O REGRESSO DO MORTO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO*
Este ensaio tem como objeto de estudo o livro O Regresso do Morto,
de Suleiman Cassamo, autor moçambicano. Serão discutidos alguns aspectos da
oralidade, memória e tradição como constituintes da identidade nacional.
BREVÍSSIMO HISTÓRICO DA LITERATURA MOÇAMBICANA
O apego à terra é uma característica marcante nos moradores das sociedades
rurais. Na maior parte das sociedades africanas a vida é rural. O processo de
urbanização está a ocorrer gradualmente após as independências e fim das
guerras civis, daí a literatura africana ser repleta de cenas de ambientes
rurais. Nestes ambientes não urbanizados são guardadas as tradições: expressas
no respeito aos mais velhos, na importância da palavra falada (seja no acto de
falar agindo no mundo, seja no acto de contar, a fim de modificar ou entender
alguma coisa do mundo), na valorização dos elementos da natureza, na reverência
aos antepassados falecidos, enfim, em todos os elementos que de alguma forma
identificam os grupos formadores de África.
Moçambique é independente desde 1975 e livre da guerra civil desde 1992, ou
seja, é uma sociedade que ainda está se acostumando com o facto de ser nação,
no sentido moderno.
Está dividida entre a vida rural e a vida urbana. Aqueles que abandonaram o
campo, para empreender uma nova vida na cidade, geralmente acabam se afastando
dos princípios e costumes da vida rural, os quais são fundamentais na
construção da identidade cultural do país.
A assimilação cultural exigida para a ascensão na escala social obriga os
moçambicanos a abandonarem as suas raízes culturais e religiosas. Para ser
assimilado pela cultura branca europeia (dominante mesmo após o processo de
independência) é necessário falar português, deixando de lado os dialetos do
país; estar inserido no mundo letrado e de alguma forma abandonando as raízes
da oralidade; e aceitar os dogmas cristãos, contrários aos princípios das
religiões locais. Estas e outras práticas produzem um processo de
“branqueamento cultural”, pois obrigam o africano a deixar as suas vivências e
aceitar o estilo de vida importado da Europa e de outros lugares.
Este processo de desenraizamento é doloroso, pois, mesmo quando as pessoas
optam por uma vida na cidade e de alguma forma aceitam as regras propostas pelo
sistema dominante, a dor é sentida: há uma quebra no sistema de valores
individuais e grupais. Essa dor está sendo registrada na literatura e nas artes
em geral.
As primeiras manifestações literárias nos meados de 1975 tinham o intuito
de convocar os moçambicanos leitores e os leitores de literatura moçambicana a
repensar as suas posições políticas sobre o país. Nesta época temos a presença
de Luis Bernardo Honwana, José Craveirinha e outros, que, através da
literatura, levantaram a bandeira da independência, denunciando o estado de abandono
e a crise que havia se instaurado com a saída dos portugueses do território
moçambicano.
Os anos passaram e outras pessoas surgiram no espaço literário, porém a
bandeira agora não é de convocação, mas sim de denúncia, pois Moçambique
sofrera um processo de abandono por parte da ONU, durante a guerra civil que
assolou o país. Os primeiros livros de Mia Couto e de Noémia de Souza são
reveladores dos aspectos históricos deste momento. Em Terra Sonâmbula,Mia
Couto (1992) apresenta a situação daqueles que fogem da guerra civil, começando
a viver o desapego da terra e da vida rural: “Quero pôr os tempos, em sua mansa
ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a
vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória,
me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.”
(COUTO, 1992. p 15)
Quinze anos marcam o fim da guerra civil em Moçambique, o cenário teve
algumas modificações, porém as questões relativas à tradição e a terra ainda
são importantes. O processo de assimilação não é uma prática tranqüila, pois os
moradores do mundo rural ainda precisam abandonar suas raízes tradicionais. A
literatura continua o seu registro, porém a situação não é de apenas denúncia,
o papel dos escritores da atualidade é também o de resistir à imposição da
cultura européia. Muitos são os nomes que surgem no cenário da atualidade: Mia
Couto continua escrevendo, e talvez seja o mais conhecido escritor moçambicano;
Paulina Chiziane tem quatro romances publicados; vários poetas e prosadores têm
surgido, entre eles Suleiman Cassamo, autor de quatro livros, publicados em
Moçambique e Portugal.
