FINALMENTE, Simeão
Cachamba ou Thahula Ndindane, escritor moçambicano de barba rija, estreou-se em
livro. E, por decisão tutelar, o primogénito responde então pelo nome de “A mão
invisível que não é de Adam Smith”, uma obra poética afinal vencedora do
concurso literário organizado por ocasião dos 35 anos do Banco de Moçambique,
por conseguinte a entidade patrocinadora.
Dizemos finalmente
porque, de facto, Simeão Cachamba não é qualquer imberbe nestas coisas de
escrita e de resto toda a sua malta, maioritariamente, até já publicou mais do
que um livro, um dos quais ele mesmo prefaciou, na circunstância “Vozes que
falam de verdade”, a obra primeira do consagrado Marcelo Panguana.
E nisto de prefácios, os
anais da literatura moçambicana têm também registado mais um de Simeão Cachamba
no caso vertente à antologia de poesia intitulada “As palavras Amadurecem”,
editada pelo Diário de Moçambique a propósito dos 10 anos da sua página
literária, Diálogo, na qual pontificam a maioria dos grandes nomes da poesia
nacional como, não podendo citar todos, José Craveirinha, Heliodoro Baptista,
Armando Artur, Eduardo White, Mia Couto, Filimone Meigos, Luis Carlos
Patraquim, Elton Rebelo, Daniel Macaringue, Filimone Meigos, Bassane Adamugy e,
claro, o próprio dito Simeão Cachamba.
Mas, voltando à vaca
fria, a última quarta-feira testemunhou, no Centro Recreativo do Banco de
Moçambique, na Beira, cidade onde o poeta viu cair o seu cordão umbilical, o
lançamento do “A mão invisível que não é de Adam Smith”, o que já havia aliás
acontecido, ao que se depreende, mais discretamente, em Março na cidade da
Matola e em Abril no Instituto Camões, na capital do país.
No evento da Beira, como
de praxe, foi apresentado o autor, pela voz de Maria Pinto de Sá, presidente da
Casa do Artista daquela cidade, e a obra pelo docente da Universidade
Pedagógica, João Fenhane. O autor usou igualmente o microfone para falar de si
e dos contornos deste projecto.
O livro de Simeão
Cachamba consta de três cadernos. O primeiro leva precisamente o mesmo título
da obra, enquanto os dois restantes são “A solidão que não é de Garcia Marques”
e “A viragem que não é de Castro Soromenho”.
Mas a pergunta que não
cala é mesmo esta:
Que estranha mão
invisível que não é a de Adam Smith/Que mexe os cordelinhos da economia de
Moçambique/Que é capaz de levantar tempestade num copo de água/E as leis do
mercado e a propriedade desonra e magoa?
Como se impunha,
convidámo-lo também a dois dedos de conversa sobre a obra que acabava de lançar
e sobre o estágio da nossa literatura nos dias que correm e quejandos.
Começámos mesmo por
pedir ao autor que se explicasse sobre a escolha de um título tão sugestivo
como este: “A mão invisível que não é de Adam Smith”. E a reposta, sem
evasivas, veio nos seguintes termos:
“Há um filósofo chamado
Adam Smith, considerado o pai espiritual da economia, cujo livro referencial
intitula-se ‘A riqueza das Nações’. Nesse livro, Adam Smith fala dos
pressupostos da economia de mercado e uma das coisas que diz é que o interesse
geral de uma sociedade pode ser realizado pelos interesses particulares, por
exemplo, quando um padeiro faz pão resolve o seu problema mas acaba resolvendo
também o problema dos outros.
Existe, por
conseguinte, uma mão que a gente não vê mas que traz soluções para os nossos
problemas. Mas não é dessa mão que falo neste livro, daí o título “A mão
invisível que não é de Adam Smith”.
Tributo ao jornalista
Santos Artur
E o que é que o livro em
si nos sugere?
Como sabemos, o nosso
país enveredou por um sistema de economia centralizada que no entanto deu no
que deu. Fizemos depois uma reviravolta. Então, este livro fala das coisas que
aconteceram entre a Independência Nacional e o período em que entramos para a economia
de mercado.
Numa leitura rápida do
livro deparámos, de forma algo surpreendente, com o poema “Reza Emília” (pág.
