteriores à independência, era comum encontrar
entre as novas elites nacionalistas o argumento de que as dificuldades que
emperravam o desenvolvimento da educação tinham como causa a herança colonial.
Por outro lado, qualquer relato das realizações da Frelimo nesse âmbito teve
como ponto de partida obrigatório a experiência realizada nas chamadas zonas
libertadas,11 consideradas um antecedente ineludível da ação educativa
anticolonial da Frelimo. Isto fica evidente nos discursos Samora Machel, para
quem a luta armada foi a "escola", a "grande universidade"
na qual se formaram os militantes da Frelimo.
Nas zonas libertadas nascia "o primeiro sistema de
educação nacional, que já em 1972-1973 compreendia mais de duzentas escolas
primárias (para uma população de cerca de um milhão de habitantes e com dez mil
alunos só na província de Cabo Delgado), um ensino secundário até a 8ª classe,
um curso de enfermagem, curso de formação de professores primários, além de
infantários" (Nascimento, 1980, p. 33), bem como as chamadas escolas de
treino político-militar em Nachingwea e Tunduru, na Tanzânia.
Na II Conferência do Departamento de Educação e Cultura
em 1973, Samora volta a sublinhar o fato de que os quadros surgem no próprio
processo de luta, não sendo preciso esperar a formação de generais para se
travar batalha. Daí sua famosa palavra de ordem: "aprender a fazer
fazendo". Nas zonas libertadas, essa palavra de ordem pretendia ser uma
realidade.
Cabe lembrar que, imediatamente após a independência,
foram criados os Grupos Dinamizadores (GD), cujo objetivo era mobilizar as
populações ao redor das políticas do novo governo. Além de funções políticas e
administrativas, os GD tinham como tarefa estimular as atividades educativas
nos lugares de trabalho e no âmbito das comunidades. Eles abriam espaços de
discussão e de formação, procurando romper tanto com as
"sobrevivências" do passado colonial, como com o
"tradicionalismo" e o "obscurantismo", duas preocupações
recorrentes no jargão frelimista. Onde os GD atuavam, muitas das formas de
relação entre os chefes tradicionais – régulos – e a população começaram
a desaparecer. Porém, aparentemente, eles não conseguiram penetrar em alguns
sistemas de práticas e crenças africanas mais arraigadas, como determinadas
cerimônias consideradas "retrógradas": rituais fúnebres, ritos de
iniciação, invocação dos antepassados, lobolo12 (Fry,2005). Contudo, o português foi mantido como língua
de unidade nacional, pois, segundo os porta-vozes da Frelimo, esta era uma
maneira de neutralizar as ameaças divisionistas do "tribalismo" e,
assim, poder construir a moçambicanidade.
Não é meu objetivo traçar aqui uma história social ou
política da Frelimo,13 mas simplesmente ressaltar que esse ato inaugural foi
sucedido por um tortuoso processo de traições, purgas e violentas disputas.
Nesse sentido, não é possível aludir à história da Frelimo sem nos referirmos à
sua contrapartida política: a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo). Esse
grupo surgiu em 1976 de uma iniciativa contra-revolucionária no país vizinho,
Rodésia (atual Zimbábue), governado, naquela ocasião, por uma minoria branca.
Segundo William Minter (1994, p. 7), está plenamente comprovado que a MNR (Mozambique
National Resistence, tal como foi inicialmente conhecida a Renamo) foi fundada
pela Organização de Inteligência Central Rodesiana e, a partir dos anos de
1980, de um pequeno grupo transformou-se em uma potente máquina militar. Assim,
quando Zimbábue obtém a independência em 1980, a Renamo passa a ser apoiada
pela África do Sul. O que começou como uma guerra de desestabilização se
transformou em uma das guerras civis mais sangrentas da África.14 Mais uma vez, a Frelimo teve que reforçar seu discurso
de "unidade nacional", sobretudo quando a Renamo pretendeu
"limpar" sua imagem internacional, a de "bandidos armados",
tal como eram conhecidos, assumindo uma linguagem politicamente
"etnicista" em suas reivindicações. De fato, a principal base de
apoio da Renamo estava constituída por grupos lingüísticos Shona, e o
subgrupo Ndau, presentes no centro do país.15 As negociações para um acordo de paz entre a Frelimo e a
Renamo iniciaram-se em 1990 com as "conversações de Roma" e se
estenderam até 1992, quando Joaquim Chissano (presidente da Frelimo e, naquela
altura, presidente também do país) e Afonso Dhlakama (presidente da Renamo)
firmaram, finalmente, o Acordo Geral de Paz. Na primeira etapa dessa negociação
teve importância a mediação do Vaticano, por intermédio da Comunidade de Santo
Egídio e do governo italiano; na sua segunda etapa, esse processo foi mediado
pelas Nações Unidas.16
A "morte da tribo" e a construção do homem
novo
Segundo o Dictionary of political thought,
elaborado por Roger Scruton, a expressão "homem novo", "novo
homem comunista" ou "novo homem socialista" foi usado desde a
década de 1920 tanto por seguidores como por críticos do comunismo soviético,
com o intuito de descrever certa transformação não só na ordem econômica, mas
também no nível da personalidade individual. Essa transformação ocorreria, ou
deveria ocorrer, tanto sob o socialismo como sob a "plenitude do
comunismo" para aonde o socialismo supostamente caminharia. Conforme essa
lógica, ao possuir uma essência histórica, o homem passa a ser, em algum
sentido, uma criatura diferente sob uma nova ordem econômica, de modo que os
valores e as aspirações que o motivavam previamente já não podem ser nem
compreendidas, nem reconhecidas.17
Em Moçambique, a genealogia da noção de homem novo
remonta ao período da luta armada e reconhece, ademais, seus próprios textos
canônicos por meio dos quais procurou se impor. Em algum sentido, a luta entre
a "nova" e a "velha" ordem é a chave para compreender a
idéia de homem novo. Em trabalho recente, José Luis Cabaço defende que a
proposta do homem novo teve seu "laboratório experimental", precisamente,
nos campos de treino que a Frelimo tinha em Nachingwea, visitados por ele em
1974. Foi ali, nos primórdios da luta armada, que a preparação militar era
complementada por uma ideologia que, por sua vez, veiculava novos valores para
a construção de uma sociedade "justa, solidária, altruísta, coesa,
socialmente disciplinada, com uma visão econômica fundada no princípio da
auto-suficiência e dependente essencialmente das 'próprias forças' e da
'imaginação criativa do homem'" (Cabaço, 2007, p. 412).
Em dezembro de 1977, Sérgio Vieira,18 membro do Comitê Central da Frelimo, pronunciou um
discurso na II Conferência do Ministério de Educação e Cultura, publicado no
ano seguinte na revista Tempo, com o título "O homem novo é um
processo". "A revolução triunfa ou fracassa na medida em que emerge
ou não emerge o homem novo", diz Vieira no início do discurso (1978, p.
27). A construção do homem novo passa a ser, decisivamente, um
dispositivo mobilizador, uma idéia força, um objetivo fundamental a ser
alcançado.
Segundo Sérgio Vieira, a primeira vez que Samora Machel
abordou de forma central e sistemática a idéia de homem novo foi em
1970, em um discurso pronunciado na II Conferência do DEC (Departamento de
Educação e Cultura) em Tunduru. Nessa ocasião, afirmava a necessidade de
"Educar o homem para vencer a guerra, criar uma sociedade nova e
desenvolver a pátria",19 sendo imperioso, "depois de demonstrar-nos a
nocividade, quer da educação tradicional, quer da educação colonial, explicar
os objetivos educacionais que nos propomos atingir, em função da nova sociedade
pela qual lutamos" (Machel, 1978a, p. 8).
Samora Machel distinguia, naquele discurso fundacional,
três tipos de sistemas de educação antagônicos, dois dos quais refletiam as
sociedades que, supostamente, deveriam desaparecer e um terceiro orientado para
o futuro, para a nova sociedade. O primeiro sistema que identifica é o
da educação tradicional, no qual a superstição ocuparia o lugar da
ciência. Nesse contexto, a educação visaria transmitir a tradição, erigida em
dogma que se perpetuaria através dos sistemas de classe, dos grupos de idade
(opondo jovens e velhos), dos ritos de iniciação, da poligamia (que condenaria
a mulher a um papel subordinado).