É sobre Suleiman Cassamo e seu livro O Regresso do Morto (1997)
que passaremos a deter nosso olhar neste ensaio.
VISÃO PANORÂMICA DE O Regresso do Morto (1997)
O Regresso do Morto é uma coletânea de
contos, publicada em 1989 em Moçambique, onde recebeu o Prêmio da Associação
dos Escritores. Em 1997 foi publicado em Portugal e já obteve uma tradução para
o francês. A obra é marcada por um profundo amor pela terra: a terra vista como
a mãe, como símbolo de vida e guardiã dos ancestrais. O autor dedica o livro
aos seus pais: “A meus pais: porque o sangue é veículo da memória”
(CASSAMO,1997 p.07).
Já na dedicatória do livro percebe-se a importância dos antepassados,
marcada não só na dedicatória aos pais, mas principalmente na maneira como se
refere ao sangue e à memória. A memória, ao ser conduzida pelo sangue,
simboliza a vitalidade e força contida num passado; o sangue, veículo da
memória, deixa de ser apenas o elemento natural do ser humano, assume o
compromisso de transmitir às gerações vindouras o passado de uma família,
comunidade, ou nação.
Há, na abertura do livro, uma mensagem aos leitores, onde o autor expressa
o que deseja oferecer através de seu livro: “Que da leitura destes contos vos
fique um leve, levíssimo sabor a terra. O sabor da nossa terra” (CASSAMO,1997,
p.09). Talvez a principal pergunta que nos surja desta nota inicial seja: “Quem
é este leitor?”. Uma primeira tentative de resposta, talvez aponte para um
leitor não-moçambicano. Pensamos, porém que o escritor se refere tanto ao
leitor estrangeiro, quanto ao leitor nacional, pois o livro se presta a dar um
sabor da terra: uma oportunidade para o estrangeiro degustar, e para o
moçambicano um renovo em seu prazer. Inferimos que a literatura, neste caso, o
livro de CASSAMO (1997), passa a ser “um molho” que, além de incrementar o
sabor, faz aumentar o apetite por um alimento já conhecido – a terra de
Moçambique.
Os dez contos que compõem o livro trazem aspectos da vida urbana e rural.
Ao apresentar a vida nas cidades, o autor ora apresenta os moradores bem
sucedidos, ora os habitantes das periferias, com suas tristezas ou
dificuldades. Nestes contos, o autor marca a ambigüidade da vida urbana, que
impõe o afastamento das tradições, mas não consegue eliminar, com os encantos
da pós-modernidade, os conhecimentos e saberes tradicionais.
A temática central do livro é a morte, que ora representa o fim natural da
vida, ora simboliza as dificuldades e percalços cotidianos. Um segundo tema que
pode ser apreendido é a situação da mulher: o autor apresenta as mulheres como
portadoras de força motriz na sociedade. Pensamos que as mulheres podem
significar vida, se opondo, desta forma, à morte.
Os contos são curtos, apenas um é narrado em primeira pessoa, tendo um
aspect epistolar – o narrador é claramente culto e assimilado. Os outros nove
contos são narrados emterceira pessoa, dando-nos a sensação de estar diante de
um contador de histórias. Os elementos da natureza são constituintes do universo
literário africano, pois as culturas africanas estabelecem uma relação de
valoração e intimidade com a natureza. Em O Regresso do morto isso
não é diferente, porém o autor escolhe o elemento terra como principal em suas
narrativas.
Após uma brevíssima revisão da história literária de Moçambique, e uma
visão panorâmica da obra O Regresso do Morto, buscaremos assinalar
aspectos relevantes da tradição, da oralidade e da memória, expressos nesta
obra. Dividiremos nossa análise em duas partes: primeiramente pensaremos sobre
os movimentos da tradição na sociedade moçambicana; logo após, discutiremos
alguns aspectos relativos à memória e à oralidade na constituição da identidade
do país.
