DUAS ESTAÇÕES
GOVERNAMENTALIZADAS (TVM E RM)*
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Escrito por Ericino de
Salema**
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A Rádio Moçambique (RM)
e a Televisão de Moçambique (TVM) foram, em 1994, formalmente transformadas
de estações estatais para emissoras públicas de radiodifusão, o que, sob o
ponto de vista material e/ou real, nos parece ser ainda utópico. Ambas as
empresas são “publicamente financiadas” por via de contratos-programa que
rubricam com o Ministério das Finanças, o que as torna frágeis em termos de
estabilidade institucional. Os gestores do topo são ainda nomeados pelo
governo, o que esvazia, quase em absoluto, os princípios da independência e
da imparcialidade quem deve nortear o genuíno serviço público de
radiodifusão.
Quando, a 15 de Março de 2002, a
coligação anglo-americana atacou o Iraque de Saddam Hussein, as atenções dos
principais órgãos de comunicação social existentes pelo mundo viraram-se para
aquele país rico em petróleo e localizado entre os rios Tigres e Eufrates. A
CNN, por exemplo, disse, naquele dia, que “Iraq is under strike”, enquanto
que a BBC referiu, no mesmo dia, que “Iraq is under bombardment”.
As palavras usadas pelos dois media com muita influência internacional podem, a nosso ver, ser assim interpretadas: a CNN quis dar a entender que o que estava a suceder naquele dia tinha fortes motivações internas, ou seja, eram os próprios iraquianos em manifestação, enquanto que a BBC passou a clara mensagem de que o Iraque estava sob invasão externa. Certamente que as repercussões daquele ataque expandiram-se para tantos outros quadrantes do mundo, incluindo para alguns governos, parlamentos e para as administrações dalguns grupos mediáticos. A BBC, que na altura tinha como director-geral Greg Dyke, não foi excepção, sobretudo pelo esforço que o canal público de radiodifusão britânica fez no sentido de documentar o que estava a acontecer de uma forma razoavelmente isenta, imparcial, independente e objectiva. Enquanto ainda decorria a guerra no Iraque, a comissão do parlamento britânico responsável pelas questões de radiodifusão veio a público manifestar a sua insatisfação pelo facto de a BBC ter-se “comportado de uma forma desfavorável” à própria Grã-Bretanha, o que, frisaram naltura alguns deputados, “é inaceitável, por a estação ser suportada por fundos públicos”. Greg Dyke foi chamado ao parlamento para ir explicar porquê deixava os jornalistas que tinham sido enviados ao Iraque reportarem sem tomar em conta os “interesses estratégicos” daquele reino. O então director-geral da BBC disse aos deputados da comissão que cuida de questões dos media mais ou menos o seguinte: que não existe jornalismo do sector público e jornalismo do sector comercial ou de outra índole; só existe, frisou, bom e mau jornalismo; e o bom era aquele que obedecia aos mais elevados padrões éticos da profissão de jornalista, em linha com valores-notícia e/ou critérios de noticiabilidade; e o bom repórter e o bom órgão de informação têm que desenvolver o seu trabalho com isenção, independência, neutralidade e objectividade. A explicação não foi suficiente para ilidir os fantasmas que inundavam as mentes dos deputados britânicos, pelo que Greg Dyke acabou pedindo demissão. Na verdade, o distorcido entendimento, às vezes propositadamente e noutras de forma inocente, que levou os deputados britânicos a ‘torturar psicologicamente’ o então número um daquela estação pública de radiodifusão, acha-se, em maior ou menor intensidade, evidente em vários países, tendo, muitas das vezes, como fonte o facto de a essência do que constitui serviço público de radiodifusão nem sempre ser devidamente captada.
