NDEKENI: A HISTÓRIA DE UM SONHO
“O nosso continente está cheio de
estórias ansiosas por serem contadas. E elas estão a chegar – já se lê.”, Ondjaki.
VEJO em Alexandre Chaúque, o Bitonga
Blues se quisermos, um cronista de que Moçambique não tem igual; um verdadeiro
destemido em matéria de trançar o verbo; aquele que sabe multiplicar os
sentidos, qualificar ou desqualificar os significados, comprimir a ideia de um
certo contexto, dramatizá-lo e formular novas ideias a partir de um universo
comum.
Esta introdução quase a tender
influenciar o leitor com a minha admiração a este músico, jornalista, cronista
e contador de estórias, agora autenticado pelo seu livroNdekeni, (AEMO,
2012), merecidamente vencedor do prémio literário 10 de Novembro, da cidade de
Maputo (edição 2011).
Trata-se, na minha eleição, de uma
novela que nos submete ao cúmulo da posse dos sonhos e tradição (ou
superstição?). Uma viagem ao horizonte comum no quotidiano moçambicano de sonho
de cidade, por um lado e, por outro, o poder das raízes culturais através da
azáfama dos deuses gladiadores dos vivos. Aliás, esta última ideia, dos “deuses
protectores dos vivos” leva-me a recorrer à uma resposta do escritor Mia Couto
ao Michel Laban quando indagado sobre a morte que aparece frequentemente nos
seus contos como na literatura latino-americana.
Com um mar de razões, Mia Couto,
escolheu a que coincide com a história deNdekeni, “a morte é
simplesmente uma mudança de estado: os mortos não são arrumados num lugar
inacessível, eles ficam presentes no nosso seio(…).” (LABAN, Michel.
Moçambique: Encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro António de
Almeida, 1998. v. III. p. 1026)
É, então, nesse diapasão que navega
Ndekeni, personagem principal da obra com mesmo título, que mais do que o
próprio autor faz durante toda a obra “homem alto, barba por fazer, e plena
juventude, pronta para ser entregue ao trabalho e, se for necessário, à
degradação”, não se lhe pode atribuir outras características.
Em Ndekeni, os mortos aparecem, se
não permanecem, em todo o percurso da narrativa, acompanhando o personagem
principal. Pode-se até, entender o livro como o presságio do poder dos mortos e
da respectiva superstição a que nos leva essa temática. Alexandre Chaúque, ao
estilo característico (tendo em conta o seu livro Bitonga Blues, uma colecção
de cónicas e devaneios publicados em vários jornais), não limita o leitor a
vaguear apenas pelos caminhos que trilha o Ndekeni, faz com que, durante a
leitura, haja um exame de introspecção de quem lê, uma escolha que pode ser
consciente do contador ou a libertação da própria estória, como também defende
a escritora brasileira Ana Paula Maia quando se refere à fala de personagens em
livros.
De acordo com a romancista
brasileira, os diálogos em textos narrativos são capazes de fazer fantásticas
revelações que, inclusive, chegam a surpreender o próprio autor da estória. E
Chaúque, avança nessa ideia, sem deixar de invadir-se das acções de Ndekeni, ao
não dá-lo o referido espaço para que este fale livremente. Uma atitude que vai
ao encontro do cronista que é, Bitonga Blues, o contraste do bom jornalista.
As incursões de Ndekeni, começam
quando este põe os pés, pela primeira vez, na cidade de Maputo, onde através da
Junta (terminal de transportes interprovinciais e internacionais), anuncia-se
como um novo habitante dessa cidade que é estranha para si, mas que pode ser o
lugar que sonhara, naquele sono profundo em Mocodoene, província de Inhambane,
onde nasce. Ndekeni sonhara que “dormia todos os dias como uma criança,
montando sobre o dorso de leões, abraçado à farta juba, rasgando florestas e
savanas e estepes. E os felinos corriam com ele ao encontro da luz, que se via
ao longe. Sonhava com as águas límpidas, tranquilas, com as ondas leves, que o
rio da sua terra não tinha e, um dia desses, quando despertou do sonho,
sentou-se na cama de estacas de madeira e agradeceu aos seus espíritos e disse,
eu vou sim! Estou farto desta modorra toda, prefiro morrer queimado pelo veneno
do néon, do que sucumbir esmagado por este tédio de merda”. (CHAÚQUE,
Alexandre. Ndekeni. AEMO, 2012, p. 7)
A partir daí, os factos que se
sucedem com o jovem ficam entregues à estranhos fenómenos, a começar pela chuva
torrencial que fazia no dia da sua chegada, mas o propósito que o traz, como
introduz o narrador, faz com que ignore o ditado dos sábios “quando chove é
porque algo de importante vai acontecer”.
