"O
REGRESSO DO MORTO”, DE SULEIMANE CASSAMO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO
CONSTITUINTES DA IDENTIDADE NACIONAL
Este ensaio tem como
objeto de estudo o livro O Regresso do Morto, de Suleiman Cassamo, autor
moçambicano. Serão discutidos alguns aspectos da oralidade, memória e tradição
como constituintes da identidade nacional.
BREVÍSSIMO
HISTÓRICO DA LITERATURA MOÇAMBICANA
O
apego à terra é uma característica marcante nos moradores de sociedades rurais.
Na maior parte das sociedades africanas, a vida é rural, o processo de
urbanização está ocorrendo gradualmente após as independências e fim das
guerras civis, daí a literatura africana ser repleta de cenas de ambientes
rurais. Nestes ambientes não urbanizados são guardadas as tradições: expressas
no respeito aos mais velhos, na importância da palavra falada (seja no ato de
falar agindo no mundo, seja no ato de contar, a fim de modificar ou entender
alguma coisa do mundo), na valorização dos elementos da natureza, na reverência
aos antepassados falecidos, enfim, em todos os elementos que de alguma forma
identificam os grupos formadores de África.
Moçambique
é independente desde 1975 e livre da guerra civil desde 1992, ou seja, é uma
sociedade que ainda está se acostumando com o fato de ser nação, no sentido
moderno.
Está
dividida entre a vida rural e a vida urbana. Aqueles que abandonaram o campo,
para empreender uma nova vida na cidade, geralmente acabam se afastando dos
princípios e costumes da vida rural, os quais são fundamentais na construção da
identidade cultural do país.
A
assimilação cultural exigida para a ascensão na escala social obriga os
moçambicanos a abandonarem suas raízes culturais e religiosas. Para ser
assimilado pela cultura branca europeia (dominante mesmo após o processo de
independência) é necessário falar português, deixando de lado os dialetos do
país; estar inserido no mundo letrado e de alguma forma abandonando as raízes
da oralidade; e aceitar os dogmas cristãos, contrários aos princípios das
religiões locais. Estas e outras práticas produzem um processo de
“branqueamento cultural”, pois obrigam o africano a deixar suas vivências e
aceitar o estilo de vida importado da Europa e de outros lugares.
Este
processo de desenraizamento é doloroso, pois, mesmo quando as pessoas optam por
uma vida na cidade e de alguma forma aceitam as regras propostas pelo sistema
dominante, a dor é sentida: há uma quebra no sistema de valores individuais e
grupais. Essa dor está sendo registrada na literatura e nas artes em
geral.
As
primeiras manifestações literárias nos meados de 1975 tinham o intuito de
convocar os moçambicanos leitores e os leitores de literatura moçambicana a
repensar as suas posições políticas sobre o país. Nesta época temos a presença
de Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha e outros, que, através da
literatura, levantaram a bandeira da independência, denunciando o estado de
abandono e a crise que havia se instaurado com a saída dos portugueses do
território moçambicano.
Os
anos passaram e outras pessoas surgiram no espaço literário, porém a bandeira
agora não é de convocação, mas sim de denúncia, pois Moçambique sofrera um
processo de abandono por parte da ONU, durante a guerra civil que assolou o
país. Os primeiros livros de Mia Couto e de Noémia de Souza são reveladores dos
aspectos históricos deste momento. Em Terra Sonâmbula, Mia Couto (1992)
apresenta a situação daqueles que fogem da guerra civil, começando a viver o
desapego da terra e da vida rural: “Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem,
conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade
de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago
a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (COUTO, 1992.
p 15).
Quinze
anos (altura em que foi escrito o texto) marcam o fim da guerra civil em
Moçambique, o cenário teve algumas modificações, porém as questões relativas à
tradição e a terra ainda são importantes. O processo de assimilação não é uma
prática tranquila, pois os moradores do mundo rural ainda precisam abandonar
suas raízes tradicionais.
A
literatura continua o seu registro, porém a situação não é de apenas denúncia,
o papel dos escritores da atualidade é também o de resistir à imposição da
cultura europeia. Muitos são os nomes que surgem no cenário da atualidade: Mia
Couto continua escrevendo, e talvez seja o mais conhecido escritor moçambicano;
Paulina Chiziane tem quatro romances publicados; vários poetas e prosadores têm
surgido, entre eles Suleiman Cassamo, autor de quatro livros, publicados em
Moçambique e Portugal.