O segundo sistema (que já estaria desaparecendo com o
tradicional) é o da educação colonial, que condenaria o moçambicano a ser um
"pequeno português de pele preta", um instrumento dócil do
colonialismo, cuja ambição máxima seria viver como o colono, a cuja imagem fora
criado (Idem, p. 10). Aqui, Samora seguramente tem em mente a figura do assimilado,
ou seja, um africano que, conforme o vocabulário jurídico-colonial, tinha
conseguido se emancipar de seus "usos e costumes" adquirindo, assim,
valores culturais portugueses. A categoria de assimilado deixou de ser
utilizada sobretudo após a abolição do Sistema do Indigenato, em 1961. Neste
caso, Samora está apenas fazendo uma evocação irônica – "pequeno português
de pele preta" – dessa categoria.20 Finalmente, o terceiro tipo é a "educação
revolucionária para a criação do homem novo". Aquela que visa implantar a
solidariedade entre os homens e é capaz de desenvolver um trabalho coletivo.
Seria necessário, além disso, implantar as bases de uma economia próspera e
avançada, fazendo com que a "ciência vença a superstição". O tribalismo,
a superstição, a tradição atentariam contra a tentativa de
construir a nação moçambicana. Esses elementos operariam no sentido de
uma fragmentação, de modo que: "Unir todos os moçambicanos, para além das
tradições e línguas diversas, requer que na nossa consciência morra a tribo
para que nasça a Nação" (Idem, p. 11). Seria impossível imaginar
semelhante operação de engenharia social e moral sem uma parcela de
tortuosidade e violência. Esse processo de união foi levado a cabo, mais tarde,
pelo Estado/Partido Frelimo que assumiu o papel dirigente e de vanguarda
denunciando os "desvios" doutrinais promovidos pelos "inimigos"
da nação.
Uma nova imaginação nacional
A construção da nação moçambicana como uma
entidade homogênea só é compreensível sob a lógica do enfrentamento a uma outra
entidade que se apresentava igualmente homogênea: a nação portuguesa e suas
pretendidas províncias de ultramar. A tão desejada morte da tribo não passava,
então, de um desejo de união, de uma forma de conjurar a herança colonial. Sob
essa lógica, a nação seria, na imaginação de seus porta-vozes, compacta,
singular, unificada. Porém, esse unitarismo reproduzirá, mesmo que com
conteúdos inversos, a mesma gramática assimilacionista e intolerante em face
dos particularismos culturais, veiculada pelo discurso colonial português. Com
efeito, tal como afirma Michel Cahen "a tradição, não só de unidade do
Estado, mas de sua unicidade (isto é, de homogeneidade obrigatória), não
provém do 25 de Junho de 1975, mas das próprias estruturas coloniais"
(1999, p. 86). Portanto, os problemas do período do pós-guerra estariam
diretamente vinculados àquelas estruturas. Seguindo esse percurso e na busca de
homologias assimilacionistas entre um período e outro, Peter Fry arrisca:
Do ponto de vista estrutural, havia pouca diferença entre
um estado capitalista autoritário, governado por um pequeno grupo de
portugueses "esclarecidos" e de "assimilados", e um estado
socialista autoritário, governado por um partido de vanguarda igualmente
diminuto e igualmente esclarecido (2005, p. 67).
Se, no período colonial, os chamados indígenas deveriam
abandonar – conforme as categorizações da administração colonial – os
"usos e costumes" para passar à categoria de assimilados, no
período independente, as "populações" deveriam abandonar o
"obscurantismo" para se integrarem ao Povo moçambicano.
A luta pela unidade constitui um aspecto central na
construção da nova sociedade e da educação do homem novo. O
depositário e beneficiário desse processo seria uma entidade homogênea, o Povo,21 cuja experiência comum de
"exploração" nasceu durante o colonialismo. Nesse processo, a unidade
deve eclipsar e neutralizar toda tentativa particularista, localista e
tribalista. Essa preocupação aparece formulada, também, em Sérgio Vieira, para
quem a unidade surge como um valor:
Eu deixei de desprezar aquele porque é Changana, porque é
Maconde, porque é Ajawa, porque é Nhungué ou porque é Sena... Começa-se a
entrar nesta noção de que do Rovuma ao Maputo somos um só povo. E não há tribo
grande nem pequena. Não há tribo, somos o povo moçambicano (1978, p. 34).
Samora Machel fala em nome do povo e, ao mesmo tempo,
cria-o, compondo, em seu discurso enérgico e histriônico, uma espécie de
alquimia na qual heterogêneo se transforma em homogêneo. Um só povo, uma só
nação, uma só cultura de Rovuma a Maputo, tal como rezava a recorrente
metáfora geográfica da unidade nacional,22 mil e uma vezes repetida. "Somos nós que temos esse
privilégio, de decidir sobre milhões e milhões de moçambicanos",
discursava, em 1977, para uma imensa platéia de alunos e professores; "o
que nós queremos é o que todos querem. O que nós diremos aqui irá significar a
aceitação do povo inteiro do Rovuma ao Maputo. Neste encontro diremos: não é o
que eu quero, não é o que tu queres, mas sim o que todos nós queremos"
(Samora, 1977, p. 3).
Mas o vanguardismo será amortecido por algumas
instituições locais de participação política: os já referidos Grupos
Dinamizadores, estabelecidos basicamente em todos os lugares de emprego formal
(fábricas, escolas, hospitais, ministérios governamentais) e nas áreas
residenciais das regiões rurais. Os membros dos GD não eram, necessariamente,
membros da Frelimo, mas eleitos em reuniões de massa de trabalhadores ou
residentes, Contudo os GD acabavam funcionando como uma corrente de transmissão
das determinações do Estado/Partido à população.
Esses grupos procuravam, supostamente, construir o
chamado "Poder Popular". Para tanto, foi criada uma rede capaz de
prover a base organizacional de células do partido, quando a Frelimo se tornou
um "partido de vanguarda", iniciando-se um processo de educação e
formação política que, mais tarde, poderia prover os recrutas (Kruks, 1987, p.
250). Segundo Egerö (1992),23 o "Poder Popular" teria a vantagem de ser um
termo pouco eurocêntrico. Ao que parece, essa noção surgiu na mesma época em
Cuba e na África. Na luta da Frelimo, diz Egerö, o termo tem uma conotação
bastante difusa:
[...] por um lado, foi usado para denotar democracia,
como um objetivo ou princípio da luta. Por outro, referia-se às formas
emergentes de organização político-administrativa nas zonas libertadas,
incluindo métodos (democráticos) de tomada de decisões e eleição de cargos
[...] o Poder Popular permanece como um conceito orientador geral, designando
ao mesmo tempo uma série de instituições para a participação popular (1992, p.
44).
Contudo, apesar dos anúncios grandiloqüentes e
esperançosos sobre a implementação do "Poder Popular", a experiência
não foi bem-sucedida, não passando, de acordo com Cahen (1987, p. 141), de uma
completa ficção ideológica: o poder "operário" e
"camponês" continuou sendo definido somente por sua representação
no Partido único.24
Era preciso, contudo, criar o Povo, atribuindo-lhe
uma cultura mais ou menos compacta. A "cultura" moçambicana teve,
pois, que se reinventar por meio de um processo de reagregação de retalhos
regionais, hibridismos e misturas que não reconhecem, necessariamente, uma
herança comum. Em todo caso, supõe-se que o resultado final desse processo deva
ser um novo agregado singular, irredutível aos componentes da herança
portuguesa.