47) à memória do jornalista Santos Artur, citado como autor de uma notícia
sobre o apodrecimento de feijão nos armazéns da Companhia Grossista de Produtos
Alimentares (COGROPA) que induziu o Presidente Samora Machel ao lançamento da
Ofensiva Política e Organizacional no termo da sua visita à cidade da Beira em
Janeiro de 1981. O que é que se passou afinal?
“Sim, foi mesmo assim. O
presidente Samora Machel desencadeou a Ofensiva Política e Organizacional no
termo da sua visita à cidade da Beira em Janeiro de 1981, na sequência de um
artigo do nosso colega Santos Artur sobre o apodrecimento de feijão nos
armazéns da COGROPA. O Santos Artur saiu da redacção com a Celeste,
repórter-fotográfica, para uma reportagem e voltou com a história desse
apodrecimento de feijão no armazém da COGROPA, numa altura em que o presidente
Samora estava de visita à Beira. Eu era chefe da reportagem e disse ao Santos
que fosse para casa e que se houvesse problemas no dia seguinte depois de o
artigo sair que ele permanecesse em casa. Eis que, no dia seguinte, o
presidente Samora começa o seu comício na Manga, precisamente fazendo alusão a
essa situação do feijão apodrecido. A partir dai, regressado a Maputo,
desencadeou as famosas ofensivas a várias instituições. Foi marcante e achei
que podia fazer essa dedicatória ao Santos Artur neste livro e nesse poema”.
Santos Artur foi um
proeminente jornalista do Noticias da Beira que mais tarde passou a designar-se
Diário de Moçambique. Até à data da sua morte desempenhava as funções de
Delegado do Jornal Notícias na Beira.
Olhando para o percurso
de Simeão Cachamba, que já vai longo, fica a ideia de que estamos perante uma estreia
tardia ou nem por isso. Sobre o assunto, ele responde:
“Embora eu já escreva
desde a minha adolescência, de facto, não avancei para a publicação em livro,
talvez porque tendo entrado cedo para o jornalismo não tenha tido muito
entusiasmo para a publicação. Como jornalista, depois de transferir as minhas
coisas para o papel quase que ficava por ai. Depois aconteceu eu ser o primeiro
coordenador da “Diálogo”, a página literária do Diário de Moçambique, então
passei a servir os outros. Mesmo ai publicava os meus textos, mas apenas para
tapar buracos. Na verdade não me posso queixar de falta de oportunidades porque
também fui gestor de empresas jornalísticas (Diário de Moçambique e
Tempográfica) mas sempre evitei pôr as minhas coisas à frente. Também não tinha
assumido ainda que devia publicar. A minha relação com a literatura foi sendo
assim”.
Mas depois veio a
pressão de amigos, colegas e outras pessoas que sabem que Cachamba escreve, daí
ter decidido arrumar alguns trabalhos literários por afinidade temática e a
passá-las para o computador.
E enquanto fazia a
arrumação, eis que se depara com um anúncio do Banco de Moçambique, dando conta
de um concurso literário. O tema era livre mas encorajava assuntos de economia.
Como tinha muita coisa sobre isso, ele decidiu concorrer, tendo saído vencedor
do concurso, que mais tarde deu no presente livro.
Mas agora que tudo
começou, o resto só vai fluir, eis a questão. E a resposta:
“Para começar, como o
concurso do banco impunha algumas limitações há muita coisa que ficou de fora e
que poderei reaproveitar para futuras oportunidades. Mas tenho outro material
literário, contos e projectos de novelas até para que as pessoas não pensem que
a economia é a minha única musa.
Procuramos saber a razão
do livro poético, pois, afinal quem conhece este autor sabe que tem um forte
cunho de prosa.
“Se calhar esteja a
seguir a mesma ordem. Eu comecei por escrever poesia e só depois entrei na
prosa. Por isso, quem sabe, a prosa pode estar a caminho”.
Sobre a saúde da
literatura moçambicana, o escritor fala dos desafios que existem sobretudo na
componente temática e no campo da edição e publicação de livros.