ESSÊNCIA DA RADIODIFUSÃO PÚBLICA
De acordo com o World Radio and Television Council, a radiodifusão pública é
um lugar de encontro onde todos os cidadãos de um determinado país são
bem-vindos e considerados iguais; ela [a radiodifusão pública] é um
instrumento de informação e educação, que deve ser acessível a todos e ter
sido concebido para todos, independentemente da sua situação social,
económica, cultural ou política; o seu mandato não se restringe ao
desenvolvimento informacional e cultural: a radiodifusão pública deve ser
criativa e tem o dever de providenciar entretenimento; e tal deve ser feito
preocupando-se com a qualidade dos seus conteúdos e produtos, que é o que, de
resto, a torna – ou a deve tornar – diferente da radiodifusão
comercial1. Steve Buckley, Kreszentia Duer, Toby Mendel e Seán Ó Siochrú (2008) (2) defendem
que a radiodifusão [em termos gerais] pode ser definida com base em
diferentes modelos de propriedade e de controlo, que vão desde a radiodifusão
estatal à radiodifusão pública, da radiodifusão privada ou comercial, desde a
perspectiva global à local, até à radiodifusão sem fins lucrativos e à
radiodifusão comunitária.
Acrescentam que cada modelo é corporizado por diferentes dinâmicas e envolve um quadro diversificado de interesses, mas a configuração da radiodifusão num dado país é, geralmente, resultado de um processo histórico único, muitas vezes longo e complexo; nesses termos, não existem dois regimes idênticos e o conceito do que seria um modelo ideal de radiodifusão vê-se sempre enfraquecido quando posto em confrontação com a diversidade que caracteriza contextos nacionais diferentes. Em termos gerais, os mesmos autores resumem essa situação de unicidade e inexistência de modelos iguais nos termos infra: “Mesmo há 25 anos, o sistema de radiodifusão nacional poderia ser classificado de acordo com o sistema político vigente em cada um dos países. Muitos dos países europeus tinham uma única entidade monopolista a cuidar da radiodifusão, embora operando, cada um deles, de acordo com um quadro diversificado de princípios, sendo que na Europa ocidental a radiodifusão era pública e na Europa do leste era controlada pelo Estado. Em África e em parte considerável da Ásia, igualmente, a radiodifusão nacional era estritamente de propriedade e controlo governamental e era operada pelo próprio governo. Noutro extremo, o modelo americano de mercado livre se achava operacional em muitos dos estados (com notáveis excepções). O número de países com modelos mistos era muito reduzido, pontificando países como Reino Unido da Grã-Bretanha, Japão, Austrália, Canadá e Finlândia. Onde existisse, a radiodifusão comunitária era um ‘fenómeno’ estritamente local e marginalizado, com muitas poucas ligações à radiodifusão convencional” (3). Quanto aos tipos de radiodifusão existentes, diversos autores e/ou estudos por nós consultados referem-se à existência de quatro regimes, designadamente i) radiodifusão directamente controlada pelo governo, ii) radiodifusão pública, iii) radiodifusão comercial e iv) radiodifusão comunitária (4). A radiodifusão directamente controlada pelo governo pressupõe, em termos formais, propriedade e controlo do governo do dia. São, actualmente, poucos países que ainda mantém, formalmente, essa modalidade, de entre os quais se destacam Belorússia, Zimbabwe e China; ela funciona de forma parcial, não isenta e neutra e totalmente dependente do governo. A radiodifusão comercial está inserta no quadro da liberalização do mercado e visa o lucro. A radiodifusão comunitária é, por definição, de propriedade comunitária, feita pela comunidade e para os interesses da própria comunidade, não possuindo fins lucrativos. “O serviço público de radiodifusão, na sua situação óptima, é independente do governo e dos interesses comerciais e se ocupa exclusivamente em servir o interesse público. Em alguns casos o serviço continua numa certa modalidade de propriedade pública mas operando com base em estatutos que confirmam, de forma explícita, a sua independência editorial do governo do dia e são estabelecidos arranjos de governação com vista a garantir que assim seja” (Buckley et al, 2008: 37-38).
DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES
A radiodifusão pública deve seguir um conjunto de princípios internacionais,
de entre os quais pontificam, na perspectiva do Grupo de Governação do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), seis,
designadamente i) universalidade, ii) diversidade, iii) independência [do
Estado e dos interesses comerciais], iv) imparcialidade, v) comprometimenro
com a cultura e vi) identidade nacional e financiamento público directo (5). A
esses seis princípios, alguns quadrantes acrescentam o princípio da
distintividade, na esteira do qual o serviço providenciado pela radiodifusão
pública tem que ser, de longe, positivamente diferente do oferecido pela
radiodifusão comercial, sobretudo em termos de programação (6).