A nação, para poder existir, deveria operar sob uma
configuração cultural sui generis, uma síntese híbrida que representasse
todos os moçambicanos. Em determinadas instâncias, esse processo foi
caracterizado pela tentativa de compor um autêntico collage ou bricolage
cultural. Em uma entrevista, o escritor Raul Honwana25 descreve a forma singular pela qual essa espécie de
operação de engenharia cultural atuava:
Após a independência, tenta-se recriar um novo quadro
folclórico, no qual se incorpora, por exemplo, uma dança tipicamente daqui do
sul, mistura-se com elementos do centro, do norte e, assim, fazem-se várias
misturas. Mas este é um trabalho feito de propósito por pessoas conhecedoras,
por pessoas que foram preparadas como coreógrafos na União Soviética e na
República Democrática Alemã. Então eles faziam todo este arranjo. Misturavam
aquilo que constituía o folclore típico de uma região, misturavam com o
folclore de outra região de modo a constituir aquilo que queriam que fosse
cultura moçambicana.26
A chamada "moçambicanidade cultural" deveria,
portanto, ser criada e recriada em contraposição à herança cultural portuguesa.
"Muitos não sabiam que nós tínhamos cultura", afirma o enérgico
Samora Machel, "mas que a cultura só a tinha o povo português. O que nós
tínhamos eram "usos e costumes gentílicos dos indígenas" (Machel,
1977, p. 9). Os usos e costumes, às vezes tolerados, quase sempre
estigmatizados, constituíram o dispositivo que mobilizou e justificou a empresa
assimilacionista portuguesa, diante da qual a "cultura" moçambicana,
como substantivo singular, constrói-se e inventa-se numa relação de
enfrentamento a esse elemento luso-centrista. Seja sob a forma de uma cultura
portuguesa, seja sob a forma de uma cultura burguesa, essa entidade
homogênea contra a qual se deveria lutar reproduz, sempre, os valores
"decadentes" e "reacionários".
Não há homem novo sem uma nova cultura: é o
que Sérgio Vieira argumenta, sem ambigüidades, ao operar a noção de cultura
como visão de mundo (cultura num sentido holístico), mais próxima do conceito
antropológico do que da concepção iluminista de cultura. Portanto, Vieira
afasta-se, ainda que timidamente, da idéia de cultura veiculada pela narrativa
de Honwana.
Eu falo de cultura e não de folclore. [...] Por vezes
reduz-se a cultura a um folclore... Mas a cultura ultrapassa tudo isso. A
cultura é a dança, mas não só a dança. A cultura é uma concepção do Mundo, é
uma maneira de agir sobre o Mundo. É também a arte. Mas não só a arte. A
cultura é um conceito total e é um conceito de inovação. É uma tensão para o
progresso (Vieira, 1978, p. 38).
Não é possível conceber uma cultura "nova" sem
a existência de uma cultura anterior à qual se opor; não é possível conceber o homem
novo sem antes saber em que consiste o homem velho, cujos vestígios
devem ser erradicados. O processo é sempre relacional. A "fabricação"
da nova identidade, homogênea, compacta, ocorre mediante o confronto com a
velha identidade. Porém, se no âmbito da teoria o homem novo deve
representar uma ruptura qualitativa com os valores da cultura burguesa, da
cultura colonial e da cultura tradicional, factualmente esse processo atua
sobre os indivíduos de maneira complexa. O homem novo é, em última
instância, um produto, cuja pureza nunca se termina totalmente de alcançar.
Descarta-se nessa lógica binária e excludente qualquer
metáfora religiosa, segundo a qual o homem novo é o resultado de uma
espécie de conversão individual de consciência. Não há homem novo sem a
modificação das bases "objetivas", "materiais"'; não é
possível que ele emirja da simples modificação das superestruturas mentais ou
ideológicas. Há, no entanto, entre o homem novo pensado e o homem
novo "real" um viés que só pode ser salvo quando este ser
genérico, universal se torna concreto.
A apropriação sui generis do marxismo
Por trás da noção de homem novo existe uma
concepção da natureza humana e da sociedade que se funda, indubitavelmente, em
alguns princípios elementares27 que Marx e Engels estabeleceram a partir da segunda
metade do século XIX, os quais, na apropriação dos porta-vozes de Frelimo,
assumem a forma de uma autêntica vulgata revolucionária. No entanto, importa
ressaltar que quando Samora Machel era interpelado acerca da apropriação desses
princípios, bem como sobre sua adequada aplicação à sociedade moçambicana, sua
resposta era dirigida no sentido de sublinhar que a teoria, no caso da Frelimo,
surgira da experiência colonial e da própria "prática
revolucionária".
Nascimento (1980) reproduz uma entrevista a Samora Machel
realizada por Iain Christie28 e Allen Isaacman29 em 1979, na qual lhe foi perguntado sobre como divulgar
o marxismo e construir o socialismo numa sociedade formada por uma imensa
maioria de analfabetos. A resposta de Samora Machel:
Esta questão reflete uma concepção errada do marxismo.
Ela sugere que o marxismo é como uma bíblia. "Como eles podem aprender o
catecismo se eles não sabem ler" [...]. Quem faz o marxismo? O cientista
fechado com os seus livros? Uma ciência pertence ao seu criador. Quem é o
criador do marxismo-leninismo? [...]. Seu criador é o povo na sua luta secular
contra os diferentes sistemas de exploração... A guerra popular de libertação,
nossa ciência militar [...] foi elaborada e desenvolvida pelo nosso povo
analfabeto. O marxismo-leninismo não fez sua aparição em nossa pátria como
produto importado ou resultado da simples leitura dos clássicos. Nosso partido
não é um grupo de estudo composto de cientistas especializados na leitura e
interpretação de Marx, Engels e Lênin (apud Nascimento, 1980, p. 25).
Para muitos intelectuais estrangeiros fascinados com a
possibilidade da construção do socialismo em um remoto país da África, essa
resposta não fazia mais que alimentar um imaginário, cujo contexto era, sem
dúvida, mais global. A possibilidade de um "marxismo caseiro", para
utilizar um adjetivo cunhado pelo próprio Iain Christie, questionava, até certo
ponto, certezas e idéias preconcebidas dos que haviam aprendido um marxismo de
gabinete na Europa ou nos Estados Unidos.
Uma resposta semelhante à anterior foi a que recebeu o
sociólogo suíço Jean Ziegler, no início da década de 1980. Ziegler visitou
Moçambique como simpatizante da Frelimo e seu objetivo, entre outros, era
identificar a origem das raízes "marxistas" do Partido. Christie, em
sua biografia sobre Samora Machel, reproduz o diálogo entre Ziegler e o
presidente da Frelimo. "Quando foi a primeira vez que leu Marx?" foi
a pergunta do sociólogo:
"Bem", disse o Presidente, "quando era
jovem costumava ajudar o meu pai, que era camponês". E continuou
descrevendo como os camponeses africanos recebiam preços muito mais baixos
pelos seus produtos que os colonos portugueses, e falou das várias facetas da
exploração que testemunhou em criança. Ziegler, começando a ficar impaciente,
disse: "Sim, senhor Presidente, mas quando leu Marx pela primeira
vez?" "Bem", disse Samora, "mas tarde na vida juntei-me à
Frelimo e tomei parte na luta armada". E continuou falando dos conflitos
políticos dentro do movimento, como a história de Ncavandame e dos novos
exploradores. Não querendo ser metido no bolso com esta evasiva bem clara, o
sociólogo insistiu: "Sim, sim, mas ainda não me disse quando foi a
primeira vez que leu Marx" "Ah, isso", disse Samora.
"Durante a luta de libertação alguém me deu um livro de Marx. À medida que
o lia, apercebi-me que estava a ler Marx pela segunda vez (Christie, 1996, p.
188).
Na base desta concepção, encontra-se a idéia de práxis.
A teoria, neste caso, nasce da prática, da "prática revolucionária"
fundada na "luta de classes" e na própria experiência de luta. Essa
problemática foi evocada à exaustão: o homem não é somente um produto, ele
também produz sua própria história em condições determinadas. Assim, o
determinismo convive, de forma complexa, com o voluntarismo político, cujo
fundamento é a própria experiência revolucionária: aquela experiência, segundo
a qual, Samora Machel, ao ler Marx, estava-o fazendo "pela segunda
vez".
