Em entrevista
ao “O País”, Mia Couto fala da sua relação com as palavras, da literatura e da
política. Uma visão acutilante de quem fez da escrita a sua arma de combate.
Escritor moçambicano, Mia Couto |
No seu livro “O gato e o escuro”, o Mia agracia-nos com uma
história sobre nossos medos e sobre o universo infantil que, na verdade, nada
mais é do que o nosso próprio universo. Temos muitos medos, fantasmas não
resolvidos e que são um factor de permanente perturbação?
O medo! bem, agora vou recorrer ao meu lado de biólogo. o medo é
uma espécie de grande conselheiro que nos avisa dos perigos. Há uma força tão
poderosa dentro de nós e eu acho que toda a nossa vida é orientada em função do
medo e de superação dos mesmos. A história que eu conto é a maneira de como um
gato poderia ser uma criatura qualquer, enfrentando esse receio, tratando
aquilo que é o objecto do medo, que seria o escuro, como um familiar, um
parente, ou alguém que é parecido com ele.
A guerra
será um desses medos? Uma espécie de caixa de demónios que temos medo de abrir?
É sem dúvida. Eu acho que o maior medo dos moçambicanos é que se
reinstale o clima de guerra. Havia uma apreciação de que tudo isso era frágil,
porque, se nos lembrarmos bem, as pessoas não queriam muito lembrar-se do tempo
da guerra. Não fizeram como os sul-africanos, que criaram comissões que
apurassem a verdade, para se saber quem foi o culpado, que responsabilidades
existiram, etc. uma das coisas que trazem alguma aflição é estarmos perante uma
possibilidade de se reinstalar um clima de violência e de guerra. O que eu
sinto é que há uma espécie de um sentimento de desamparo e as pessoas
precisariam - não é só a Estrada Nacional Número Um que precisa de ser
protegida, mas há também uma estrada que passa por dentro de nós - da estrada
da esperança, que também precisa ser protegida. Precisamos de vozes que
assegurem que alguém está a tomar conta da situação.
Como é
que Mia Couto vê a actual situação do país? O expectro de retorno à guerra. Por
que ao fim de 21 anos de paz, estamos perigosamente a regressar à guerra?
Mais do que o silêncio, eu acho que nós não avaliamos
exactamente por que é que aquela guerra nasceu. Eu acho que nós não entendemos
a guerra. Não era só nesse sentido que me estava a perguntar, de entender quem
foi o responsável e de se prestar contas. Nós percebemos e temos uma certa
análise que não devia ser feita apenas por via do discurso político e
ideológico. Quer dizer, para a Frelimo, a razão da guerra é razão clara,
simples e quase simplista, e para a Renamo também. É como se estivéssemos
perante uma disputa ideológica, na presença duma proposta comunista, como diria
a Renamo, e terrorista, como diria a Frelimo. Eu acho que perdemos uma
possibilidade de ir ao fundo da questão, porque é preciso falar da política num
sentido profundo, para entendermos que erros é que cometemos, para melhor
administrarmos o país. Penso que o problema da actual situação que se vive no
país não está só na Renamo (...), é todo um país que está em pânico, que está
receoso e precisa que garantam essa viabilidade, aquilo que eu chamei “estrada
da esperança que passa por nós”. Continuo a pensar que a África no seu
conjunto, apesar de dar um passo em frente e outro atrás, regista uma evolução.
Hoje, há países que são democráticos, mesmo que seja nessa democracia
representativa, digamos, mas se compararmos com aquilo que havia há 10/15 anos,
a situação alterou-se. Entretanto, é preciso ser verdadeiro. O que me parece é
que se criaram, olhe para o nosso próprio caso, discursos triunfalistas e
cor-de-rosa e que, de repente, não é aquela surpresa que tem problemas básicos,
mas também problemas de saber para onde é que aqueles recursos vão. Sozinho,
esse discurso cria riqueza perante um cenário de pobreza.