OS MOVIMENTOS DA TRADIÇÃO NA SOCIEDADE MOÇAMBICANA
Zygmunt Bauman (1999) postula que a modernidade é marcada por uma profunda
ambivalência, ou seja, pela presença concomitante de juízos contraditórios
sobre o mesmo objeto. Os indivíduos modernos são atraídos simultaneamente por
dois impulsos opostos, deixando-os sem saber qual adotar. Esse desejo de
atender a ambos os impulsos, coloca o sujeito num constante estado de tensão e
de indecisão. A dúvida gera a divisão, advindo daí uma das palavras chaves da
modernidade: fragmentação. A sociedade moderna, fragmentada, apresenta um homem
cindido em seus conceitos, tornando-o agitado, inquieto ou paralisado, pois não
pode se firmar naquilo que acredita, visto que, muitas vezes é ultrapassado, e,
no entanto, não sente segurança diante do novo porque ainda o desconhece. O
tempo presente se constitui em verdadeira guerra, onde passado e futuro lutam,
sendo perdedor no conflito o homem moderno.
A obra de CASSAMO (1997) nos apresenta este homem cindido que habita os
diversos lugares de Moçambique. Em muitos contos de O Regresso do Morto,
este sujeito fragmentário aparece, mas cremos que o mais chocante e que melhor
exemplifica essa fragmentação da modernidade é o conto “Madalena, xiluva do meu
coração”. Fabião (narrador e protagonista do conto) abandonou sua terra, suas
raízes e seu amor em busca da vida na cidade e da assimilação cultural: em
troca recebeu a tristeza de nem ao menos ter coragem para escrever uma carta à
mulher que ama. Esta personagem exemplifica a distância que existe entre o
mundo urbano e rural, e o quanto dói estar inserido na cultura moderna.
Fabião, ao ser assimilado, passa a atender pelo nome de Neves e a ter
costumes de branco.
Não pode assim dedicar seu amor à Madalena, já que ela ficou no campo e é
ignorante no ambiente urbano. Ao justificar o abandono de Madalena, desculpa
também à abdicação das tradições, pois, de certa forma, ele fora obrigado a
recusar suas raízes, a fim de ver o país rescer e acompanhar o desenvolvimento.
Fabião e Neves exemplificam a cisão ou fragmentação da modernidade, a
ambivalência de conceitos num mesmo sujeito. Em um mesmo corpo habita o Fabião,
que ama Madalena, as tradições, e a terra; mas há também o Neves, que reconhece
que, “Estudar é ainda necessário. Fabião busca nos livros o saber para forjar o
ferro da tua enxada, o cobre para tuas pulseiras de Nhancuave, teu nome de
criança que vem dos avôs-dos-avôs, para fazer o teu sabão, o pente e sapatos
para pôr e vir no Xilunguini.” (CASSAMO, 1997 p. 42).
A tradição (do latim traditio, significa entrega) resiste em
muitos outros aspectos do cotidiano moçambicano: no significado dos sonhos, na
aparição de fantasmas, na expressão dos elementos da natureza, etc. O conto
“Vovó Velina” é outro revelador deste traço ambivalente dos sujeitos, visto que
um casal assimilado, da cidade, espera um bebê. Presumese que por viverem no
ambiente urbano e serem letrados têm condições de saber o sexo do bebê por
meios modernos, porém a personagem mãe revela: “Mamana, não falta muito vou ter
bebé. Sonhei, vai ser minina xonguile parece xiluva e xiphatiphati parece
nyeleti. Nome dela vai ser Velina”.(CASSAMO, 1997. p. 71). Embora a vida da
cidade tenha furtado muitas crenças tradicionais do casal, conforme o narrador
do conto nos apresenta, ela não consegue apagar o sentido que os sonhos têm
nesta cultura. Nas culturas tradicionais, os sonhos não são apenas os
postulados freudianos: expressão do subconsciente. Eles assumem o papel de
vidente ou profeta, visto que são anunciadores de coisas boas ou más. O sonho
tanto revela o sexo do bebê, trazendo a boa notícia que muda o ânimo de Vovó
Velina, quanto é portador de maus agouros, como podemos ver no conto “José,
pobre pai natal”. Neste conto é através do sonho, chamado de pesadelo, que a
personagem Maria vê prenunciada a morte de seu marido José:
Levava uma bacia na cabeça e gritava: Ama-rhumbo! Ama-rhumbo!
Ama-rhumbo!... Ia a todo
lado e ninguém comprava. Fechavam portas e janelas, fugiam dela. A bacia
crescia e pesava na
cabeça. Cansada, regressou. Pôs a bacia no chão. Oh, o que ela não viu!...
-Em vêgi de tripa, um morto, Senhora. A rir-me com dentes assim!...