O princípio da universalidade preconiza que o serviço público de radiodifusão deve se achar disponível e acessível a toda a população, sobretudo em termos de conteúdos produzidos e das línguas usadas para a sua veiculação. Já o da diversidade defende que a radiodifusão pública deve providenciar uma variedade de programas, incluindo conteúdos de natureza educativa e informacional produzidos com os mais elevados padrões de qualidade. O princípio da independência [do Estado e/ou governo e dos interesses comerciais] reza que as decisões sobre a programação e sobre conteúdos jornalísticos devem ser tomadas pelas entidades relevantes do órgão de radiodifusão sem pressão política e/ou comercial. O princípio da imparcialidade, de resto muito similar ao da independência, funda-se da ideia de que é irrazoável que o governo do dia use, por exemplo, o seu poder para se beneficiar de propaganda promovida pela radiodifusão pública. O do comprometimento com a cultura e identidade nacionais tem que ver com a premência de parte considerável dos programas ter que possuir ligação com aquilo que é a cultura e a identidade da população de cada país. O princípio do financiamento público directo objectiva-se a evitar que, por via da modalidade de financiamento, o governo do dia influencie a independência e imparcialidade do órgão público de radiodifusão; o financiamento directo é feito por via da taxa de radiodifusão ou por intermédio de orçamentos aprovados pelo parlamento, e não com base em contratos-programa entre a firma de radiodifusão pública e o governo. A definição do que será interesse público remonta ao próprio surgimento da radiodifusão (a rádio, sobretudo), nos princípios do século XX. Em 1960, Frank Stanton, na altura executivo editorial da CBS, disse que “um programa que seja do interesse de parte significativa da audiência é, exactamente por isso, de interesse público”. Já de forma um pouco mais elaborada, Gareth Grainger, que, na década de 60 trabalhou na entidade reguladora da radiodifusão australiana, posicionou-se da seguinte forma: “O interesse público é aquele interesse que governos, parlamentos e cidadãos de nações democraticamente governadas aceitam de forma consensual ou quase consensual e o fazem reflectir em leis, políticas, decisões e acções com o objectivo de garantir a paz, ordem, estabilidade, segurança, propriedade e direitos humanos para o bem-estar de todas as sociedades e nações que, em linha com a lei fundamental e os processos eleitorais, permitem que os cidadãos renovem o contrato social que eles democraticamente firmam com os seus governantes”. Tomando em consideração o facto de a radiodifusão pública não se direccionar ao lucro, ela deve ser, além de inovativa, destemida, audaciosa e ousada, o que significa que, pela defesa do interesse público, tem que se predispor a correr riscos. É nessa linha que estudiosos como Anthony Smith chegaram à conclusão de que “[desde o seu surgimento até aos nossos dias], a radiodifusão pública provou, provavelmente, ser o mais poderoso instrumento da chamada social democracy” (7). A importância dos media, incluindo da radiodifusão pública, para as emergentes democracias africanas, foi enfatizada na Declaração para a Promoção duma Imprensa Africana Independente e Pluralista, ou simplesmente “Declaração de Windhoek”, aprovada em 1991 na capital namibiana e endossada no mesmo ano pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua 26a sessão. A “Declaração de Windhoek” diz, no seu número um, que, em conformidade com o artigo 198 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o estabelecimento, manutenção e fortalecimento duma imprensa independente, pluralista e livre são indispensáveis ao progresso e preservação da democracia, bem como ao desenvolvimento económico duma nação. Nos termos da “Declaração de Windhoek”, imprensa independente (número dois) é aquela que seja independente do controlo governamental, político ou económico, ou do controlo de materiais e infra-estruturas essenciais à produção e disseminação de jornais, revistas e periódicos; já por imprensa pluralista (número