LIGAÇÕES TRANSATLÂNTICAS: MARES, MEMÓRIAS E LUGARES NO
TRABALHO DE MÓNICA DE MIRANDA
Se eu estudar, eu procuro
apenas aprender o que se relaciona com o conhecimento de mim mesmo
Michel de Montaigne
Durante
o período compreendido entre 1605 e 1609 o número de publicações
geográficas na Europa cresceu exponencialmente para alcançar a mesma figura que
todos os livros publicados desde o começo da impressão em 1550. Este fenômeno
esteve diretamente ligado ao enorme impacto que a expansão colonial teve
na mente dos europeus. Os Livros queriam transmitir as viagens de
descobrimento, com suas representações de territórios desconhecidos e a
presença mágica de “outras” culturas, tornou-se material de leitura elegida. A
civilização que invadiu a América Latina na
viragem do século 16 foi impulsionada pelo ritmo da explosão criativa conhecida
como a Renascença. A essa luz, a América parecia ser, de acordo com Eduardo
Galeano, “mais uma invenção, incorporada ao lado da pólvora, a imprensa, o
papel e a bússola, no iminente nascimento da Idade Moderna”.
No contexto da expansão
colonial e do nascimento do capitalismo, viajar era um veículo para se conectar
interesses econômicos e políticos aos recursos naturais e humanos. Por mais que
uma reflexão sobre esses impulsos como expressão da interconexão proposto pela
globalização, um número considerável de artistas articulam a experiência
das viagens, migração e deslocamento como a armadura conceitual do
seu trabalho.
Viagens no imaginário de
Monica de Miranda torna-se uma metáfora para o que Walter Mignolo chama de
“ferida colonial”: como uma maneira de explorar seus múltiplos movimentos e da
sua família entre lugares ligados por uma matriz colonial comum, onde ela
constrói o seu próprio mapa emocional em uma variedade dos mediums. Pode-se
argumentar que os lugares escolhidos para o seu trânsito sugerem uma reflexão
sobre a descolonização que nos termos dos zapatistas nos levaria a um mundo que
se encaixa em muitos mundos: uma proposta pluriversal- em
oposição ao universal - à leitura da realidade.
Seguindo a lógica
implícita da política do corpo e em contraste com a geopolítica - que incide
sobre a relação entre poder e espaço - o artista localiza o objeto de estudo no
indivíduo. Neste território da subjetividade, a casa torna-se uma mudança de paradigma,
onde a viagem do pessoal é essencialmente uma tentativa constante de pertencer.
Superando as limitações da política de identidade, a produção artística de
Mónica de Miranda torna-se um exercício de mapamento da sua própria
geografia emocional.
A
Casa como um território delimitado pelo corpo é representado graficamente no
trabalho baseado em texto Come Home to the place you have
never left, apresentado na Carpe Diem como um prólogo para a épica
‘novela’ da sua viagem que se apresenta em capítulos, no tríptico do vídeo Once upon a time. Como exemplo mais convincente da
tentativa de recriar e reinventar a geografia, o tríptico oferece uma rica
panóplia de imagens fragmentárias coletadas durante os trânsitos do artista
através de três continentes. O vídeo tece uma história complexa em que lugares
fictícios e reais cruzam espaços pessoais de memória e desejo de construir uma
narrativa que não é linear.
O
recurso ao uso de mapas em corpos era já visivel em trabalhos anteriores da
artista, como no caso de Where r u from? (2007), agora
nas suas mais recentes produções este processo atinge o seu clímax poético no
que não é dito e fica ausente no processo de misturar lugares com o qual
ela tem laços emocionais - Angola, Rio de Janeiro, Lisboa, Londres e Cabo
Verde - como em um jogo de cartas imprevisível.
No
seu outro trabalho na exposição, Home sweet sour house,
a artista faz uso do desenho para criar uma série de representações de memória
de todas as casas que habitou durante a sua vida. A partir dos contornos
imprecisos de casas de infância até ao seu domicílio atual, o exercício
descritivo é interrompido pela passagem do tempo, enquanto quebrado pelo
conflito de exílio, ou migrações e pela a inquietação da ambigüidade de
sentimentos. O resultado é uma linguagem codificada na necessidade de tradução.
Mais tarde interpretado por um arquiteto em renderings técnicos, os desenhos a
mão tornaram-se placas virgens mostrando layouts sensíveis que, todavia, mantem
as características pessoais trazidos de volta a memória: quartos de proporções
incertas retem os nomes das pessoas que ocuparam os diferentes espaços. Home sweet sour house, mais uma vez, é um repositório
de memória, um arquivo pessoal feito de caligrafias expressivas que reconstroem
o espaço da tradição oral. Oralidade esta , neste caso, ligado com a
maternidade. Através de imagens intercaladas de uma mãe e sua filha que
apresentam uma conexão tão profunda como o oceano onde o individuo
precisa encontrar o rumo. Evocativo das figuras femininas de sincretismo
Yemanjá e Iansã, deusas do panteão Yoruba, mães das águas e úteros de história,
o vídeo liricamente descreve a perda e a dor da separação. O conhecimento oral
constrói um fio condutor que é passado de geração em geração como numa paisagem
de ascendências fragmentadas , onde a continuidade repousa apenas nos
vasos sanguíneos.
O
segundo capítulo da viagem de Once upon a time é
apresentado na Plataforma Revólver na Transboavista, intitulado de An ocean between us, foi possível pela proximidade
artistas para o porto fluvial do rio Tejo, em Lisboa. Em Um oceano entre nós, vemos o porto fluvial e um
navio de carga estacionária se tornar o palco de trânsitos metafóricas: como
uma passagem entre os dois mundos, o forro evoca as viagens que ligavam os
continentes através dos mares, garantindo terreno para o encontro de culturas,
a expansão do comércio, e também o início da escravidão. Concebido como um
conjunto de caixas de luz e projeção de vídeo, um oceano
entre nós lida com a ambiguidade espacial com
tons melancólicos.
Navios para viagens
marítimas, fases em que cordões umbilicais simbólicos unem as partes perdidas:
um oceano e um rio, uma mãe e uma filha, um amor perdido, e a promessa de um
reencontro são elementos de uma catarse. Os vários capítulos desta exposição
itinerante aspiram a apresentar uma arqueologia do eu através de passagens e
paisagens. Nele, a viagem torna-se um veículo de conhecimento, onde a
representação não pode ser confiável como as representações de lugares residem
dentro do reino do inconsciente, e as memórias são as ferramentas para um
exercício de cura da ferida colonial - e pessoal.
Londres, setembro 2012
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