O processo de construção do homem novo seria, sem
dúvida, tortuoso e complexo. A escola cumpriria, portanto, o papel de ser, nas
palavras de Samora Machel, um "centro de combate e de produção da nova
mentalidade, do homem novo" (1981, p. 38), o que também implicaria a
necessidade de instaurar uma "luta ideológica" contra os desvios e as
corrupções, provenientes do "homem velho". O corolário desta luta foi
a teoria do inimigo interno.
A teoria do "inimigo interno"
As versões sobre uma conspiração que ameaçaria as
"realizações revolucionárias" tornaram-se mais evidentes por volta de
1977. Segundo Samora Machel, é nesse ano que ocorre uma "ofensiva
reacionária nas escolas". Na ocasião, a Frelimo já se autoproclamava um
Partido marxista-leninista, denominação cunhada, sobretudo, a partir do III
Congresso. Entretanto, encontrava-se nas escolas, segundo Samora Machel, uma
grande dificuldade para implantar as diretrizes do Partido.
Em fevereiro de 1978, Machel pronunciou um candente e
enérgico discurso contra aqueles que dificultavam o processo de construção do homem
novo nas escolas. Contra quem ele dirigia este discurso? Os adjetivos para
se referir a esses "inimigos" eram recorrentes:
"reacionários", "infiltrados", "agentes
desestabilizadores", "lacaios do inimigo" e assim
sucessivamente. "O inimigo", dizia, "lançou-se abertamente nas
escolas para ocupar posições favoráveis, para injetar o seu veneno"
(1978a, p. 6).
Havia, portanto, um conjunto de atitudes que era preciso
desterrar: a indisciplina, o racismo, o elitismo, o regionalismo, o
chauvinismo. Aqueles denominados "veteranos" encarnavam nas escolas
essas atitudes. "É preciso terminar com o veteranismo. É preciso terminar com
a atitude dos alunos mais velhos, que se recusam a enquadrar nas escolas",
afirmava, e em tom de ameaça, continuava: "Eles constituem o foco de
indisciplina, o modelo de indisciplina. Se nós quisermos descrever o que é a
indisciplina, o liberalismo e libertinagem, apresentaríamos esses alunos.
Encontramos neles o foco" (Idem, p. 19). "E por que é que
ficaram velhos sem freqüentar a escola?", indagava e interpelava.
"Por que é que ficaram velhos e não tiraram o sétimo ano no tempo
colonial?". Nesse discurso, proferido no Pavilhão do Clube Sporting em
Maputo, a platéia se manteve em silêncio. Era o habitual "estilo
samoriano" de interpelar seus ouvintes e, a seguir, arremeter com a
resposta: "Sabem responder esses velhos que estão aí? Viviam onde? Nem
conheciam a porta do Liceu Salazar, nem o machimbombo30 que transportava os alunos para a Escola Comercial. Nós
trouxemos-os aqui, para o estudo, e agora trazem o barulho". Essa moral
revolucionária não admite meias palavras. Quando Samora Machel falava, falava
também o Estado/Partido. É uma moral excludente, a lógica binária do eles ou
nós. "Vamos tomar medidas breves em relação a esses velhos", e
afirmava contundentemente e sem ambigüidades:
Serão expulsos e enviados para o campo de reeducação.31 São esses alunos velhos que tentam isolar os alunos mais
novos que revelam consciência e responsabilidade na sua tarefa de estudar.
Esses alunos velhos reprovam sistematicamente, fomentam os vícios e a corrupção
na escola, mantêm como tipo de relação aluno-aluna a falta de respeito para com
a mulher, falta de respeito pela colega da escola. Espírito de veterano,
veterano de reprovações... Expulsaremos esses. São maus. Devem ir para a
atividade produtiva de outro tipo. Mas não é só expulsar. Primeiro é preciso
punir. Temos o poder, o nosso poder é para criar o homem novo, a nova
mentalidade, novo tipo de relações, de respeito e admiração pelos nossos
professores, porque eles são os nossos responsáveis (Idem, p. 20).
Esse era, pois, o grupo que supostamente veiculava a
mentalidade do "inimigo",32 sendo preciso então "reeducá-lo", extirpar os
vestígios coloniais de sua cabeça. Samora Machel não economizava metáforas
cirúrgicas. "Vestígios!", gritava em um famoso discurso de 1977,
dirigido aos trabalhadores da educação. "Vestígios!", voltava a
repetir. "A cabeça tornou-se base do inimigo", e arrematando: "É
preciso o cirurgião abri-la e fazer uma raspagem para tirar os quistos que
estão lá incrustados. Vestígios!" (Machel, 1977, p. 14).
Com o objetivo de impor uma autêntica campanha pedagógica
e moralizadora, a propaganda da Frelimo chegou a idealizar e a popularizar um
desenho, cuja personagem, Xiconhoca, era o portador de todos os predicados que
definiam o "inimigo". Xiconhoca representava o paradigma do indivíduo
preguiçoso, individualista, bêbado, corrupto e explorador, situando-se,
portanto, nas antípodas do homem novo.
Com o tempo, aquele entusiasmo revolucionário foi
amortecendo. Mais recentemente, ao consultarmos, por exemplo, um documento,
publicado pelo Ministério da Educação em 1991, constatamos que o Sistema
Nacional da Educação tem por finalidade não formar o homem novo, mas,
simplesmente, "Contribuir para a formação do Homem moçambicano, com
consciência patriótica, cientificamente qualificado, profissional, tecnicamente
capacitado e culturalmente liberto" (MINED, 1991, p. 3).
O desencanto pós-colonial
A idéia de "pós-colonialidade", pensada apenas
em termos diacrônicos, como se o sufixo "pós" estivesse autorizando
somente uma sucessão temporal entre o "colonial" e o
"pós-colonial", constitui-se numa armadilha freqüente. Contudo, numa
perspectiva sincrônica e analítica, as discussões sobre a questão pós-colonial
remetem mais ao contexto de um pessimismo teórico ou político (associado,
também, a alguns debates "pós-modernos") do que ao período
imediatamente posterior às independência. Segundo David Scott, uma das raízes
do problema do pós-colonialismo reside no desencanto produzido pela queda do
"socialismo" e pelo triunfo das "relações de mercado"
(Scott, apud Robotham, 1997, p. 393). Em Moçambique, o desencanto
pós-colonial tem seu próprio itinerário.
Passados mais de trinta anos do momento em que a idéia de
"homem novo" começou a ser construída nos discursos de Samora Machel
e de outros notáveis membros da Frelimo, é possível agora enxergar os fatos a
partir de uma perspectiva distinta e de forma menos apaixonada. O analista
contemporâneo encontra-se, sem dúvida, em vantagem após aqueles anos de
efervescência revolucionária. Naquele tempo, as palavras de ordem pareciam
criar imediatamente uma realidade sobre a qual não era possível duvidar.33 O entusiasmo para criar a nova sociedade
neutralizava qualquer dúvida quanto à viabilidade daquele otimismo
revolucionário. Hoje, o termo homem novo soa um tanto antiquado, não
tanto pelas visões de messianismo salvacionista ou pelos ex-abruptos
moralistas que evoca, mas sim porque a sociedade moçambicana foi se
complexificando à medida que aquela fraseologia se tranformava,
progressivamente, em uma cópia desgastada de si mesma.
Muitos intelectuais e militantes não-moçambicanos
entusiasmaram-se com as mudanças que estariam sendo geradas em Moçambique.
Militantes das mais diversas origens – Suécia, Canadá, Estados Unidos, Itália –
igualmente se emocionavam ao ver um líder africano como Samora Machel falando
com uma ênfase inusitada sobre a construção do homem novo. Alguns
cooperantes italianos, no campo da educação, procuraram, inclusive, analisar
aquele processo introduzindo categorias derivadas do pensamento de Antonio
Gramsci.34 Todos eles cumpriram, em seus respectivos países, um
significativo papel de divulgação da "experiência" moçambicana.