“Penso que há dois
grandes desafios. O primeiro está do lado dos próprios fazedores. Não há muita
diversificação de temas. A nossa sociedade é rica de problemas que não aparecem
reflectidos no espelho da literatura. Podíamos ter romances policiais, inspirados,
por exemplo, naquela coisa do G20 que se falou muito. Há um certo afunilamento
de temas mas se calhar com o tempo isso se ultrapasse. O outro desafio está do
lado da publicação. É constrangedor que o próprio autor tenha que andar à
procura de patrocínios para publicar as suas obras. Acaba fazendo mal uma das
coisas. A edição de livros é uma espécie de fauna acompanhante. O estado tinha
que repensar a maneira de realizar o seu compromisso com a literatura. É
verdade que existe o Fundo Nacional para o Desenvolvimento Cultural (FUNDAC),
mas não sei se o modelo que adopta é o mais adequado. Eu pergunto: qual é o
foco? O autor? A obra? A editora? Não sei se não seria mais eficaz se esses
recursos fossem unificados numa única base. Se calhar a coisa funcionasse de
forma mais fluida”.
O Ministro da Cultura é
poeta. Isso faz alguma diferença? Há dias um grupo de músicos sugeria ao
candidato da Frelimo às eleições de Outubro que o próximo Ministro devia ser um
músico. O que lhe parece, questionamos, ao que nos respondeu: “Penso que um
Ministro tem que ser um bom gestor. O artista é artista. Está para produzir
arte, ele não vai lá cantar, escrever ou esculpir. Pessoalmente, acho que ter
um ministro artista não é garantia de que as coisas vão melhorar. A garantia só
pode vir da mudança de procedimentos. Há um pensador, de que já não me lembro o
nome, que diz que à medida que a pessoa vai subindo vai atingindo o seu nível
de incompetência. Aí vai perder tudo. E não teremos nem bons gestores nem bons
artistas”.
A Beira já deve ter um
prémio cultural
A legislação autárquica
confere responsabilidades aos órgãos municipais para realizarem também acções
que de alguma maneira contribuam para a exaltação dos valores culturais locais.
Nesta esteira, o nosso
poeta manifesta a sua preocupação pelo facto de isso não estar a acontecer,
neste caso numa cidade como a Beira que já produziu grandes nomes da cultura
moçambicana, inclusivamente um prémio Camões, que é o caso de Mia Couto,
escritor natural desta cidade. E outros nomes como Shikane, Carlos Beirão,
David Mazembe por aí fora.
E a comparação é mesmo
inevitável neste particular: A cidade de Maputo tem, por exemplo, um prémio 10
de Novembro. Por que é que a Beira, que é a segunda maior do país, não pode ter
um prémio similar? Eis a questão.
“A Beira, além da
tradição que tem nesse sentido, conta hoje com uma série de instituições
académicas e um tecido empresarial que pode muito bem comparticipar num
projecto desta natureza. Isso serviria também para criar referências para a
juventude que bem precisa disso. Falo de um prémio como falaria da toponímia.
Por que é que não se pode avançar para a atribuição de nomes de figuras da
cultura às ruas ou avenidas?”, indaga.
Thahula Ndindane
Um dos momentos mais
emocionantes da noite de quarta-feira terá ocorrido quando o autor, no uso da
palavra, explicou a origem do pseudónimo Thahula Ndindane.
Contou o poeta que entre
os seus irmãos foi o único a quem foi dado um nome que vinha da sua linhagem
matrilinear. O Simeão.
Vai acontecer que o pequeno
Simeão só chorava, chorava e não parava de chorar.
Como não podia deixar de
ser, era preciso saber o que se passava com o menino até que um nhamussoro
(curandeiro) recomendou: tem que lhe ser dado o nome do seu progenitor, Thahula
Ndindane. Assim aconteceu e assim terão parado os choros.
Já adulto e quando foi
então a vez do concurso literário do banco e era solicitado que os trabalhos
fossem assinados por um pseudónimo, nem mais, Cachamba preferiu resgatar o
Thahula Ndindane.
E agora esta: Vencido o
concurso e chegada a hora do livro, perguntou-se ao autor se não teria chegado
a altura de assiná-lo pelo seu nome verdadeiro, Simeão Cachamba.
A resposta foi
tão-somente a seguinte: “Antes que eu entre outra vez em crise de choros é
melhor mesmo continuar a assinar Thahula Ndindane. (Risos) E aqui está então “A
mão invisível que não é de Adam Smith”, de Thahula Ndindane!
Eliseu Bento
Um comentário:
Thahula se foi, mas deixou-nos com uma grande obra.
Postar um comentário