três) entende-se como sendo o fim do monopólio de qualquer tipo e a existência do maior número possível de jornais, revistas e periódicos que reflictam a mais vasta gama possível de opiniões no seio de uma comunidade. Quando se celebrava, em 2001, o décimo aniversário da “Declaração de Windhoek”, foi apresentada, à Comissão Africana para os Direitos Humanos e dos Povos, a Carta Africana de Radiodifusão, que aborda, mais especificamente, o domínio da radiodifusão. No número um da sua parte primeira (Assuntos Gerais da Radiodifusão), diz a referida carta que “O quadro jurídico para a radiodifusão deve incluir uma exposição clara dos princípios basilares da regulamentação da radiodifusão, incluindo a promoção do respeito pela liberdade de expressão, a diversidade, a livre circulação de informação e ideias e, ainda, os três formatos de radiodifusão, ou seja: os serviços públicos, comerciais e comunitários”. [a radiodifusão governamental é o quarto modelo] O mesmo instrumento insta, no número um da sua parte segunda (Emissoras de Serviço Público), todas as emissoras do Estado e sob controlo formal do governo a serem transformadas em emissoras de serviço público, que sejam responsáveis perante todas as classes sociais representadas por um conselho de direcção independente e que sirva o interesse global do público, evitando informação e programação unilateral em relação à religião, crenças políticas, cultura, raça e género.
RADIODIFUSÃO PÚBLICA E
DESENVOLVIMENTO HUMANO
De acordo com Amartya Sen, o conceito de desenvolvimento humano tem as suas origens no pensamento clássico, mais concretamente nas ideias de Aristóteles, que acreditava que alcançar a plenitude do florescimento das capacidades humanas é o sentido e o fim de todo o desenvolvimento. Na verdade, o conceito de desenvolvimento humano tem assumido algum paralelismo, ainda que não pacífico, com o de desenvolvimento económico, ainda que o primeiro (desenvolvimento humano) seja mais amplo, uma vez que se não limita em considerar os aspectos relativos à economia, pois integra ainda aspectos como qualidade de vida, educação e esperança de vida à nascença (9). Em boa verdade, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida de desenvolvimento [na perspectiva humana] de cada país. O mesmo é elaborado pelo PNUD, comportando os três indicadores atrás mencionados (esperança de vida à nascença, educação e qualidade de vida), correspondendo, esses indicadores de dimensão sócio-estatística (10). Em 2010, o PNUD ajuntou a questão das assimetrias. A radiodifusão pública, quando se assume efectiva e verdadeiramente como tal, se posiciona como ‘voz dos sem voz’, sempre em prol da defesa do interesse público. O serviço público de radiodifusão é igualmente apontado como desempenhando um papel central na promoção da consolidação das democracias, sobretudo as emergentes, e de reformas na governação. Ao longo dos anos, os princípios basilares do serviço público de radiodifusão têm sido alvo de questionamentos, particularmente a asserção segundo a qual a radiodifusão pública é o modelo mais efectivo para responder às necessidades de informação e demais interesses da população. Contudo, experiências de vários países nos quais a radiodifusão comercial, em oposição à radiodifusão pública, é dominante, mostravam que o modelo de radiodifusão comercial possui significativas fraquezas: nela, os interesses e/ou direitos das minorias não são, muitas vezes, devidamente atendidos; decresce o volume de programação que toma como fonte os interesses de grupos específicos da sociedade e dá-se primazia ao entretenimento em detrimento de programas de informação e educação (11).
RADIODIFUSÃO “PÚBLICA” EM MOÇAMBIQUE
Numa perspectiva estritamente formal, a RM e a TVM, as duas estações de
radiodifusão criadas pelo Estado, integram o que se denomina de serviço
público de radiodifusão, tendo em conta que ambas foram, por decretos
separados datados de 1994, transformadas para essa vertente. Com isso,
passaram a estar dotadas de autonomia administrativa, patrimonial, financeira
e, até, editorial, por decorrência da própria lei.