Diante dessa espécie de Babel cultural e
lingüística, compartilhada por exilados latino-americanos, cooperantes e
intelectuais europeus, era possível, no entanto, uma linguagem comum, uma mesma
gramática constituída pela esperança de construir o socialismo naquele recanto
da África.
No início dos anos de 1980, Moçambique encontrava-se numa
guerra civil que parecia interminável. Foi quando Samora Machel lançou sua
primeira ofensiva política e organizacional para derrotar,
definitivamente, o "inimigo interno" e acabar com a corrupção nos
locais de trabalho. Em 15 de março de 1983 a Lei 2/79 foi ampliada, passando a
prever a pena capital contra quem atentasse contra a segurança do povo e
do Estado; em 9 de abril realizou-se, no bairro da Liberdade, em Maputo,
um comício de apoio à lei da chicotada, enquanto, em outro bairro, foram
fuzilados publicamente seis indivíduos condenados pelo Tribunal Popular
Revolucionário (Serra, 1997, p. 113). Nesse mesmo ano, começou a vigorar a
chamada operação produção,35 formalmente destinada a evacuar os
"improdutivos" das cidades, enviados, aos milhares, para o norte do
país.36 No plano internacional, tal iniciativa de neutralização
do inimigo interno e externo se consumou com a assinatura do Acordo de
Incomati, em março de 1984. Formalmente, Moçambique e África do Sul passariam a
assumir, a partir desse acordo, uma política de não-agressão e de boa
vizinhança, o que significou para muitos moçambicanos simpatizantes da Frelimo
um gesto de "traição", no qual o país se curvava aos desígnios de uma
África do Sul ainda dominada pelo apartheid.37 De fato, a África do Sul acabou não cumprindo os termos
"pacificadores" do acordo e continuou, portanto, prestando ajuda
militar à Renamo.
Poucos meses antes da morte de Samora Machel, Moçambique
inicia as negociações com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial do
qual recebe, no início de 1985, um empréstimo de 45 milhões de dólares (Cahen,
1987, p. 132). No V Congresso de julho de 1989 (ou seja, alguns meses antes da
queda do Muro de Berlim) a Frelimo abandona o "marxismo". Já a partir
da década de 1990, o país experimenta algumas transformações fundamentais: fim
da guerra civil, implantação da democracia multipartidária e reformas no campo
socioeconômico. Entretanto, e diante das incertezas do presente, a imagem de
Machel era evocada como uma garantia de segurança. Mas isso assumia muitas
vezes a forma de uma narração mítica, que sublinhava sua sagacidade, sua
capacidade de eloqüência, sua coragem para superar as dificuldades e enfrentar
o inimigo externo ou interno e, claro, sua força retórica.
Considerações finais: narrativas da unidade
Não posso elidir da memória os comícios na
Praça da
Independência. Então, a multidão formava o cinto à volta do Velho –
como chamavam, por respeito e afecto, ao Presidente Samora Machel.
De todas as lições, o seu daltonismo marcou-me para sempre. Talvez
a realidade nos tenha enganado. E devolvido, na sua crueldade, a
lembrança de que os homens, afinal, têm raças. Quero acreditar que
ele tinha razão: não havia brancos nem pretos, não havia mulatos nem
amarelos, e sim moçambicanos.
Independência. Então, a multidão formava o cinto à volta do Velho –
como chamavam, por respeito e afecto, ao Presidente Samora Machel.
De todas as lições, o seu daltonismo marcou-me para sempre. Talvez
a realidade nos tenha enganado. E devolvido, na sua crueldade, a
lembrança de que os homens, afinal, têm raças. Quero acreditar que
ele tinha razão: não havia brancos nem pretos, não havia mulatos nem
amarelos, e sim moçambicanos.
Nélson Saúte, "Bandeiras de papel em mastros de
caniço", Público Magazine, 277, p. 34, 25/6/95, Lisboa.
caniço", Público Magazine, 277, p. 34, 25/6/95, Lisboa.
Ao longo dos diferentes momentos da minha estadia em
Moçambique – entre 1996 e 2003 – ouvi inúmeros e diversos relatos sobre Samora
Machel. Buscando, talvez, uma inspiração levistraussiana, seria útil tomar
alguns deles como um conjunto narrativo único que envolve diferentes versões –
ou seja, o mito como o conjunto das suas transformações, o qual, por sua
vez, atua, para além dos conteúdos substanciais das suas "histórias",
como o operador lógico de um tema recorrente: a unidade da nação. Não se trata
aqui de averiguar o caráter supostamente autêntico ou falso dessa ou daquela
narrativa sobre Samora, senão de indagar sobre como uma determinada imaginação
nacional é atualizada e reatualizada, sem solução de continuidade, à medida que
essas narrativas – "lembranças/esquecimentos" – são contadas e
recontadas uma e outra vez. Talvez, um dos conjuntos mais reveladores – que
ilustra, ao mesmo tempo, a natureza complexa da relação Samora e o
"povo" – seja o que coletei no Norte do país, num trabalho de campo
cujo objetivo era analisar a relação entre o Estado (e seus porta-vozes) e as
comunidades muçulmanas da província de Nampula e da Ilha de Moçambique.
Foi por volta de 1975 que Samora Machel,
recém-presidente, viajou ao Norte do país em sua primeira visita oficial. Na
Ilha de Moçambique, Samora fez questão de se dirigir aos muçulmanos e ingressar
na mesquita central. Esse ato ficou marcado na "memória" de muitos
muçulmanos, produzindo uma espécie de incidente-metáfora que, no futuro,
alimentaria um conjunto de narrativas sobre a relação de Samora com os
muçulmanos do Norte.
Samora teria, supostamente, desrespeitado uma regra
sagrada para os muçulmanos ao adentrar na mesquita central da Ilha de
Moçambique: ele não teria tirado os sapatos antes de ingressar no recinto
principal. Contudo, nas várias entrevistas que realizei com diversos
muçulmanos, as versões sobre o incidente foram diversas e contraditórias.
Algumas pessoas inclusive pareciam não se sentir completamente à vontade para
comentar do assunto. A ausência de uma versão clara e convincente sobre o
episódio mostra as tensões entre Samora Machel –porta-voz da jovem nação
moçambicana – e as comunidades muçulmanas. Nesse sentido, a suposta atitude de
Samora constitui um pretexto para pensar tanto os processos de construção de
equívocos como de compatibilidades, e também para pensar as dinâmicas de
atribuição de significados – polissêmicos – em relação à sua figura.
Todos os relatos sobre o episódio na mesquita podem ser
classificados dentro de três ordens. A primeira é a do escândalo e indignação.
Os muçulmanos de maioria macua, seguidores de alguns dos braços das Confrarias
do Norte do país, não tiveram dúvida em se mostrar inconformados com semelhante
atitude de desapreço por parte do primeiro presidente do país. A segunda, à
qual poderíamos chamar de diplomática, reconhece a gravidade da falta, mas
busca amenizar o incidente ao postular que nenhum dos assessores de Samora
Machel lhe avisou acerca dos procedimentos de etiqueta para o ingresso na
mesquita. Esta reação busca absolver Samora de qualquer culpa, depositando todo
o peso da responsabilidade na falta cometida por seus assessores e
acompanhantes imediatos. A terceira foi simplesmente a da negação: o imediato
não reconhecimento do incidente, classificando-o como calúnia.
Também há outro conjunto de narrativas que ilustra a
relação de Samora Machel com os muçulmanos, mas num momento histórico
posterior. Trata-se da famosa reunião realizada em dezembro de 1982 entre a
direção do partido Frelimo e do Estado moçambicano e os representantes das
principais confissões religiosas existentes no país. Desta vez, não se trata de
uma suspeita, rumor ou desconfiança. Ao contrário, é um momento no qual o
Estado-nacional, após anos de implantação de uma política anti-religiosa,
resultado do ideário "marxista-leninista", procura construir uma
relação de cumplicidade com as diversas comunidades religiosas em nome do
"amor à pátria" e da unidade nacional.