(CASSAMO, 1997. p.60)
Mencionamos que o autor estabelece, a partir do nosso ponto de vista, uma
oposição entre vida e morte, sendo a vida expressa nas personagens femininas.
Laurinda, personagem central, do segundo conto do livro, é moradora da
periferia. Laurinda precisa levar pão para sua família – e isto quase lhe custa
a própria vida e a dignidade, porém vemos inscrita nesta mulher uma força capaz
de superar os maiores obstáculos para preservar a família e a si mesma. Em sua
espera pelo pão, ela faz reflexões sobre a vida cotidiana, e intervém nas
situações corriqueiras indicando a força e o desejo que tem de manter-se
honesta, mesmo quando está em jogo a sobrevivência de sua família.
Laurinda mordeu, outra vez, o lábio, com força. Sentiu o sangue na língua.
Que o sangue sabia a sal, há muito, sabia. Mas misturado com raiva tinha um
sabor novo, um sabor de merda.
Explodiu:
-Sacana! Eu não me vende com pãozinho! Eu não é puta, ouviu? Tem marido,
tem filhos, eu.
Eu... eu... – batia com a mão no peoti – eu não é cadela , ouviu? Você és
moluene! Vai-te
subir, moluene! Mbuianguana! Agora qu’star massar tricô quer dormir com
mulher de dono.
Não tem virgonha. ( CASSAMO, 1997 p. 23)
O autor registra o idioma de Laurinda: o português, língua oficial de
Moçambique, porém repleto de expressões das línguas locais. Este imbricamento
de línguas assinala mais um ponto de resistência das culturais tradicionais à
imposição da modernidade. A convivência das diversas línguas em Moçambique
sabe-se que ainda não é harmônica, pois é necessário falar português, mas
segundo o Professor Lourenço do Rosário:
Da mesma maneira que o português no Brasil, com toda a sua plasticidade,
consegue hoje, responder e corresponder à tropicalidade do brasileiro, o
português africano (de cada país africano), se for amparado e acompanhado,
poderá saber representar e bem a ritmicidade africana. (ROSÁRIO, 2007 p.13)
A temática feminina está presente em vários contos desta obra, embora o
autor não dê voz a essa mulher, suas histórias sempre aparecem na voz do
narrador. Inferimos que o narrador, pelo distanciamento que tem das personagens
femininas, é um sujeito masculino. O conto que abre livro evoca a prática do
tradicional lobolo, na qual o homem oferece alguns bens à família da esposa,
tornando-se assim proprietário dela. Ao marcar a experiência do lobolo, mais
recorrente nas camadas mais pobres, a narrativa demonstra a existência de dois
discursos antagônicos: o discurso feminista, contrário à coisificação da
mulher, e o discurso tradicional resistindo a esse e a outros discursos.
Um ano passou. O marido começou com zangas. Diz Nglina não nasce filhos.
Não sabe porque a lobolou. Não é mulher. Batea-a por tudo e por nada. Com cinto
que tem ferro, com paus, com socos , com pontapés, com tudo. Coitadinha,
Nglina, era uma minina xonguile mas agora ficou velha num ano só. Ngilina é
xiluva que murclhou.
O corpo dói, sim, mas dói é muito muito o coração. O coração ‘sta inchado,
vai rebentar no peito. Nglina, tu vai morrer. Pode ir para casa descansar
sofrimento. Mas qual manera se o pai comeu todo o dinheiro do lobolo no nhonthontho
e no vinho do monhé da vila? Yotatanéé, é melhor não pensar nada. (CASSAMO,
1997 p. 17)
A personagem central desta narrativa não parece ser uma mulher consciente
de que nela estejam impressos conceitos divergentes sobre a constituição
familiar, especificamente a feminina, porém ela vive o conflito comum do homem
moderno, o qual apontamos no início desta sessão: a cisão. Ela acaba
conseguindo sua liberdade, infelizmente, através da morte.
Os mitos e histórias de Moçambique são registrados ao longo dos contos. Em
vários momentos eles aparecem, demonstrando que este processo de modernização e
assimilação cultural pode até conseguir furtar algumas pessoas das suas
origens, mas não é capaz de apagar delas as marcas impressas pela memória.
O conjunto de contos nos coloca em volta da fogueira, diante do griot (contador
de história). Em muitos contos o narrador se transforma no contador de
histórias, conforme veremos adiante, ao falarmos sobre oralidade. Esse
movimento da literatura, ou seja, do escrito, demonstra, novamente, o sujeito
ambivalente. O escritor recria no seu narrador a figura do contador
tradicional, o que nos mostra que, junto da necessidade de belas histórias
escritas, convive a necessidade de belas histórias faladas.
