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23 abril 2013

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR
Aurélio Furdela


A leitura de um livro que neste 2013 completa dez anos de existência, pode acrescer o desgosto que se tem na vida sobre a natureza mais questionada pela humanidade: a morte. A morte sempre será mais uma. Mas esta, retratada no “De Medo Morreu o Susto” (2ª Ed. Imprensa Universitária, 2003) de Aurélio Furdela, o “mais uma vez” que se aplica não se refere à repetição dos actos, mas à forma como o caos é retratado.

Aurélio Furdela sabe como contar as suas peripécias de um mudo que não chega a fazê-lo como uma narrativa escrita. Começa assim… como se o que dirá não será, no fim, um vaticino, anúncio de uma morte ou falecimento, mais uma frustração, mais uma enrascada em que a condição humana nos impõe, como é a morte, o medo ou o susto como o autor destaca um dos contos do livro.
Na verdade, ciente de que a sociedade moçambicana está saciada de desgraças que imperam lágrimas e terrores com cicatrizes eternas, o autor de “De Medo Morreu o Susto” pauta por rir-se da desgraça do vivo-morto e vice-versa. Ou até, podia simplesmente chamá-lo de Mafa-Vuka, aquele que morre e acorda:
“Diante de Mafa-Vika tinha-se sempre uma nítida sensação de se estar perante um ser imaterial, quase fantasmagórico. Falava calma e pausadamente, com gestos demorados, vagarosos como passos de uma noite de Inverno: não dispensava pressa a nada. Parecia ter o tempo deste e do outro mundo controlado no olhar…” (p.15)
Esse conto, como pontapé de saída, é capaz de definir o presépio em que é aplicada a existência como uma estrada, onde não se veio para ficar, veio-se como se irá. “a morte é uma viagem digna de ser empreendida”, como dizia o personagem Mafa-Vuka no texto com mesmo título.
É nessa expressão de mortos que acordam, ou vivos que morrem vivos que Aurélio Furdela vai contar com o sarcástico humor as suas nove estórias, olhando para aquele assunto que, embora triste, é daqueles que a qualquer hora pode fazer romper do âmago o riso distante.
O conto “A morte de Jowawa” (p.19-20), por exemplo, encaixa-se no retrato obscurantista habituado nas convivências diárias. Aquela morte em que a vítima dos deuses, apenas teve o corpo a repousar durante dias, mas o coração continuava a clamar espaço entre os vivos, palpitando com uma saúde que o próprio Jowawa não podia aguentar mais, nem por vontade própria. Daqueles vizinhos que suspeitam feitiço da esposa do finado, que ainda não morreu, estando num estágio incógnito de permanência entre os vivos.
Uma morte não certa, indecisão permanente. Um conflito em que o leitor não é chamado a resolver, pelas narrativas fechadas de Furdela, ao mesmo tempo que os pontos finais bruscos que o autor escolhe, podem desiludir a espectativa.
Aliás, quando li esse conto no específico, recordei-me do velho Mariano, da obra “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (Ndjira, 2002) do escritor Mia Couto em que o referido personagem permanece no mesmo estado, meio falecido e meio vivo. O seu coração ainda palpitava mas o corpo estava num silencioso repouso e não tinha força nenhuma se não esse motor que turbinava sem parar, facto que até o médico que o examinou ficou sem explicação, principalmente quando perguntado: ele morreu ou ainda está vivo?
Ciente que dessa feliz semelhança, recordo-me também da que é assim que se contam estórias como essas, em noites de amanhecer sentados em grupo revivendo esses insólitos que só vem de um absorvedor de ideias retalhistas. O “De Medo Morreu o Susto” é a escolha de Aurélio Furdela em retratar o retalho do grosso que se vive na terra.
É grosso, por exemplo, o bem que a crença faz ao Homem, mas é retalho, os males que os homens que alimentam essa fé aos outros fazem, ao olhar o conto “Amén, pessoal” (p.27-35) onde um povo da aldeia chamada Cumba Li Ethele que vivia uma seca interminável, capaz de tirar todas as esperanças dos aldeões sobre o futuro das suas vidas, é prometido por um pastor que cairá chuva em dois dias desde que à Deus seja dado o que Lhe é roubado. “Com maldição sois amaldiçoado, porque me roubais a mim, vós, toda nação” – diz a bíblia lida pelo pastor a referir-se ao dízimo não dado ao “Senhor”. Com todo o remorso de roubar à Deus e com a mensagem enviada por esse divino de que as chuvas solver-se-ão dos céus em dois dias, o povo deu tudo de si, até os régulos entregaram as casas  em gesto de devolver ao “Senhor” o que a Si pertence, mas qual chuva veio?
O próprio conto “De Medo Morreu o Susto” (p.53-56) que o autor escolheu nomear o livro, não é caso de rir-se do medo que o personagem Susto, nome dado por ser um problema incorrigível de “Medo” que chega a confundir peixe e formigas com cobras e lagartos. Susto é um autêntico apavorado que chega a morrer em baixo da cama, enquanto por cima, a mulher, Mariazinha, encontrava-se com um homem, que o convidou por incumbência do marido com o intento de “dar uma lição” ao perseguidor da sua esposa que já não se servia da prostituição para sobreviver desde que se casou consigo.
Ao ouvir que o homem que estava com sua esposa tinha matado outros maridos das mulheres com quem amantizou, Susto, escondeu o medo dentro do seu coração que parrou de funcionar só de imaginar-se esmagado diante da sua esposa pelo homem que ele mesmo prometeu “dar lição”. Se tivesse que responder a pergunta que Aurélio Furdela não formulou, sobre o que terá matado o Susto, diria, sem dúvida, que foi a cobardia.
O jeito curto das estórias de Furdela que, até nos levam ao equívoco(?) de terem sido cortadas pela impaciência do autor, além de o marcar singularmente entre vários contistas moçambicanos levam-me a associá-lo ao tão afamado escritor brasileiro Machado de Assis que, para mim, tem mais contacto com o autor de “De Medo Morreu o Susto” particularmente  pelo tratamento da morto e vida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
NR - “De Medo Morreu o Susto”. 2ª Edição – Imprensa Universitária, Maputo, 2003. 61
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  • Eduardo Quive

Maputo, Quarta-Feira, 24 de Abril de 2013:: Notícias



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