IDEIAS - LIVRO CRENDICE OU CRENÇA DE JUVENAL BUCUANE: QUANDO OS MANES
ANCESTRAIS SE TORNAM DEUSES
Juvenal Bucuane, escritor moçambicano |
O respeitável e amigo, Juvenal Bucuane,
perguntou-me se teria disponibilidade para ler histórias suas, que pretendia
publicar em livro. Sem hesitar, respondi afirmativamente, pois, ser um dos
primeiros leitores constitui um privilégio.
Dias depois do contacto, recebi o exemplar
intitulado Crendice ou Crença – Quando os manes ancestrais se tornam deuses.
Impelido pela curiosidade, que é congénita no Homem, pus-me me a folhear o
volume. A seguir à ficha técnica, deparei-me com a palavra Prefácio, estampada
no topo da página. Na página seguinte, estava gravado o meu nome, o que deixava
bem clara a minha segunda missão: prefaciar o livro. Confesso que, a partir
desse momento, invadiu-me um misto de sensações: ora o fascínio pela eleição
para leitor de um inédito, ora o nervosismo face aos desafios que me impõe a
tarefa de “parir” um prefácio. É, sim, um parto, por requer caminhos tortuosos.
Trata-se, sobretudo, de encontrar o que dizer, o Inventio, como sabiamente
ensina Aristóteles. A resposta a esta preocupação veio-me sob a forma de duas
questões inquietantes: um Prefácio, o que é? Para que serve? Perante as
interrogações, não resisti ao prazer de citar o venerado professor e estudioso
da Literatura, Francisco Noa: “os títulos, os subtítulos, as epígrafes, as
advertências, os glossários, os prefácios são unidades discursivas paratextuais
que, enquanto verdadeiros adjuvantes leiturais, impõem-se como chaves para a
descodificação da mensagem, remetendo para a significação global do texto.”
(Noa, 2002: 369-378).
Uma vez resolvida a inquietação em torno do
termo prefácio, tomei os paratextos (títulos e subtítulos) como elementos
estruturantes deste adjuvante leitural de Crendice ou Crença – Quando os manes
ancestrais se tornam deuses.
1. O título: Crendice ou Crença – remete
para o domínio psicológico oscilatório de Nfezi e Tonina, protagonistas da
acção. Oscilação entre o absurdo e o verdadeiro, um misto de sensações,
filtradas quer nos diálogos e/ou monólogos, quer no discurso do narrador. No
título está sintetizada a actualização de um imaginário sócio cultural híbrido,
fruto de séculos de contacto e de contaminação mútua entre povos
diversos.
2. Os subtítulos: Quando os manes
ancestrais se tornam deuses – os manes, essas almas dos mortos considerados
como divindades entre os romanos, esses deuses infernais do paganismo, dominam
o subconsciente de Nfezi e Tonina. Com efeito, as sucessivas investidas
do casal Mbelele, com vista à explicação e solução dos problemas que
abalam a sua família, passam pela referência aos espíritos ancestrais, seja sob
a forma de crendice (crença absurda ou ridícula) seja por força da convicção e
fé religiosa (crença). A incontornabilidade dos manes, na vida e destino dos
Mbeleles, atinge os píncaros da transcendência quando aqueles se transformam em
autênticos deuses, esses seres superiores ao Homem que, num
reconhecimento tácito de politeísmo, tanto os venera. Isto é, os manes comandam
a visão do mundo do casal Tonina e Nfezi. Porém, uma visão fissurada, pois,
deixa passar marcas de outras mundividências. Eis, por exemplo, a resistência,
numa fase inicial, de Nfezi em consultar os adivinhos: “ – Foste a
uma mungoma! Que mungoma?! Sabes que não gosto dessas coisas, isso não faz parte
da minha vida. – indignou-se, Nfezi”.
3. Outros títulos e subtítulos: a história
é contada em sete capítulos, numerados e encimados por títulos. Exemplos: 1)
“Tonina surpreende Nfezi Mbelele”. Um título ou a prenunciação do retrato de
uma mulher detentora do pulso de liderança familiar? “Tonina, uma mulher
batalhadora quando a causa era seu reduto familiar.” É, sem dúvida, uma
nova realidade em que uma mulher, valendo-se do poder da palavra, coloca em
causa a hegemonia tirânica do homem, convencendo Nfezi, seu esposo, a consultar
os magos. Desta forma, Juvenal Bucuane surpreende ao trazer uma focagem virada
para o presente, ao invés do resgate do passado distante, que se tornou lugar
comum, na escrita literária moçambicana. 2) “Blindagem ou a inexpugnabilidade
do corpo e do espírito”. Assim apresentado, o título acentua o carácter
oscilatório que domina o universo psicológico das personagens. Ou seja: por um
lado, a crendice na magia dos magos, por outro lado, a crença verdadeira na
invencibilidade do corpo e da alma. 3) “Os tambores rufaram noite adentro”;
“Kufemba – o exorcismo dos espíritos”; “A evasão do xipoko”; “A sucessão dos
rituais”; “Como se transmite vuloyi”. Seleccionei estes títulos, por duas
razões: a primeira tem a ver com o facto de todos e cada um deles sumariar o
relato que se lhe segue, ao mesmo tempo que cumpre uma função instigativa para
o leitor. A segunda decorre da vertente interpretativa. Com efeito, os títulos
em apreço, ao abrigo do tom neutral e por vezes irónico e indagatório em que
aparecem, fazem um apelo a uma reflexão sobre questões ligadas aos espíritos
dos mortos (?), feitiçaria e curandeirismo. São, pois, indagações que ora se
verificam no quotidiano empírico-social das comunidades, ora elaboradas nas
histórias contadas à volta da fogueira, ora recriadas através da sagrada
escrita por escribas como Edgar Nasi Pereira, em Mitos, Feitiços e Gente de
Moçambique: Narrativas e Contos; Aldino Muianga, em Mitos (histórias de
espiritualidade); Aníbal Aleluia, em Contos Fantásticos; Ungulani ba ka Khosa,
em “Exorcismo”, só para citar alguns nomes, da extensa lista de participantes
(alguns anónimos) na (re)invenção da nossa mbenga cultural.
- Aurélio
Cuna
notícias Maputo, Quarta-Feira, 14
de Novembro de 2012
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