Com essa transformação, buscava-se, pelo menos formalmente, sair do sistema estatal em direcção a um sistema público de radiodifusão, embora se tenha mantido a determinação de que a nomeação dos directores gerais – hoje equivalentes a Presidentes de Conselhos de Administração (PCAs) – dos meios de comunicação social públicos é feita pelo Governo, nos termos da Lei número 18/91, de 10 de Agosto (Lei de Imprensa), o que faculta bastante espaço à interferência governamental (12). Uma análise material do fenómeno da radiodifusão em Moçambique pode se basear nas constatações dos relatórios do African Media Barometer (AMB), exercício desenvolvido no país nos anos 2005, 2007, 2009 e 201113. Concretamente, a grande questão (depois desdobrada em várias sub-questões) que nessa ordem se levanta é de aferir se a regulação do sector de radiodifusão é transparente e se a radiodifusão estatal é transformada numa verdadeira radiodifusão pública. Os últimos dois relatórios do AMB em Moçambique (2009 e 2011) referem, de forma cristalina, não existir legislação específica sobre radiodifusão no país. Apesar dessa lacuna, a RM e a TVM, formalmente públicos, são regulados por diversa legislação geral e/ou dispersa, de entre as quais se inclui a Lei de Imprensa. Em Fevereiro de 2009, o governo anunciou o início de um processo de preparação de uma lei de radiodifusão, tendo convidado organizações da sociedade civil, particularmente as ligadas ao sector dos media, a darem o seu contributo, através da indicação e integração de elementos seus no Grupo Técnico. Depois que o Grupo Técnico elaborou, de forma participativa, os relevantes Termos de Referência, o Gabinete de Informação contratou, já não de forma aberta, uma equipa de consultores para a elaboração do primeiro esboço. Os referidos consultores elaboraram uma proposta que foi, em meados de 2010, considerada inadequada, mormente por não responder aos padrões internacionais estabelecidos neste domínio. O ante-projecto não corresponde, por exemplo, aos compromissos assumidos pelo Estado moçambicano ao nível da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão em África (2002), bem como da Carta Africana de Radiodifusão (2001). Em particular, o esboço foi criticado por não incluir nem definir de forma inequívoca o serviço público de radiodifusão e o estabelecimento de uma entidade reguladora independente (14). Uma das sub-questões colocadas pelo AMB neste domínio visa captar se a radiodifusão estatal ou pública presta contas ao público através de um conselho de direcção representativo da sociedade no geral e que tenha sido composto de uma forma independente, aberta e transparente. As constatações do AMB de 2009 e de 2011 quanto a este ponto resumem a situação em que nos encontramos como país, não havendo nenhuma melhoria pelo menos de 2009 a 2011: AMB de 2009: “Há um défice muito grande nesta área. Nenhuma das duas (RM e TVM) entidades de radiodifusão presta contas ao público. E não há nenhuma representatividade nos seus órgãos directivos. O artigo 10 da Lei número 17/91 (Lei de Empresas Públicas) refere que os administradores das empresas públicas são nomeados e exonerados pelo ministro de tutela, enquanto que o Presidente do Conselho de Administração é nomeado pelo Conselho de Ministros. Os dois órgãos de radiodifusão pública são regidos por este dispositivo legal, o que até certo ponto entra em choque com o artigo 5 da Constituição [da República], que estabelece a independência dos órgãos de comunicação do sector público. (…) De facto não há nenhuma transparência na maneira como são nomeados os corpos directivos da radiodifusão pública. A RM e a TVM, apesar do seu estatuto de entidades públicas, funcionam essencialmente como rádio e televisão estatais. Isso tem implicações nos seus conteúdos, que estão a ficar cada vez mais comprometidos politicamente, notando-se uma crescente tendência ao favoritismo que elas têm vindo a dar ao partido no poder, particularmente neste [2009] ano de eleições. Como exemplo, pode-se citar um caso recente em que a RM abandonou a transmissão que estava a fazer de uma sessão do Parlamento para transmitir em directo