A partir dessa introdução que deixa
a obrigação de prosseguir com a leitura, a obra mostra a sua tendência
misteriosa, parabólica e intuitiva, como se quem a escreve, obedecesse o
comando dos mesmos deuses que acompanham o personagem principal.
A chuva que cai nesse dia e noutros
subsequentes é mais do que um acontecimento natural , é encarado pelo
personagem como a possível fala protestante dos deuses que, por exemplo,
apontavam que o el dourando para a busca dos sonhos, não era Maputo, aquela cidade
onde Ndekeni ejaculou pela primeira vez depois de passar de estranhos rituais
ao encontrar-se com seu avô, irmão mais velho do pai do pai de Ndekeni,
Nassone, que morreu num dia de chuva ( uma vez mais, a autenticar-se a chuva
como um metido de comunicação dos defuntos com a alma peregrina do personagem);
a cidade em que ao contrário da sua cama de madeira em Mocodoene, dormiu ao
relento num prédio isolado na Rua de Bagamoyo enquanto as prostitutas e os
“putanheiros” faziam suas orgias sob a passeata da polícia que chula as
trabalhadoras de sexo, servindo-se da farda que ostentam para fazer sexo sem
pagar; a cidade que tem uma baixa que quando chove, os prédios ficam submersos,
os carros, as gentes, o lixo, tudo fica na superfície das águas. Tudo isso é estranho
para Ndekeni que veio trabalhar, ganhar dinheiro e voltar para sua terra como
um verdadeiro herói se calhar, com dinheiro ainda para construir a casa dos
deuses.
Determinado, como mostra-se em toda
obra, Ndekeni, jovem que “aparenta” ter 30 anos de idade, não tendo conseguido
trabalho em Maputo, servindo-se da sua intuição, pautou pela África do Sul, por
sinal, local para onde os seus defuntos o direccionavam, através do sonho que
teve. A condição profética dos sonhos, é, aliás, o dorso dessa narrativa que se
assinala como o incomum do comum.
É comum que na literatura estórias
encantadas sejam contadas, principalmente nos géneros infanto-juvenil, ou mesmo
na literatura clássica europeia. Mas essa estória encantada de Alexandre
Chaúque é africanamente constituída, senão, moçambicanamente, com um herói que
tem de enfrentar, a fome, a sede, as ruas, assaltos, e a miséria, como acontece
com Ndekeni durante a vida em Maputo; leões, crocodilos, hipopótamos nas matas
selvagens atravessando quase o inferno para alcançar o paraíso, como se sucede
para a sua chegada num povoado, “Hamba Kulhe” (boa viagem), na África do Sul
onde fez a herança que sonhara.
Mas para chegar a esse néctar,
teve que passar pelo que os seus antepassados passaram quando devorados por leões,
crocodilos e cães-polícias atravessando fronteira, clandestinamente, para a
África do Sul. Esse regra é também típica dos heróis deste continente que
fundamentalmente, são a consequência de um quotidiano forçado vivido num país
onde a pobreza decanta o abismo para onde vão muitos sonhos da juventude.
Se é verdade que em O Regresso do
Morto de Suleiman Cassamo é o povo pela sua própria boca, em Ndekeni, é a
realidade moçambicana, o Moçambique em si, apesar da condição ficção que se
pode atribuir à obra. Sobre isso, Ondjaki, escritor angolano, já afirmou que “o
nosso continente está cheio de estórias ansiosas por serem contadas. E elas
estão a chegar – já se lê.” (in prefácio: “A Enfermeira da Bata Negra”, Pedro
Muiambo, 2003).
Alexandre Chaúque, na sua condição
de criador (escritor) faz o seu papel de contrariar a desgraça que se canta,
nos tempos em que os níveis de frustração rimam com o baixo índice de vida de
uma população maioritariamente jovem. Uma mensagem que encandeia, sem dúvidas,
o cronista da morte e da desgraça que é Bitonga Blues, sem suicidar o inusitado
manuseador de termos de criar a azáfama numa sociedade exageradamente
obscenista.
Ndekeni, que está entre o
ultrapassado e fora da moda encantamento, vai, ao mesmo tempo, ao encontro de
uma dimensão futurista e mostra outras opções de escrita na Literatura
Moçambicana. Uma atitude típica de quem durante os tempos, preocupou-se em
compreender as razões da própria função da escrita que do acto. Ndekeni é uma
novela, uma ousadia, uma coragem dentre outras peripécias que precisam de
outras comparações.
- Eduardo Quive, escritor e
jornalista moçambicano. Editor da revista Literatas – Revista de
Literatura Moçambicana e Lusófona. O seu primeiro livro de poesia que
assina com o pseudónimo de Xiguiana da Luz intitula-se “Lágrimas da Vida
Sorriso da Morte” (FUNDAC, 2012)
Maputo, Quarta-Feira, 27 de Março de 2013:: Notícias
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