A terra constitui um elemento importantíssimo para o conjunto de contos de
CASSAMO (1997), pois os homens mantêm uma ligação profunda com ela. A terra
representa a mãe geradora de vida, ao mesmo tempo em que é aquela que encerra
um ciclo de vida para dar início a outro na morte. Esta terra, sagrada para a
maior parte dos africanos, tem sido furtada no processo de urbanização e de
assimilação cultural do país. O autor registra este movimento de desapego dos
homens a sua mãe terra, conseqüentemente às suas tradições. Em “O regresso do
morto” (conto que nomeia o livro) vimos que a personagem principal parte para
trabalhar na cidade, ainda muito jovem. O moço sai da sua terra sem a menor
reverência às suas raízes, pois nem mesmo se despede de sua mãe. Ao regressar
(após a noticia de sua suposta morte) não tem o reconhecimento dos seus, causa
espanto, torna-se um fantasma naquele mundo, porém a mãe, representando a terra
e as tradições, o reconhece.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o
moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto
“O regresso do morto”. BAUMAN (1999) após analisar os tempos modernos, aponta a
pós-modernidade como saída, mas não consegue ser otimista. O professor
ocidental afirma: “o que é realmente novo na nossa atual situação, em outras
palavras, é o nosso ponto de observação”.(BAUMAN, 1999, p. 288) Desta forma ele
não dá muitas expectativas para o homem livrar-se do conflito imposto pela
ambivalência de conceitos. Cassamo (também professor universitário em Moçambique),
através do narrador em “O regresso do morto”, diz que, quando o jovem fitou sua
mãe rachando lenha, “o fogo avivou os olhos mortos” (CASSAMO, 1997 p.82). Vemos
nisso uma metáfora de vida e de liberdade que o regresso à casa e às tradições
pode dar ao homem. Estamos diante de dois conceitos, não poderia ser diferente
em tempos modernos ou pós-modernos, cabe a cada um fazer sua opção.
MEMÓRIA E ORALIDADE NA IDENTIDADE CULTURAL MOÇAMBICANA
“A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1985, p. 210):
sendo assim, é forma discursiva que recria e fixa vivências, transformando-as
em interpretações que atravessam tempos e desdobram realidades. Desta forma, o
passado pode apresentar diversas versões, está instalado entre a memória e a
história e encontra na linguagem a sustentação que "reduz, unifica e
aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem
lembrada e as imagens da vigília atual" (BOSI, 1996, p.56).
Para os africanos, particularmente, a memória tem um papel fundamental para
a preservação da cultura, pois na África a tradição e a história foram, durante
muito tempo, repassadas aos jovens, basicamente, por via oral, assim a ausência
de memória equivaleria à perda de parte da história e das tradições. Os velhos
são os cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos jovens. Ao
contarem as histórias passadas, eles asseguram o viver da tradição. A figura do
contador de histórias passa a um lugar de destaque, pois nela se encerram não
apenas os saberes que precisam ser repassados, mas também as formas de repasse.
O contador de histórias (griot) tem um papel que vai além do contar, visto que
ele também deve formar outros contadores, pois, deste modo, garantirá a
perpetuação das tradições.
Ao nos voltarmos para a obra O regresso do morto de
CASSAMO (1997), percebemos este cuidado, ou seja, o autor instala, na figura do
narrador, a responsabilidade de perpetuar a tradição. Como falamos na abertura
de nosso texto, o início do livro (dedicatória e epígrafe) já aponta para isso,
mas é na figura do narrador que o autor consolida o seu projeto. O narrador de
Cassamo seduz o leitor de forma que este tem desejo de ouvi-lo, é impossível a
realização da história sem a sua voz. Há interação entre o narrador/contador e
os seus leitores/ouvintes: homens, mulheres ou crianças o ouvirão com atenção,
pois ele cria um ambiente que permite muitas leituras e aprendizados com uma
única história. O conto “Nyeleti” exemplifica isto.