uma reunião do partido Frelimo que estava a decorrer na Matola, uma cidade adjacente a Maputo” (15). AMB de 2011: “Os Conselhos de Administração da RM e da TVM são exclusivamente nomeados pelo governo. Os métodos de nomeação (…) são os mesmos que são aplicados na nomeação de Conselhos de Administração de outras empresas públicas, tais como Electricidade de Moçambique, Aeroportos de Moçambique, etc. Nesses termos, a constituição dos órgãos de gestão das empresas públicas de radiodifusão basea-se na Lei número 17/91 (Lei de Empresas Públicas), cujo artigo 10 refere que os administradores das empresas públicas são nomeados e exonerados pelo ministro de tutela, enquanto que o Presidente do Conselho de Administração é nomeado pelo Conselho de Ministros. Assim, a forma de constituição destes órgãos entra em choque com o número 5 do artigo 48 da Constituição da República, que estabelece o princípio da independência dos órgãos de comunicação social do sector público. Por essa razão, elas prestam contas não ao público, mas sim ao governo” (16). Na verdade, não restam dúvidas de que no âmbito formal a RM e a TVM migraram do domínio estatal para o domínio público muito antes até da aprovação da Carta Africana sobre Radiodifusão (2001) e da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão em África (2002), mas, em termos materais ou reais, a situação em que operam os dois canais parece até estar a baixar do domínio estatal para o que me permito designar de domínio dominantemente partidário. DA “DEPENDENTE INDEPENDÊNCIA” EDITORIAL
Quanto às garantias de isenção e
independência editorial da RM e TVM por parte do governo, Moçambique,
conforme referimos atrás, se encontra, em termos formais, numa situação
privilegiada, uma vez que essas garantias até possuem dignidade
constitucional. De resto, a norma contida no número 5 do artigo 48 da
Constituição da República diz que “O Estado garante a isenção dos meios de
comunicação social do sector público, bem como a independência dos
jornalistas perante o governo, a administração e os demais poderes políticos”.
Quando foi das manifestações de 5 de Fevereiro de 2008, o MISA e o CIP documentaram, em comunicado conjunto, a situação de excessiva dependência editorial em que operam os profissionais dos dois canais. Quanto à TVM, foi registado que “ao longo da manhã, as revoltas não foram notícia. Ao invés de informar sobre os acontecimentos, a TVM transmitia reportagens sobre o CAN. (…) No seu jornal da tarde daquela terça-feira, a TVM não dedicou um minuto sequer às manifestações, que haviam iniciado cedo pela manhã, embora alguns repórteres daquela estação pública se tivessem feito à rua com o propósito de documentar o que estava a acontecer. (…) Um veterano jornalista da TVM, hoje fora da chefia [formal] da redacção, terá recebido ‘ordens superiores’ para vigiar ‘conteúdos noticiosos subversivos’”. Quanto à RM, foi registado que “repórteres que se encontravam em vários pontos das cidades de Maputo e Matola foram obrigados, na tarde daquela terça-feira, a interromper as reportagens em directo que vinham fazendo desde as primeiras horas e instruídos a recolherem à redacção, supostamente como forma de se evitar um alegado ‘efeito dominó’ dos acontecimentos”. Estes e outros factos mostram que a cobertura noticiosa de acontecimentos sensíveis continua a ser alvo de controlo governamental, privando a opinião pública de ter acesso à informação. Estas marcas de censura são perniciosas para a sociedade moçambicana. No caso da TVM, “a mão do governo no controlo editorial mostra que a noção de serviço público com que a estação opera não significa colocá-la ao serviço do povo e dos contribuintes, informando com isenção e rigor. A forma como a TVM, de longe mais vergonhosa, e a RM se portaram quando foi das manifestações de 5 de Fevereiro de 2008 sugere um cada vez maior controlo governamental sobre o sector” (17). No âmbito desta pesquisa, entrevistámos três jornalistas seniores da RM, com o propósito de perceber como é que se escolhem as pessoas que comentam ou analisam diferentes aspectos sócio-políticos e económicos naquele canal, com o que foi-nos