Numa entrevista, numa escola em São Paulo, com meninos do ensino
secundário, Mia é citado a dizer o seguinte sobre a sua participação política,
como militante da Frelimo, num certo contexto da história: “É a grande lição
que tiro, que também me ajuda hoje a estar longe desse movimento de libertação,
que se conformou e se transformou naquilo que era o seu próprio contrário”.
Mantém a
ideia de que a Frelimo se desvirtuou?
Mantenho, embora eu ache que dentro da Frelimo exista,
obviamente, linhas. Sinto que a Frelimo já aceitou, quer dizer, esta é mais uma
prova da democracia. Acho que ainda existe ali, não pretendo diabolizar, não
faço esse tipo de discurso de aproximação, mas de facto o que há ali é uma
grande procura. Por exemplo, quem são os grandes militantes que vejo entrar?
São os empresários de pequenas, médias e grandes empresas, que procuram na
política uma bengala ou um apoio para fazer negócios. Há ali uma espécie de
cumplicidade entre a política e o poder.
Disse, noutra entrevista, que a Frelimo de hoje se esqueceu de
que não é a mesma de ontem e que continua a estar apegada a este poder do termo
da palavra Frelimo...
A Frelimo tinha tantos lemas e um deles é que não se tratava
agora de substituir, fazer uma mudança de turnos daquilo que se chamava, na
altura, “os exploradores do povo”. portanto, acho que essa mensagem permanece
válida. A mim não importa se é homem ou mulher, negro ou branco, o dono dos
meios de produção e quem estará a estruturar a força de trabalho do outro.
Tentamos fazer uma ruptura, e penso que essa ruptura foi feita. Lembre-se que
havia um lema que era “escangalhar o aparelho do Estado colonial”. Acho que não
é o quanto fomos capazes de criar e que fosse inclusiva, sobretudo porque
vivemos isto em África, que é a independência e, a seguir, os mesmos que
foram afastados e excluídos durante o período colonial criam uma elite que, por
estar mais próxima da cultura, da formação académica e de intelectuais, produz
muito esse modelo. Já não está na sua vontade, querer ir ou não, mas a verdade
é que aquele modelo, o modelo que nós aceitamos seguir, é um modelo que produz
pobreza.
Em “O último voo do flamingo”, o personagem diz: “Na minha vila,
havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que
esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra
raça”. As nossas elites estarão a fazer reprodução de um modelo do passado, não
é? Porque isso mudou a mão, mudou a raça de quem fazia, mas na essência o que
era feito está sendo feito por igual.
Eu acho que é uma elite que se constrói por imitação daquilo que
são os sinais de poder que chegam a partir de fora. Há um apelo para a
auto-estima, é um discurso que eu acho positivo, pois nos orgulhamos de ser
quem somos e que encontramos, nessas diferenças que temos com os outros, alguma
coisa que não usamos para confrontar, para saber se somos maiores ou menores
que os outros, mas construir aquilo que é o nosso próprio orgulho nacional.
Acho também que essa elite é aquela que corresponde e que, quando eu me juntei
à revolução nacional, era como se fazia no tempo colonial a exibição.
Elites:
as económicas fazem ostentação; e as intelectuais, que papel? Aniquilamento?
Omitiram-se! Eu penso que este regime fez uma coisa: tornar o
intelectual não funcional. Hoje eu questiono-me: Onde é que eles estão? São
poucos, e talvez fazem propaganda de discursos feitos de uma outra corrente filosófica.
Agora, a económica, não me parece que o país esteja a produzir e a incentivar
esse pensamento independente. Porque, para se estar independente, tem que se
ter também uma reflexão soberana sobre si próprio, e nós continuamos a
reproduzir um discurso que é fundamental apontar, que se cinge em atirar culpas
a alguém ou ao passado.