É sobre Suleiman Cassamo e seu livro O Regresso do Morto (1997)
que passaremos a deter nosso olhar neste ensaio.
VISÃO
PANORÂMICA DE "O REGRESSO DO MORTO" (1997)
O
Regresso do Morto é uma coletânea de contos, publicada em 1989 em Moçambique,
onde recebeu o Prêmio da Associação dos Escritores. Em 1997 foi publicado em
Portugal e já obteve uma tradução para o francês. A obra é marcada por um
profundo amor pela terra: a terra vista como a mãe, como símbolo de vida e
guardiã dos ancestrais. O autor dedica o livro aos seus pais: “A meus pais:
porque o sangue é veículo da memória” (CASSAMO,1997 p.07).
Já
na dedicatória do livro percebe-se a importância dos antepassados, marcada não
só na dedicatória aos pais, mas principalmente na maneira como se refere ao
sangue e à memória. A memória, ao ser conduzida pelo sangue, simboliza a
vitalidade e força contida num passado; o sangue, veículo da memória, deixa de
ser apenas o elemento natural do ser humano, assume o compromisso de transmitir
às gerações vindouras o passado de uma família, comunidade, ou nação.
Há,
na abertura do livro, uma mensagem aos leitores, onde o autor expressa o que
deseja oferecer através de seu livro: “Que da leitura destes contos vos fique
um leve, levíssimo sabor a terra. O sabor da nossa terra” (CASSAMO,1997, p.09).
Talvez a principal pergunta que nos surja desta nota inicial seja: “Quem é este
leitor?”. Uma primeira tentativa de resposta, talvez aponte para um leitor
não-moçambicano. Pensamos, porém que o escritor se refere tanto ao leitor
estrangeiro, quanto ao leitor nacional, pois o livro se presta a dar um sabor
da terra: uma oportunidade para o estrangeiro degustar, e para o moçambicano um
renovo em seu prazer. Inferimos que a literatura, neste caso, o livro de
CASSAMO (1997), passa a ser “um molho” que, além de incrementar o sabor, faz
aumentar o apetite por um alimento já conhecido – a terra de Moçambique.
Os
dez contos que compõem o livro trazem aspectos da vida urbana e rural. Ao
apresentar a vida nas cidades, o autor ora apresenta os moradores bem
sucedidos, ora os habitantes das periferias, com suas tristezas ou
dificuldades. Nestes contos, o autor marca a ambiguidade da vida urbana, que
impõe o afastamento das tradições, mas não consegue eliminar, com os encantos
da pós-modernidade, os conhecimentos e saberes tradicionais.
A
temática central do livro é a morte, que ora representa o fim natural da vida,
ora simboliza as dificuldades e percalços cotidianos. Um segundo tema que pode
ser apreendido é a situação da mulher: o autor apresenta as mulheres como
portadoras de força motriz na sociedade. Pensamos que as mulheres podem
significar vida, se opondo, desta forma, à morte.
Os
contos são curtos, apenas um é narrado em primeira pessoa, tendo um aspecto
epistolar – o narrador é claramente culto e assimilado. Os outros nove contos
são narrados em terceira pessoa, dando-nos a sensação de estar diante de um
contador de histórias. Os elementos da natureza são constituintes do universo
literário africano, pois as culturas africanas estabelecem uma relação de
valoração e intimidade com a natureza. Em O Regresso do morto isso não é
diferente, porém o autor escolhe o elemento terra como principal em suas
narrativas.
Após
uma brevíssima revisão da história literária de Moçambique, e uma visão panorâmica
da obra O Regresso do Morto, buscaremos assinalar aspectos relevantes da
tradição, da oralidade e da memória, expressos nesta obra. Dividiremos nossa
análise em duas partes: primeiramente pensaremos sobre os movimentos da
tradição na sociedade moçambicana; logo após, discutiremos alguns aspectos
relativos à memória e à oralidade na constituição da identidade do país.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto “O regresso do morto”.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto “O regresso do morto”.