dito que, primeiro, o director de informação compila uma lista de nomes, depois que ouvidos alguns jornalistas influentes; seguidamente, a lista é levada ao Conselho de Administração, que se encarrega de ver ‘quem é nosso’; por fim, mas nem por isso menos importante, a lista é levada ao Secretariado do Comité Central da Frelimo, para o relevante ‘no objection’. “Nos tempos de Edson Macuácua, recebíamos a lista definitiva em menos de 48 horas, já com muitos nomes cortados. Agora, com Damião José como porta-voz, não sei como serão as coisas”, frisou um dos nossos entrevistados. A questão do financiamento à RM e à TVM é feita através de contratos-programa que as duas estações rubricam com o governo, concretamente com o ministro das Finanças. Do total do seu orçamento para este ano (2012), a TVM recebeu metade do governo, com a obrigação de buscar a outra metade no mercado. Quanto à RM, o que o governo deu este ano cobre 91% do salário anual, devendo, aquela firma pública, procurar o resto do financiamento no Mercado, esse que, de acordo com operadores bem posicionados, é suportado, em termos publicitários, em mais de 50% pelas empresas de telefonia móvel. Há, na forma de financiamento da chamada radiodifusão pública em Moçambique, pelo menos dois problemas de fundo: os contratos-programa formalizam a governamentalização dos dois canais, enquanto que a sua excessiva confiança no mercado sufoca as televisões e rádios privadas e/ou comerciais, partindo do princípio de que, quem tem onde ir buscar, sempre, pelo menos o salário, pode negociar, de forma “deflacionada”, os seus espaços publicitários. A questão da adequacidade do mecanismo de financiamento da radiodifusão pública é uma das sub-questões do African Media Barometer. Na verdade, tanto a RM como a TVM não estão a ser adequadamante financiados, de tal forma que estejam livres de interferências. Nos moldes actuais, as duas empresas públicas de radiodifuão têm (conforme referimos atrás) aquilo a que se denomina de contrato-programa, através do qual o governo financia as suas actividades. Para além disso, a RM colecta uma taxa de radiodifusão, que é cobrada através das facturas de electricidade e do imposto automóvel. Contudo, nem este modelo tem sido cumprido com a devida regularidade, colocando as duas instituições numa situação de extrema vulnerabilidade. Ligado a isso, “os órgãos públicos de radiodifusão vêem-se obrigados a ter que funcionar como se fossem comerciais, impondo uma concorrência desleal ao sector comercial” (18). Os interesses domina(dos)ntes Robert Dahl, um dos mais influentes teóricos da democracia, refere que quando um país passa de um governo não democrático para um governo democrático, os arranjos democráticos iniciais se tornam práticas e, em seu devido tempo, estas [práticas] tornam-se instituições políticas (19). No contexto moçambicano, atrevemo-nos a apontar a Constituição de 1990, a primeira de pendor democrático, como estando inserida no domínio de arranjos democráticos. As primeiras eleições gerais de 1994 e autárquicas de 1998 estariam, a nosso ver, ao nível de práticas democráticas. As eleições subsequentes estariam insertas no quadro do que Dahl denomina de instituições políticas. Mas será que Moçambique já pode dizer que as eleições são instituições políticas, com as desconfianças prevalecentes e a crescente instabilidade no quadro jurídico-legal aplicável às eleições? As instituições políticas são a essência do que Dahl chama de democracia em grande escala, que pressupõe a observância de seis aspectos, designadamente governantes de topo eleitos (governadores e administradores, por exemplo); eleições regulares, livres, justas e transparentes; liberdade de expressão; acesso à informação; autonomia para as associações e liberdade política; e cidadania inclusiva. Isso, diria Joseph Stiglitz, só é possível com uma imprensa vibrante (20). Sem um serviço público de radiodifusão, jamais podemos falar, em termos globais, da existência de imprensa vibrante em Moçambique, tendo em conta, sobretudo, o facto de “…os telespectadores da TVM constituírem 96% do total dos telespectadores a nível nacional. Em