Era o momento da já mencionada Ofensiva Política
Organizacional, iniciada em 1980, que provocou debates profundos no partido
Frelimo acerca dos rumos futuros do país. Contra o que Samora chamava de
"inimigo interno" haveria que se impor uma profunda moralização no
seio do governo e, sobretudo, um forte controle no âmbito das administrações
provinciais. Uma das palavras de ordem recorrentes era "organização" e
foi precisamente isto que Samora Machel reclamou aos principais representantes
das comunidades religiosas do país. Com igual veemência, clamava pela
necessidade de fortalecer a unidade nacional entre todos os moçambicanos:
"Moçambicanos de todas as crenças [...] esta Nação é patrimônio comum
[...]. A Nação identifica-se pelos seus símbolos. Perante a história, perante a
cultura, perante a Nação não há católicos, não há muçulmanos, não há
protestantes, não há ateus – há moçambicanos patriotas ou antipatriotas"
(1983, p. 20).
Daquele encontro participaram, entre outros líderes
muçulmanos, o fundador do Conselho Islâmico de Moçambique, Abubacar Ismail
Manshirá,38 conhecido como Maulana Abubacar. No seu
discurso diante o presidente de Moçambique, Maulana Abubacar esboçou, de
início, uma descrição dos motivos que, até aquele momento, dificultaram uma
organização representativa dos muçulmanos "perante o governo, ou perante
as organizações religiosas internacionais" (1983, p. 25). Logo em seguida,
atribuiu tais dificuldades ao período colonial, que tolerou as confrarias
muçulmanas – símbolos, na visão de Maulana Abubacar, de um Islã atrasado –, mas
dificultou a criação de uma organização que comportasse todos os muçulmanos de
Moçambique. Na segunda parte do seu discurso, Maulana utiliza-se de uma
inconfundível linguagem samoriana num esforço nítido de ganhar a simpatia de
Samora ou, pelo menos, sua aprovação. A religião muçulmana, diz Maulana
"sempre recita uma citação do profeta Mohamed, que diz: 'Amar a Pátria faz
parte da crença'" (Idem, p. 26).
A partir daquele momento abriram-se as portas para a
existência de uma compatibilidade moral sob a qual seria possível detectar os
componentes inequívocos do homem novo, mil e uma vezes esboçado pelo
discurso de Samora
Nós, muçulmanos, pregamos sempre estas palavras nos
nossos sermões nas mesquitas. Mas como amar a Pátria? Só fazer propaganda? Não.
É preciso trabalhar, desenvolver a Pátria e para isso é necessário construir
escolas, hospitais, estradas, poços, seminários, orfanatos, etc., e defender a
Pátria contra os inimigos, os bandidos, os ladrões, e lutar contra a
prostituição (Idem, p. 26).
Maulana Abubacar, sem dúvida, sabia como agradar Samora.
A última parte do discurso, porém, compõe-se de reclamações e reivindicações
dirigidas ao governo que, em traços gerais, apontam para o favorecimento do
ensino do Islã e a capacitação educacional de jovens muçulmanos nascidos em Moçambique
em países como Líbia, Iraque, Arábia Saudita e Egito.
No Norte de Moçambique – na província de Nampula – tive a
oportunidade de coletar um relato instigante acerca desse discurso de Maulana
Abubacar. Não contradizia o conteúdo substancial do discurso publicado pelos
próprios órgãos de Frelimo, mas acrescentava uma suposta reação de admiração
que Samora Machel tivera após ouvir o dirigente muçulmano. O relato me foi
contado pelo então subdelegado provincial do Conselho Islâmico em Nampula:
Ele [Samora] gostou bastante da apresentação de Maulana
Abubacar. Naquele encontro Maulana fez uma intervenção acerca da ideologia do
Islã incorporando os temas que a Frelimo, nessa altura, tinha por lema:
Unidade, Trabalho e Vigilância. Frelimo insistia com essas três consignas para
que o povo estivesse organizado. Então, Maulana Abubacar retomou esses temas e
apresentou-os, usando o Alcorão e os Hadiths. Samora gostou bastante e achou
que havia uma certa afinidade entre a política oficial e a filosofia islâmica.
Então, a partir dessa data ele [Samora] simpatizou muito com o Conselho
Islâmico de Moçambique e houve maior abertura do governo para que o Conselho
pudesse expandir em nível de todo o país.39
No contexto de um país
multilingüe, plurireligioso e pluriétnico, essas lembranças – e narrativas de
"unidade" – possuem uma força particular. Benedict Anderson (2005)
ressaltou que para a nação existir como comunidade imaginada, é preciso que a
recordação real seja substituída por uma recordação mítica. Em outras palavras,
o surgimento de uma nova consciência nacional exige também uma nova forma de
amnésia. A guerra entre Frelimo e Renamo, as violentas medidas "revolucionárias",
como a implantação da Operação Produção e a construção de prisões,
eufemisticamente denominadas Centros de Reeducação, entram nessa lógica de
recordação/esquecimento. Sob tal premissa da imaginação nacional, a guerra
ocorrera, no final das contas, entre "irmãos" que se consideravam
inimigos – e não entre "proto-nações". Essa perpétua invocação – e
evocação – da figura de Samora Machel contribui para criar e recriar a ilusão
da confraternidade e a renovação indefinida do mito tranqüilizador do fratricídio.
Nos anos de 1990, Moçambique consolida sua política
econômica sob os auspícios do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional
(Bowen, 1992; Simpson, 1993). As "novas gerações" do Sul do país –
funcionários, intelectuais, empresários, comerciantes – não parecem se
incomodar com este novo rumo. Entretanto – e seguindo as palavras de Iraê
Lundin (1995, p. 440) – o partido Frelimo resta polarizado entre os
"velhos" políticos da Assembléia da República e os "novos"
tecnocratas do governo. Apesar das idas e vindas da política local, a figura de
Samora Machel continua a ser reinventada pelos porta-vozes da nação, por meio
dos grandes rituais nacionais, das celebrações de culto aos mártires da pátria
e, sobretudo, dos murmúrios que ecoam na cidade baixa (o centro de
Maputo): "na época de Samora não havia corruptos, como hoje";
"se Samora vivesse não haveria tanta delinqüência em Moçambique";
"Samora sempre dizia 'cabrito come onde está amarrado', pois bem, temos
que terminar com o cabritismo na política" (ou seja, com a corrupção). Eis
algumas das frases que ouvi em 1996. O espectro do "camarada Samora"
parecia, assim, estar mais vivo do que nunca. Sem dúvida, essas narrativas
contribuem para nos fazer recordar que, apesar de tudo e uma vez mais, "de
Rovuma a Maputo" há um só povo, uma nação, "todos moçambicanos".
Entretanto, a comunidade imaginada continuará a exigir a sobreposição
dessas lembranças – e ilusões de unidade – com outros esquecimentos, pois essa
é a condição de existência que toda nação – de forma inconsciente, diria
Benedict Anderson – reclama para si. Por fim, e voltando à epígrafe inicial,
essa condição imaginativa está singularmente condensada nas próprias palavras,
talvez um tanto melancólicas, do escritor moçambicano Nélson Saúte: "Quero
acreditar que ele [Samora] tinha razão". Tal evocação veicula, mais uma
vez, a constatação de que "vontade" e "crença" são, também,
elementos constitutivos e intrínsecos da imaginação nacional.
Notas
1 Eduardo Mondlane nasceu em 1920. Estudou com
missionários suíços no sul de Moçambique. Em 1949, conseguiu, com ajuda do
Conselho Cristão de Moçambique, matricular-se na Universidade de Witswatersrand,
na África do Sul, sendo expulso pelo regime do apartheid alguns meses
depois. Em 1950, permaneceu por um breve período na Casa dos Estudantes do
Império, em Lisboa. Em 1951, partiu para os Estados Unidos, onde concluiu o
doutorado em 1957. Após trabalhar como professor universitário e como consultor
das Nações Unidas sobre assuntos africanos, decidiu, com o apoio de Julius
Nyerere, formar em 1962 a Frelimo. Para mais detalhes sobre a biografia de
Eduardo Mondlane, ver os trabalhos de Teresa Cruz e Silva (1992, 1999, 2001).