BAUMAN
(1999) após analisar os tempos modernos, aponta a pós-modernidade como saída,
mas não consegue ser optimista. O professor ocidental afirma: “o que é
realmente novo na nossa atual situação, em outras palavras, é o nosso ponto de
observação” (BAUMAN, 1999, p. 288). Desta forma ele não dá muitas expectativas
para o homem livrar-se do conflito imposto pela ambivalência de conceitos.
Cassamo (também professor universitário em Moçambique), através
do narrador em “O regresso do morto”, diz que, quando o jovem fitou sua mãe
rachando lenha, “o fogo avivou os olhos mortos” (CASSAMO, 1997 p.82). Vemos
nisso uma metáfora de vida e de liberdade que o regresso à casa e às tradições
pode dar ao homem. Estamos diante de dois conceitos, não poderia ser diferente
em tempos modernos ou pós-modernos, cabe a cada um fazer sua opção.
Memória e Oralidade na identidade
cultural moçambicana
“A
memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1985, p. 210): sendo assim,
é forma discursiva que recria e fixa vivências, transformando-as em
interpretações que atravessam tempos e desdobram realidades. Desta forma, o
passado pode apresentar diversas versões, está instalado entre a memória e a
história e encontra na linguagem a sustentação que “reduz, unifica e aproxima
no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as
imagens da vigília atual” (BOSI, 1996, p.56).
Para
os africanos, particularmente, a memória tem um papel fundamental para a preservação
da cultura, pois em África a tradição e a história foram, durante muito tempo,
repassadas aos jovens, basicamente, por via oral. Assim, a ausência de memória
equivaleria à perda de parte da história e das tradições. Os velhos são os
cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos jovens. Ao contarem as
histórias passadas, eles asseguram o viver da tradição. A figura do contador de
histórias passa a um lugar de destaque, pois nela se encerram não apenas os
saberes que precisam ser repassados, mas também as formas de repasse. O
contador de histórias (griot) tem um papel que vai além do contar, visto que
ele também deve formar outros contadores, pois, deste modo, garantirá a
perpetuação das tradições.
Ao
nos voltarmos para a obra O regresso do morto de CASSAMO (1997), percebemos
este cuidado, ou seja, o autor instala, na figura do narrador, a
responsabilidade de perpetuar a tradição.
Como
falamos na abertura de nosso texto, o início do livro (dedicatória e epígrafe)
já aponta para isso, mas é na figura do narrador que o autor consolida o seu
projeto. O narrador de Cassamo seduz o leitor de forma que este tem desejo de
ouvi-lo, é impossível a realização da história sem a sua voz. Há interação
entre o narrador/contador e os seus leitores/ouvintes: homens, mulheres ou
crianças o ouvirão com atenção, pois ele cria um ambiente que permite muitas
leituras e aprendizados com uma única história. O conto “Nyeleti” exemplifica
isto.
Esse
conto trata de uma temática básica: dois jovens disputando o amor de uma moça.
Um é amado, o outro rejeitado. O amado parte para fazer fortuna, e o rejeitado
aproveitando a ausência dele, usa um feitiço que encanta a jovem, e esta casa
com ele. Quando o amado retorna, há uma disputa, e o final não é feliz, pois a
moça acaba ficando sem nenhum dos dois.
O
narrador seduz o leitor, instaurando um clima poético, pois as personagens e
seus atos são descritos a partir de metáforas da natureza. Na abertura do
conto, ele convida o seu interlocutor a prestar atenção numa papaieira, com
isso ele exemplifica o espaço de sua história. O narrador nos coloca tanto na
posição de ouvintes, sentados no chão, quanto na posição de leitores que podem
imaginar o cenário.
Queremos
nos ater, contudo, às inúmeras temáticas possíveis de serem depreendidas desta
história. Sabemos que muitos são os sentidos que um texto pode ter, mas,
particularmente neste conto, pensamos em alguns sentidos pedagógicos que podem
ser transmitidos numa contação para público misto.