termos territoriais, a audiência das rádios distribui-se igualmente entre as zonas rurais (45%) e as zonas rurais (55%), enquanto os poucos leitores de jornais e os telespectadores são essencialmente urbanos (69% e 95%, respectivamente)”21. O mesmo se aplica quanto à dahliana democracia em grande escala. Considerando que não existe, no país, um regulador independente do serviço público de radiodifusão, o financiamento é politicamente programado e os gestores são precariamente nomeados, a RM e a TVM se encaixam melhor no que se denomina de radiodifusão governamental. Para que os dois canais se tornem verdadeiramente públicos, há, pelo menos, que: • Criar mecanismos transparentes, sustentáveis e democráticos de financiamento, nomeadamente por via do Parlamento e de taxas geridas de forma transparente; • Os gestores têm que ser seleccionados em concurso público e depois confirmados pelo Parlamento; • Uma lei de radiodifusão deve ser aprovada, com a qual se deve estabelecer, por exemplo, uma entidade independente de regulação, o que, mais do que nunca, se mostra urgente, sobretudo com o processo da migração do analógico para o digital. * Versão editada da comunicação apresentada pelo autor na Conferência Internacional do Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (CEC), sob o lema “Comunicação Social e Desenvolvimento”, realizada em Maputo nos dias 22 e 23 de Novembro. ** Jornalista e Jurista. Mestrando em Direitos Humanos, Democracia e Governação [Universidade Federal do Pará (Brasil) e Universidade Técnica de Moçambique (UDM)] 1 In “Public Broadcasting: Why? How?” (2000), da autoria do World Radio and Television Council, organismo associado ao Centro de Estudos sobre os Media, da Universidade de Laval, no Quebec, Canadá. 2 Os quatro são autores da obra Broadcasting, Voice and Accountability – a Public Interest Approach to Policy, Law and Regulation, publicada em 2008 pelo World Bank Institute. 3 Steve Buckley et al; 2008; Broadcasting, Voice and Accountability – a Public Interest Approach to Policy, Law and Regulation; Washington DC: World Bank Institute 4 No leque desses autores, destacam-se Buckley, Duer, Mendel e Siorchrú; a estes, juntam-se Karol Jakubowics e a World Radio and Television Council. A radiodifusão directamente controlada pelo governo é também denominada por radiodifusão estatal. 5 In Supporting Public Service Broadcasting: Learning from Bosnia and HerzegovinaSs Experiences; 2004; New York: UNDP;s Democratic Governance Group; pág. 11. 6 In sPublic Broadcasting: Why? How?P; 2000; Quebec: World Radio and Television Council; pág 07. 7 Anthony Smith é considerado, em vários quadrantes especializados, como um dos gurus do/no estudo da radiodifusão pública. 8 Eis o conteúdo do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: ;Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. 9 Amartya Sen, economista indiano, ganhou, em 1998, o Prémio Nóbel da Economia, pela sua contribuição à Teoria Social da Decisão Social e do Estado do Bem-Estar Social 10 Relatório Anual de Desenvolvimento do PNUD. 11 Extraído do relatório .Supporting Public Service Broadcasting: Learning from Bosnia and HerzegovinaSs Experiences; 2004; New York: UNDP Democratic Governance Group; pág. 11. 12 In ;Moçambique: Democracia e Participação PolíticaM; 2009; Joanesburgo: AfriMAP e OSISA, pág. 64. 13 O AMB, desenvolvido e implementado pela FES e pelo MISA, é, na verdade, o primeiro exercício de análise concebido localmente sobre a situação dos media em África. 14 Relatório do AMB em Moçambique; 2011; Windhoek: FES e MISA; pág. 38 15 AMB de 2009, pág. 35. 16 AMB de 2011, pág. 41. 17 In comunicado conjunto MISA-Moçambique e CIP sobre a cobertura mediática das manifestações de 05 de Fevereiro de 2008. 18 AMB de 2009, pág. 38. 19 DAHL, Robert; 1998; Sobre a Democracia; Brasília: UNB; pág. 98. 20 In “The Right to Tell”; 2002; Washington DC: World Bank Institute. 21 In Moçambique: Democracia e Participação Política; 2009; Joanesburgo: AfriMAP e OSISA, págs. 61 e 6 |
In: http://www.savana.co.mz/index.php?option=com_content&view=article&id=1079
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