Esse conto trata de uma temática básica: dois jovens disputando o amor de
uma moça. Um é amado, o outro rejeitado. O amado parte para fazer fortuna, e o
rejeitado aproveitando a ausência dele, usa um feitiço que encanta a jovem, e
esta casa com ele. Quando o amado retorna, há uma disputa, e o final não é
feliz, pois a moça acaba ficando sem nenhum dos dois.
O narrador seduz o leitor, instaurando um clima poético, pois as
personagens e seus atos são descritos a partir de metáforas da natureza. Na
abertura do conto, ele convida o seu interlocutor a prestar atenção numa
papaieira, com isso ele exemplifica o espaço de sua história. O narrador nos
coloca tanto na posição de ouvintes, sentados no chão, quanto na posição de
leitores que podem imaginar o cenário. Queremos nos ater, contudo, às inúmeras
temáticas possíveis de serem depreendidas desta história. Sabemos que muitos
são os sentidos que um texto pode ter, mas, particularmente neste conto,
pensamos em alguns sentidos pedagógicos que podem ser transmitidos numa
contação para público misto. Há toda uma crítica à partida do jovem amado, pois
este abandona sua terra e sua amada para ir em busca de dinheiro, assim
desvincula-se das tradições, abrindo espaço para que o segundo entre em jogo.
Malatana, o rejeitado, tenta seduzir Nyeleti, porém não é bem sucedido, então
decide partir e buscar artifícios religiosos: o feitiço. Assim o rejeitado
passa a amado, porém, não age de forma honesta, pois ele sabe que a jovem não o
ama e que já fora firmado um compromisso de lobolo. Nyeleti também erra, pois
na ausência do amado ficara ouvindo a voz de Malatana, ou seja, deixando que
seu coração tivesse esperanças, quando ela estava comprometida com o jovem
Foliche.
Em “Nyeleti”, o narrador, nos fala do respeito às entidades sagradas da
natureza, pois é na floresta e nas águas que Malatana busca o feitiço. Ao
descrever Foliche voltando agressivo como um tsotsi, relembra que o país é
formado por diversos grupos, cada um com suas características. O conto é
pedagógico, no sentido de ensinar aos mais jovens algumas tradições: cuidado
com a natureza, pois ela abriga o sagrado; o uso do feitiço não pode ser de
qualquer forma; o poder da palavra está acima de tudo, pois havia compromisso
de lobolo, o qual foi quebrado quando Nyeleti abandonou a casa dos pais para
viver com Malatana.
Independente de quem seja o público, o conto se presta a ensinar alguma
coisa, seja para uma moça ou para um moço que deseje casar, ou ainda para uma
criança ou um velho, que ouvirá a história pelo seu encanto de ser história.
Ana Mafalda Leite (1998) prefere usar o termo oralidades, que permitiria
dar conta de diferenciar a maneira como os escritores se relacionam com as
histórias orais e com as línguas. Ela postula que existem três tipos de
apropriação da oralidade: oralizar a lingual portuguesa; hibridizar, através da
recriação sintática e lexical; ou interseccionar com as diferentes línguas
africanas. Percebemos que Cassamo faz uso da intersecção, pois ele constrói as
frases usando palavras de diferentes línguas. Faz uso de onomatopéias, e
escreve algumas palavras de forma que venham marcar cada segmento do texto com
um ritmo diferenciado. Além disso, o escritor insere palavras inglesas nos
textos, as quais, geralmente, são usadas nas atividades financeiras de compra e
venda de produtos ou de força de trabalho.
Ao final do livro é inserido um glossário, pois a ausência deste
impossibilitaria aos de for a terem uma boa compreensão do texto.
As estratégias narrativas usadas pelo autor combinam elementos da
modernidade e da tradição. Da modernidade, usa a fragmentação: seja nos
aspectos lingüísticos, seja na construção das histórias; da tradição, recupera
os aspectos culturais fundamentais, ao mesmo tempo em que questiona as heranças
negativas ainda presentes na sociedade moçambicana.
Cassamo, através deste narrador, se constitui contador de histórias,
inscrevendo em seus textos uma visão crítica tanto do contexto social, quanto
da própria arte de narrar e escrever.
Pelo viés de Stuart Hall (2006), uma das figuras mais importantes na área
de estudos sociais da atualidade, uma cultura nacional é uma comunidade
imaginada. As nações são formadas por diversos povos, logo abrigam diversas
culturas. Em cada nação há uma cultura dominante, e geralmente, a sua dominação
se dá ou se deu, através de processos violentos. Ao discutirmos a identidade de
uma nação, “devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais
contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade”. (HALL, 2006 p.
