Prefácio do livro
"Futebol e Colonialismo. Corpo e Cultura Popular em Moçambique" de
Nuno Domingos
À primeira vista este trabalho é sobre
futebol e o modo como era praticado em Lourenço Marques – a maior cidade e
centro administrativo da colónia portuguesa de Moçambique – na primeira metade
do século XX. O trabalho interpreta o desenvolvimento do jogo, desde a fundação
dos primeiros clubes formados por expatriados ingleses, passando pela
organização em Moçambique de filiais de clubes metropolitanos como o Sporting e
o Benfica, até à abertura deste clubes a membros de uma elite Africana, a maior
parte deles mestiços, e à criação da Associação de Futebol Africana, com
jogadores, na sua maioria, provenientes das classes trabalhadoras africanas que
viviam na periferia pobre da cidade onde estes jogos decorriam.
Os historiadores do futebol irão, com
certeza, ficar interessados em aprender algo mais sobre o contexto que produziu
talentos como Mário Coluna ou Eusébio, ambos figuras maiores do futebol europeu
em meados do século XX. E a reivindicação de que o futebol é um – senão o –
desporto mundial será apenas reforçada pelas descrições do entusiasmo com que
os moçambicanos, de diferentes origens, abraçaram o jogo há tantos anos. O
trabalho de Nuno Domingos vai, no entanto, muito além de uma narrativa
histórica da disseminação de um jogo europeu (na sua versão moderna) numa
colónia africana. A sua «grande questão» é a relação ente o colonizador e o
colonizado concebida desde o jogo de futebol.
Deste modo, esta investigação baseia-se e
dá continuidade a uma tradição das ciências sociais que tem vindo a produzir,
no domínio dos Estudos Africanos, resultados relevantes nas últimas décadas: o
estudo da «cultura popular». Até à data, os estudos da cultura popular africana
focaram-se sobretudo nas artes, na escultura, na pintura, na música, na dança,
na literatura, no cinema e no teatro. Estes trabalhos tornaram visível a
interacção dinâmica entre tradição e modernidade no continente africano,
destacando os meios pelos quais as formas africanas de expressão se articularam
com a experiência vivida dos processos históricos que ligaram o continente com
um mundo mais largo, do colonialismo até ao nacionalismo revolucionário, ao
socialismo e ao neo-liberalismo. Através destes processos, os africanos
adoptaram e adaptaram géneros expressivos para os seus próprios fins e, como
este trabalho demonstra, contribuíram profundamente para as trajectórias
globais destas diversas formas.
O próprio Nuno Domingos adopta e adapta os
estudos da «cultura popular» para perseguir os seus objectivos neste trabalho.
Fazendo-o, estende a abordagem a uma área ignorada com demasiada frequência por
historiadores e cientistas sociais, o desporto. Ao observar a forma como o
futebol era jogado no Moçambique urbano por intermédio do enquadramento
conceptual do genre
põe de parte a asserção de que o jogo – definido como é por um conjunto de
regras – viaja inalterado de um contexto social para o outro. Tal como as
artes, o trabalho mostra-nos que o futebol foi transformado por aqueles que o
praticaram em locais como o Moçambique colonial. Mas não é a transformação do
jogo em si mesma que mais interessa a Nuno Domingos. Ele está, sobretudo, mais
interessado nas «grandes questões», isto é, em saber como o jogo transformou,
ou não, aqueles que jogavam neste contexto colonial, e de como foram, ou não,
capazes de usar o jogo para transformar o mundo em que viviam.
O pouco que se tem escrito sobre desporto
em contexto colonial tende a focar-se no seu uso como instrumento de poder. Ao
jogar – ou sendo compelidos a jogar – os jogos dos colonizadores, defende-se
que os corpos dos colonizados foram disciplinados e as suas mentes orientadas
em direcção a novas ideias tais como a «competição estruturada», o «fair
play» e o «Estado de direito». O trabalho de
Nuno Domingos demonstra claramente que, em certa medida, o regime colonial
português concebeu o desporto, nomeadamente o futebol, como uma forma de
«civilizar». Demonstra também, no entanto, que este não foi um projecto
inteiramente bem sucedido. O modo como os moçambicanos urbanos jogaram futebol
permitiu-lhes exprimir e reforçar as suas formas de estar no mundo, em parte
para se transformarem a si próprios, numa tentativa de acederem a um universo
que quase sempre os excluía.
A utilização neste livro dos textos do
poeta e jornalista proto-nacionalista José Craveirinha – que escreveu sobre o
futebol praticado nos bairros suburbanos da «cidade de caniço» – proporciona
aos leitores um aprofundamento acerca do modo como o jogo foi praticado pelos
africanos de classe trabalhadora, inclusivamente sobre os detalhes mais ínfimos
tais como os termos que designavam a performance, os gestos físicos e as
disposições morais que animavam jogadores e público nos inúmeros «pequenos
lugares» onde se encontravam. Em campos improvisados, no meio dos subúrbios
sujos e sobrepovoados que rodeavam a «cidade de cimento», o humor, a
criatividade, a dissimulação e a violência faziam parte do jogo, tal como
faziam parte da vida de todos os dias dos residentes destes bairros sob domínio
colonial. Ao jogar futebol desta forma, os habitantes destas «ruas perigosas»
submetiam-se às regras do futebol e simultaneamente desafiavam-nas, resistindo
ao poder colonial e procurando capturá-lo. O reconhecimento e a exploração pelo
autor de paradoxos como estes sustenta uma narrativa histórica de rico e subtil
detalhe.
Nestas páginas o futebol não é apenas um
jogo, mas a peça chave de um quadro vivo cujos personagens principais têm até
ao momento sido insuficientemente estudadas. Assim sendo, o trabalho de Nuno
Domingos não só identifica as peças em falta na visão de conjunto da história
portuguesa e moçambicana, para não falar da história do futebol, como oferece
uma perspectiva excepcionalmente pormenorizada da experiência vivida do
colonialismo português em Moçambique – permitindo comparações com experiências
semelhantes noutros contextos – ao mesmo tempo que nos alerta para as inúmeras
e muitas vezes contraditórias potencialidades do desporto enquanto meio para
moldar as subjectividades humanas.
·
1. Thomas Hylland Eriksen, Small Places, Large Issues: An
Introduction to Social and Cultural Anthropology (Pluto Press, 1995).
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