2 As aspas são utilizadas no sentido de relativizar esta
autocategorização processada no interior da própria Frelimo pelos seus
porta-vozes. Do ponto de vista de uma análise externa, o assunto requereria uma
longa reflexão acerca do tipo de apropriação prática e teórica que, de fato,
fez a Frelimo desses princípios. Sobre o assunto, ver, entre outros, Darch e
Hedges (1998); o estudo pioneiro de Thomas H. Henriksen (1978). Entre os
trabalhos mais recentes, ver Simpson (1993); Kruks (1987); também a reveladora
entrevista de Joe Slovo com Marcelino dos Santos: "Frelimo faces the
future" (1973). Por último – e principalmente – ver o capítulo
"Marxisme et mozambique" em Cahen (1987) e a tese de doutorado –
ainda inédita – de Brito (1991).
3 Na ocasião, uma Comissão da Procuradoria Geral de
República foi criada para apurar os fatos. Em 1996, o jornal Renascer de
Maputo publicou uma polêmica entrevista com Humberto Casadei, um grande
admirador de Samora Machel, cujo principal argumento, a partir de um inquérito
"pessoal", veicula a idéia de que o "acidente" não poderia
ter sido provocado sem o envolvimento interno, ou seja, sem a participação de
"mãos moçambicanas" ("Quem matou Samora Machel?", Renascer,
Maputo, out. 1996).
4 Mesmo que a divisão jurídica "indígenas" e
"não indígenas" tenha começado a se cristalizar já no Código de
Trabalho de 1899, foi em 1928 que o código do Indigenato adquiriu uma
sistematização definitiva, sendo abolido apenas em 1961.
6 Um exemplo desta historiografia "consagrada"
são os manuais História de Moçambique, elaborados e editados pelo
Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane.
8 Aquino de Bragança foi jornalista, militante histórico
da Frelimo e conselheiro particular de Samora Machel. Faleceu, junto com o
presidente de Moçambique, no referido "acidente".
9 Não é meu objetivo neste artigo analisar
pormenorizadamente as diversas fases pelas quais atravessou o pensamento
político de Eduardo Mondlane. Em relação ao dilema entre a obtenção de uma
independência negociada e uma independência obtida através da luta armada,
podemos evocar as palavras de Sansão Mutemba: "Eduardo Mondlane... era uma
pessoa contra a guerra e, portanto, contra todas as violências. Mesmo quando
ele se conscientizou que o futuro de Moçambique teria de ser a independência, a
idéia de alcançá-la apenas através de conversações com o Governo Português
dominou-o durante anos seguidos. Só quando a luta armada surgiu como a única
alternativa possível, só quando todas as outras possibilidades se frustraram é
que ele aderiu e se engajou decididamente nessa via com o seu povo"
(entrevista com Sansão Mutemba: "Mondlane, o homem e a revolução",
com textos de Mota Lopes, Tempo, Maputo, 227, p. 7, 1975).
10 Lázaro Ncavandame era um comerciante maconde que tivera
relativo sucesso com a organização da sua cooperativa – a Sociedade Africana
Algodoeira Voluntária de Moçambique. Apesar das desconfianças de algumas
lideranças da Frelimo em Dar-es-Salam, foi convidado, no final de 1962, para
ocupar o lugar de regional "chairman" na província de Cabo
Delgado. O ápice de seus conflitos com a Frelimo data de 1968, momento no qual
Ncavandame cogita a possibilidade de uma independência somente para Cabo
Delgado, província do norte do país. Acusado de oportunismo e traição,
Ncavandame é expulso da organização.
11 Assim eram denominadas, durante a luta armada, as áreas
que a Frelimo conseguia controlar e tornar "livres" da presença
colonial portuguesa. Entre 1967 e 1969, já se encontrava "liberada" a
faixa norte do país, na zona limite com a Tanzânia. Esse processo foi se
estendendo a partir do norte até chegar à província de Tete, entre 1970 e 1972.
12 O lobolo é uma instituição amplamente difundida
nas sociedades – patrilineares – bantus e consiste numa compensação
nupcial que a família do noivo oferece à família da noiva no momento do
casamento.
13 A bibliografia, sobre esse tema aumentou
consideravelmente nos últimos anos. Entre as reflexões realizadas pelos
próprios moçambicanos, ressaltamos o artigo de Brito (1988). Sobre o processo
de gestação das idéias "protonacionalistas" e o surgimento de
uma consciência política no sul de Moçambique, ver o livro de Teresa Cruz e
Silva (2001). Entre os trabalhos recentes, ver o artigo de Cahen (2005).
14 Um dos trabalhos mais instigantes sobre essa guerra foi
realizado pelo antropólogo Geffray (1990). Nesse livro, Geffray pretende
demonstrar que, para além dos apoios externos à Renamo, havia, no norte de
Moçambique, um descontentamento real das populações rurais em relação à
Frelimo, que teria sido capitalizado pela estratégia desestabilizadora da
Renamo. Para uma crítica ao livro de Geffray, ver o artigo de O'Laughlin
(1992). Um artigo mais recente sobre esse marcante livro foi escrito por
Florêncio (2002).
15 Para aprofundar esta questão, ver o artigo de Hall
(1990). Michel Cahen (2004) retrata os bastidores da campanha eleitoral da
Renamo nas primeiras eleições democráticas multipartidárias de Moçambique, em
1994.
16 Sobre o desenvolvimento do processo de pacificação e
posterior implantação de um sistema democrático multipartidário, consultar o
livro Moçambique. eleições, democracia e desenvolvimento, editado por
Brazão Mazula, 1995, Maputo.
17 Ver a entrada correspondente a "new
man" em Roger Scruton, A dictionary of political thought,
Macmillan Press, Londres, 1982, p. 322.
18 Sérgio Vieira ingressou na Frelimo quando ainda era
estudante universitário na Europa. Mais tarde, foi ministro de Segurança e
diretor do Banco Central do governo Samora Machel. Nos anos de 1990, foi
diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane e
deputado pela Frelimo.
19 Esse discurso foi publicado em 1973 pelo Departamento de
Informação e Propaganda da Frelimo no segundo Caderno da coleção "Estudos
e Orientações". Foi republicado em 1978 pelo Departamento do Trabalho
Ideológico da Frelimo. De acordo com o prefácio da segunda edição: "O
estudo 'Educar o homem para vencer a guerra, criar uma sociedade nova e
desenvolver a pátria' ocupa um lugar de particular importância [...]. Ele foi
efetuado pelo Presidente Samora Machel com o objetivo de definir a natureza da
Educação e da Cultura revolucionárias e suas características de ruptura com os
sistemas de Educação das sociedades tradicional-feudal e colonialista"
(1978, p. 3).
20 Alhures, analisei a complexa construção jurídica de
"assimilado" em contraposição à noção de "indígena"
(Macagno, 2001).
21 Tal como anuncia Verena Stolcke (2000), dos três
elementos constitutivos do Estado moderno (um território, um governo, um povo),
circunscrever o "povo" demonstrou ser a questão mais problemática. O
mesmo processo foi detalhadamente abordado por Etienne Balibar (1991) nos termos,
por ele denominados, "produção do povo".
22 Luis C. de Brito (1991), em sua tese de doutorado,
aplica uma distinção entre o termo "nacionalismo", concernente ao que
politicamente já é nacional, e a expressão – por ele cunhada –
"nacionismo", que, no caso de Moçambique, traduz social e
culturalmente um "nacionalismo do Estado", ou seja, o desejo de uma
elite minoritária de proceder à rápida "fabricação da nação". Nesse
sentido, segundo Cahen (1995, pp. 87-88), um dos motivos pelos quais essa elite
minoritária foi capturada por um certo marxismo corresponde à sua
"necessidade de criar um Estado forte, lugar da sua reprodução social,
meio da criação rápida de uma nação moderna de tipo européia e jacobina,
negadora da etnicidade", de modo que esse certo marxismo,
"na sua versão staliniana, era operante para exprimir esse
nacionalismo".