65)
O contexto africano, mais especificamente moçambicano, vive este processo
de luta para a construção desta cultura nacional. A literatura tem registrado
os inúmeros embates culturais que o país tem vivido. Ao olhar a obra de
Cassamo, e através dela, pensarmos este momento de construção da identidade
nacional, verificamos que a sociedade atual tem lutado contra a globalização,
que tenta exterminar todas as culturas. Sabemos que a luta é desigual, e que a
oponente globalização possui armas poderosas, porém Stuart Hall (2006, p. 58)
nos aponta que “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação
da herança” são os conceitos constituintes de uma comunidade imaginada.
A Literatura, junto com outras artes e em parceria com algumas ciências,
tem buscado construir esta comunidade imaginada. Na obra de CASSAMO (1997),
percebemos que há voz para homens e mulheres, não fazendo distinção de gêneros;
espaço para jovens e velhos, abrindo mão dos preconceitos de idade; ambiente
para brancos e negros, independente dos julgamentos errôneos a respeito de
raça; discussão dos diversos grupos culturais e religiosos do país, sem
julgamento de superioridade ou inferioridade; convivência de oralidade e
escrita, não atribuindo a uma ou outra, aspectos mais ou menos positivos; e por
fim, lugar para modernidade e tradição, discutindo as contribuições de ambas
para uma vida melhor.
A memória e a oralidade, desta forma, contribuem para o processo de
construção da identidade moçambicana, no momento em que homens e mulheres falam
como Lucas, personagem central do conto Casamento de um casado: “-
É do meu primeiro casamento: lutar pela nossa terra!” (CASSAMO, 1997 p.77)
HARMONIA CONTRADITÓRIA: PALAVRAS FINAIS
O movimento de regresso às tradições e a terra é a ênfase desta obra de
Suleiman Cassamo. Nela o autor apresenta uma mescla de culturas que dividem o
mesmo espaço:
Moçambique. Através do hibridismo cultural ele procura afirmar uma
identidade nacional moçambicana: é na diversidade cultural do país que o autor
encontra os ingredientes de seus contos, que darão novo sabor à terra.
Benjamin postula que é necessário que a história seja desvendada, não
apenas os fatos históricos que se encontram registrados nos livros oficiais,
mas também aqueles que correspondem aos relatos orais do povo. Segundo ele, é
preciso recuperar o imaginário dos oprimidos, armazenado nos mitos, nas lendas,
nas crenças e nos testemunhos orais.
Percebemos que Cassamo busca, através da memória, recuperar os fatos
importantes da história e da tradição moçambicana. O autor promove um encontro
de culturas ao colocar num mesmo espaço, o livro: as histórias do patrimônio
oral e os relatos das dificuldades cotidianas da vida no campo ou na cidade.
A concepção de tradicional na obra de Cassamo não pode ser compreendida
como conservadorismo simplesmente, visto que ela abre espaço para o
desenvolvimento de uma outra versão da História de Moçambique, contada e
experimentada pelos sujeitos cindidos que a (pós) modernidade tem criado. Aos
leitores/ouvintes resta decidir entre os encantos modernos e a tradição; ou
ainda buscar este “novo”, fusão do moderno e do tradicional, que é proposto por
Homi Bhabha:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não
seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo
como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado
como causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o
como um “entre-lugar” contigente, que inova e interrompe a atuação do presente.
O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de
viver. (BHABHA, 2007 p.27)
A construção de identidades nacionais modernas, a partir do que expusemos,
deve privilegiar o contato dos diferentes, numa relação de paridade. A
literatura e as artes têm apontado para a existência de uma harmonia entre
idéias contraditórias. Cremos que, apesar de parecer uma idéia romântica, essa
é a única porta para um mundo “pós-moderno” melhor.
*Este texto é uma readaptação do texto O regresso do morto: a vida
escondida na obscuridade da morte, apresentado como trabalho de
conclusão da Disciplina: Oralidade Memória e Tradição (PPG-Letras/UFRGS) no em
2007/01. Foi comunicado e publicado no III Encontro de Professores Literatura
Africana na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da referida universidade, na
especialidade Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Literaturas
Luso-africanas.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro:
Ed. Jorge Zahar, 1999.
BENJAMIN, Walter. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985
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