Há
toda uma crítica à partida do jovem amado, pois este abandona sua terra e sua
amada para ir em busca de dinheiro, assim desvincula-se das tradições, abrindo
espaço para que o segundo entre em jogo. Malatana, o rejeitado, tenta seduzir
Nyeleti, porém não é bem-sucedido, então decide partir e buscar artifícios
religiosos: o feitiço. Assim o rejeitado passa a amado, porém, não age de forma
honesta, pois ele sabe que a jovem não o ama e que já fora firmado um
compromisso de lobolo. Nyeleti também erra, pois na ausência do amado ficara
ouvindo a voz de Malatana, ou seja, deixando que seu coração tivesse
esperanças, quando ela estava comprometida com o jovem Foliche.
Em
“Nyeleti”, o narrador, nos fala do respeito às entidades sagradas da natureza,
pois é na floresta e nas águas que Malatana busca o feitiço. Ao descrever
Foliche voltando agressivo como um tsotsi, relembra que o país é formado por
diversos grupos, cada um com suas características. O conto é pedagógico, no
sentido de ensinar aos mais jovens algumas tradições: cuidado com a natureza,
pois ela abriga o sagrado; o uso do feitiço não pode ser de qualquer forma; o
poder da palavra está acima de tudo, pois havia compromisso de lobolo, o qual
foi quebrado quando Nyeleti abandonou a casa dos pais para viver com Malatana.
Independente
de quem seja o público, o conto se presta a ensinar alguma coisa, seja para uma
moça ou para um moço que deseje casar, ou ainda para uma criança ou um velho,
que ouvirá a história pelo seu encanto de ser história.
Ana
Mafalda Leite (1998) prefere usar o termo oralidades, que permitiria dar conta
de diferenciar a maneira como os escritores se relacionam com as histórias
orais e com as línguas. Ela postula que existem três tipos de apropriação da
oralidade: oralizar a língua portuguesa; hibridizar, através da recriação sintática
e lexical; ou interseccionar com as diferentes línguas africanas. Percebemos
que Cassamo faz uso da intersecção, pois ele constrói as frases usando palavras
de diferentes línguas. Faz uso de onomatopéias, e escreve algumas palavras de
forma que venham marcar cada segmento do texto com um ritmo diferenciado. Além
disso, o escritor insere palavras inglesas nos textos, as quais, geralmente,
são usadas nas atividades financeiras de compra e venda de produtos ou de força
de trabalho.
Ao
final do livro é inserido um glossário, pois a ausência deste impossibilitaria
aos de fora terem uma boa compreensão do texto.
As
estratégias narrativas usadas pelo autor combinam elementos da modernidade e da
tradição. Da modernidade, usa a fragmentação: seja nos aspectos linguísticos,
seja na construção das histórias; da tradição, recupera os aspectos culturais
fundamentais, ao mesmo tempo em que questiona as heranças negativas ainda
presentes na sociedade moçambicana.
Cassamo,
através deste narrador, se constitui contador de histórias, inscrevendo em seus
textos uma visão crítica tanto do contexto social, quanto da própria arte de
narrar e escrever.
Pelo
viés de Stuart Hall (2006), uma das figuras mais importantes na área de estudos
sociais da atualidade, uma cultura nacional é uma comunidade imaginada. As
nações são formadas por diversos povos, logo abrigam diversas culturas. Em cada
nação há uma cultura dominante, e geralmente, a sua dominação se dá ou se deu,
através de processos violentos. Ao discutirmos a identidade de uma nação,
“devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para
‘costurar’ as diferenças numa única identidade”, (HALL, 2006 p.65).
O
contexto africano, mais especificamente moçambicano, vive este processo de luta
para a construção desta cultura nacional. A literatura tem registrado os
inúmeros embates culturais que o país tem vivido. Ao olhar a obra de Cassamo, e
através dela, pensarmos este momento de construção da identidade nacional,
verificamos que a sociedade atual tem lutado contra a globalização, que tenta
exterminar todas as culturas. Sabemos que a luta é desigual, e que a oponente
globalização possui armas poderosas, porém Stuart Hall (2006, p. 58) nos aponta
que “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da
herança” são os conceitos constituintes de uma comunidade imaginada.