Penso que é uma falsidade pensarmos que é simplesmente
construindo escolas e criando todas as condições materiais que se pode resolver
um problema de fundo, que hipoteca todo o nosso futuro. Isso porque nós sabemos
e estamos a acompanhar todo esse filme, como é que a qualidade do ensino está
degradada e a escola passou a ser um local onde se ensina aquilo que será a
grande “punhoca” deste país. A necessidade de aniquilar pessoas é uma espécie
de assassinato simbólico de algumas pessoas que se destacaram na sociedade, ou
tenham algo forte na cultura e outros sectores e que, imediatamente, são tidas
como uma ameaça. Penso que cada país tem que inventar os seus heróis. Há um discurso
que existe que não é verdadeiramente baseado na história, mas é baseado naquilo
que é a intenção política. Todos os países fizeram isto. Se pegarmos no caso de
Ngungunhane, havemos de encontrar ali uma figura mística, e penso que esta
mistificação é importante, mas precisa ser feita com alguma verdade. É preciso
percebermos que em relação à parte desses heróis - não estou a falar dos heróis
de libertação nacional, pois esses são mais consensuais -, há aqui uma
dificuldade da nossa parte de dizer às novas gerações que os heróis são pessoas
humanas. Portanto, têm falhas, têm deficiências e que não devemos procurar
endeuzá-los.
Num artigo seu intitulado “Os sete sapatos sujos”, escreveu que
“mais do que uma geração tecnicamente capaz, necessitamos de uma geração capaz
de questionar a técnica, de repensar o país.
Como vê o
papel da nossa Educação?
Essa resposta é óbvia. A partir do momento em que se banalizou o
facto de que os alunos passam porque compram professores e compram provas, essa
banalização de um clima passou a ser tamanha, quer dizer, o professor
ensinou-nos a fazer isso no sentido de reproduzir valores.
Em os “Sete sapatos sujos”, escreve que temos dificuldades de
nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de
um sonho. Que o maior problema de Moçambique está na sua incapacidade de gerar
um pensamento produtivo, ousado e inovador.
Acha que nos limitamos a aplicar fórmulas
pensadas por outros?
Eu receio bem que, sim, e penso que, neste momento, estamos na
maior pobreza. Não só pobreza material, mas de procura de um bom caminho. Penso
que a forma como se repetem fórmulas, a maneira como se dá espaço àquilo que eu
chamo “papagaios políticos” e que repetem até ao infinito, até aquelas que são
as palavras-chave, deixam-nos com saudades de um momento em que apareciam
outras vozes. Recorde-se, há uma escritora nigeriana que diz “no período da
história única, há apenas uma voz”, e nós corremos o perigo de termos uma única
voz e que vai dialogando connosco. Não posso ter nenhuma simpatia por esse tipo
de atitude. E parece -me que há uma coisa que está associada ao emblema e, a
partir do momento em que o fulano tem um poder político, tem que mostrar
através desses sinais. Tem uma pequena cultura por parte de quase toda a gente.
Eu quando vou comprar um carro, por exemplo, perguntam-me: “mas essa marca?
Essa marca não é compatível com o seu estatuto”. É quase uma relação comparada
a nível da sexualidade essa figuração do carro que eu acho que vale a pena
questionar.
A
dinâmica produtiva do Mia nada tem a ver com o panorama geral da literatura
moçambicana. Em termos práticos, são poucos os escritores em Moçambique que
publicam com regularidade. O que está a acontecer com a literatura moçambicana?
Sabe o que é que faz produzir ideias? São ideias. Se você viu os
grandes momentos em que este país teve criatividade, o Rui Nogar, Craveirinha e
outros, é porque havia nessa altura núcleos de pessoas que se encontravam em
cafés e restaurantes, ali na baixa, nos clubes, nas associações, etc. - e eu
acho que a Associação dos Escritores cumpriu com o seu papel - que produziam
ideias e debatiam. Penso que houve, nos últimos tempos, algum relaxamento,
acabamo-nos vergando para aquilo que são os valores do mercado, que eram vivos
e que produziam vida. É preciso perceber que um jovem que queira trilhar este
caminho depara com um monte de dificuldades, sem o apoio nem da família, nem do
governo. E uma outra coisa é a “morte” da escola, é preciso perceber que
este jovem se comunica na sua língua materna. Às vezes, tem sim alma de
escritor, mas a dificuldade está em transmitir as suas ideias para o papel.
Espero que apareça uma nova corrente. É preciso que o Estado não
se demita de certas coisas.
In: O PAÍS – 27.06.2013
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