23 Bertil Egerö é uma cientista social de origem sueca,
cujos primeiros contatos com a Frelimo datam da década de 1960. Colaborou como
"cooperante" com o governo moçambicano entre 1978 e 1980, na Comissão
Nacional de Plano. Sua tarefa inicial consistia em participar dos preparativos
para o primeiro recenseamento da população em Moçambique independente, marcado
para 1980, fato que lhe permitiu percorrer várias regiões do país.
24 Segundo Cahen, "O 'poder popular' é tão somente uma
ficção ideológica e nunca foi definido de outro modo que por sua representação
pelo partido. Com a exceção significativa de associações patronais e de
pequenos produtores, nenhuma organização era independente do partido. Elas
possuíam todos os seus dirigentes nomeados por ele e tinham como única tarefa
transmitir sua linha neste ou naquele setor da população" (1987, pp.
73-74). Para um aprofundamento desta crítica, ver também Cahen (1985).
25 Raul Honwana Jr. é escritor e professor. Filho de Raul
Bernardo Honwana e membro de uma família de várias personalidades que se
destacaram na vida pública moçambicana. Aos 5 anos de idade, perdeu a visão em
conseqüência de uma meningite. Aprendeu os primeiros rudimentos de Braile aos
13 anos e acabou por se formar em Filosofia na Universidade Clássica de Lisboa.
27 No caso dos discursos de Frelimo, esses princípios podem
ser rastreados em alguns textos básicos, tais como A ideologia Alemã, A
origem da família, a propriedade privada e o Estado e, sobretudo, o prefácio
de Contribuição à crítica da economia política.
28 Iain Christie nasceu em 1943, em Edimburgo, Escócia.
Trabalhou para jornais britânicos de 1958 a 1970, quando foi viver na Tanzânia,
onde trabalhou como jornalista até 1975. Passou a viver em Moçambique a partir
de 1975; trabalhou na agência de informação nacional, atuando, depois, na Rádio
de Moçambique como chefe do serviço externo. Tornou-se cidadão moçambicano em
1996.
29 Historiador norte-americano e conhecido
"moçambicólogo". Allen Isaacman escreveu, junto com Barbara
Isaacman, The tradition of resistente in Mozambi que: anti-colonial activity
in the Zambesi Valley, 1850-1921 e Mozambique: from colonialism to
revolution, 1900-1982. Também realizou valiosa
entrevista com Raúl Bernardo Honwana – pai de Raul Honwana – publicada em
português sob o título: Raúl Bernardo Honwana: memórias.
31 A história e a sociologia daquilo que a Frelimo
eufemisticamente denominava "campos de reeducação" era, ainda, uma
tarefa a ser realizada.
32 Omar Ribeiro Thomaz (2004) analisou, com novas
contribuições etnográficas, a construção da categoria de "inimigo" em
Moçambique, mas, dessa vez, aplicada às comunidades de origem indiana,
compostas na sua maioria por comerciantes bem-sucedidos, vulgarmente chamados
de "monhés".
33 O livro pioneiro de Michel Cahen, publicado em 1987
talvez seja uma exceção a esse respeito. Nas vésperas de Moçambique reconhecer
abertamente sua entrada numa "economia de mercado", o autor consegue
demonstrar que, na verdade, a natureza "socialista" do regime da
Frelimo era mais ideológica do que real. Apesar dos grandes discursos
"rupturistas" de Samora Machel, a continuidade estrutural com o
período colonial foi marcante, sobretudo no que concerne à relação com a África
do Sul: "dependência em relação à África do Sul estava a tal ponto
impressa nas estruturas mesmas do Moçambique colonial que a natureza das
ligações a se estabelecer entre a República Popular independente e o país do apartheid
estavam estreitamente ligadas à natureza de classe da independência de
Moçambique (Cahen, 1987, p. 105).
35 Tal como explica José Luis Cabaço, a Operação Produção
"consistiu no envio forçado de cidadãos considerados improdutivos da
cidade para as áreas rurais, em particular, para a província do Niassa"
(1995, p. 92). A Operação ocorreu entre julho e setembro de 1983. No entanto,
Luis de Brito ressalta que a idéia dessa Operação vinha sendo discutida bem
antes do ano da sua implementação, pois o desemprego e as migrações em direção
a Maputo começavam a preocupar os dirigentes da Frelimo. Segundo Brito, essa
degradante situação derivava, em grande medida, da "partida massiva dos
colonos e a tensão das relações do Moçambique independente com a África do Sul
e a Rodézia haviam provocado uma onda de desemprego em certos setores da
economia [...] com a chegada de novos desempregados, a situação piora. O afluxo
à Maputo de um grande número de trabalhadores rurais [Fr.: ruraux] originários
das províncias do sul de Moçambique foi o resultado da súbita interrupção, no
momento da independência, do recrutamento pelas minas sul-africanas. A partir
de 1980, esse movimento foi ainda acelerado pelos efeitos da guerra conduzida
pela Renamo nessas regiões" (1991, pp. 235-136), de modo que essa
"questão foi abordada pela primeira vez quando da reunião nacional dos
comitês dos distritos (Mocuba, 16-21 de fevereiro de 1975). As recomendações
dessa reunião preconizavam a adoção de 'medidas políticas e administrativas'
para enfrentar o problema" (Idem, pp. 234-235).
36 Segundo Brito, "no imaginário dos dirigentes da
Frelimo, aqueles que eles consideravam 'improdutivos' (desempregados e outros)
eram os preguiçosos, os bandidos, os criminosos. Assim [...] o objetivo foi
também o de eliminar a 'ameaça' que representava, nas grandes cidades, uma
camada social potencialmente perigosa e suscetível de apoiar a Renamo"
(1991, pp. 242-243, n. 30).
37 Conforme a minuciosa análise que Michel Cahen realiza
sobre as causas e as conseqüências do Acordo de Incomati, não foi ele, como
muitos interpretaram apressadamente na época, um resultado extremo do
"pragmatismo marxista" da Frelimo, mas, sim, uma conseqüência
previsível da própria natureza da dependência de cunho capitalista de
Moçambique em relação à África do Sul. "A Frelimo não mudou de linha após
Incomati; apenas enfrentou uma situação resultante do colonialismo, que ele
próprio [o partido Frelimo] não tinha conseguido destruir: o jogo clássico das
leis do mercado" (Cahen, 1987, p. 94), que se traduziu num "processo
crescente de liberalização da economia em bases neo-coloniais" (Idem,
p. 35).
38 Nascido em Inhambane, Maulana Abubacar estudou durante
onze anos na Arábia Saudita formando-se em direito islâmico (Sharia) pela
Universidade Islâmica de Medina.
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* Este artigo é uma versão ampliada e modificada de um
trabalho intitulado "Lendo Marx 'pela segunda vez': experiência colonial e
a construção da nação em Moçambique", apresentado numa mesa redonda
coordenada por Armando Boito Jr. no IV Colóquio Marx e Engels, em novembro de
2005, na Unicamp. Agradeço a Angela Lazagna pela leitura, comentários e
revisão, bem como pela sua disponibilidade para me colocar em contato com a
tese de doutorado de Luis Cerqueira de Brito sobre o papel do
"marxismo" na construção do Estado-nacional em Moçambique.
2 comentários:
Vejam que neste artigo Eduardo Mondlane é considerado fundador da FRELIMO. Confronte esta tese com as entrevistas de Guidion Falhuza e Jaime Ghamba no Arquivo do Blog.
Prezado Jorge, apenas para felicitar sobre o escrito. Deveras impressionante e com muito aprendizado por resgatarmos e quiçá implementarmos na chamada nova era...
Proponho desde ja que apresente uma paper na Conferencia que a UP Nampula vai promover no dia 17 de Outubro - sobre as ideais Samorianas.
Qualquer coisa, disponha-se 846818290
Abraços...
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