A
Literatura, junto com outras artes e em parceria com algumas ciências, tem
buscado construir esta comunidade imaginada. Na obra de CASSAMO (1997),
percebemos que há voz para homens e mulheres, não fazendo distinção de gêneros;
espaço para jovens e velhos, abrindo mão dos preconceitos de idade; ambiente
para brancos e negros, independente dos julgamentos errôneos a respeito de
raça; discussão dos diversos grupos culturais e religiosos do país, sem
julgamento de superioridade ou inferioridade; convivência de oralidade e
escrita, não atribuindo a uma ou outra, aspectos mais ou menos positivos; e por
fim, lugar para modernidade e tradição, discutindo as contribuições de ambas
para uma vida melhor.
A
memória e a oralidade, desta forma, contribuem para o processo de construção da
identidade moçambicana, no momento em que homens e mulheres falam como Lucas,
personagem central do conto Casamento de um casado : “- É do meu primeiro
casamento: lutar pela nossa terra!” (CASSAMO, 1997 p.77)
Harmonia contraditória: palavras finais
O
movimento de regresso às tradições e a terra é a ênfase desta obra de Suleiman
Cassamo. Nela o autor apresenta uma mescla de culturas que dividem o mesmo
espaço: Moçambique. Através do hibridismo cultural ele procura afirmar uma
identidade nacional moçambicana: é na diversidade cultural do país que o autor
encontra os ingredientes de seus contos, que darão novo sabor à terra.
Benjamin
postula que é necessário que a história seja desvendada, não apenas os fatos
históricos que se encontram registrados nos livros oficiais, mas também aqueles
que correspondem aos relatos orais do povo. Segundo ele, é preciso recuperar o
imaginário dos oprimidos, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças e nos
testemunhos orais.
Percebemos
que Cassamo busca, através da memória, recuperar os fatos importantes da
história e da tradição moçambicana. O autor promove um encontro de culturas ao
colocar num mesmo espaço, o livro: as histórias do patrimônio oral e os relatos
das dificuldades cotidianas da vida no campo ou na cidade.
A
concepção de tradicional na obra de Cassamo não pode ser compreendida como
conservadorismo simplesmente, visto que ela abre espaço para o desenvolvimento
de uma outra versão da História de Moçambique, contada e experimentada pelos
sujeitos cindidos que a (pós) modernidade tem criado. Aos leitores/ouvintes
resta decidir entre os encantos modernos e a tradição; ou ainda buscar este
“novo”, fusão do moderno e do tradicional, que é proposto por Homi Bhabha:
O
trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja
parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como
ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como
causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o como
um “entre-lugar” contigente, que inova e interrompe a atuação do presente. O
“passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver.
(BHABHA, 2007 p.27)
A
construção de identidades nacionais modernas, a partir do que expusemos, deve
privilegiar o contato dos diferentes, numa relação de paridade. A literatura e
as artes têm apontado para a existência de uma harmonia entre idéias
contraditórias. Cremos que, apesar de parecer uma ideia romântica, essa é a
única porta para um mundo “pós-moderno” melhor.
Referências
BAUMAN,
Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
1999.
BENJAMIN,
Walter. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985 (Coleção
Grandes Cientistas Sociais).
BHABHA,
Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
BOSI,
Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhias das
Letras, 1996.
CASSAMO,
Suleiman. O regresso do morto. Lisboa: Ed. Caminho, 1997.
COUTO,
Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminhos, 1992.
HALL,
Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP and A,
2006.
LEITE,
Ana Mafalda. Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri,
1998.
MOREIRA,
Terezinha Taborda. O vão da voz : a metamorfose do narrador na ficção
moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC-Minas, 2005.
ROSÁRIO,
Lourenço. Singularidades II . Maputo: Texto Editores, 2007.
NR - Este texto é uma readaptação do texto Regresso do
Morto: a vida escondida na obscuridade da morte, apresentado como trabalho de
conclusão da Disciplina: Oralidade Memória e Tradição (PPG-Letras/UFRGS) em
2007/01. Logo após foi comunicado e publicado no III Encontro de Professores
Literatura Africana na UFRJ.
- Rosilene
Silva da Costa - Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e mestranda do Programa de Pós- Graduação em Letras da
referida universidade, na especialidade Literatura Brasileira, Literatura
Portuguesa e Literaturas Luso-africanas. Email: lenecostas@hotmail.com
Maputo, Quarta-Feira, 1 de Maio de 2013:: Notícias
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