HOMENAGEM - “A ÚLTIMA LIÇÃO DE ANA LOFORTE": POBREZA: UM CONCEITO
ANTROPOLOGICAMENTE VARIÁVEL
Ana Maria Loforte |
OS estudos sobre género e pobreza foram um
dos momentos mais marcantes do percurso da antropóloga moçambicana Ana Loforte.
Esta declaração foi feita na “Última Lição
– Notas de um percurso” recentemente dada pela antropóloga na Faculdade de
Letras Ciências Sociais (FLCS) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), na
cidade de Maputo.
Foi um estudo efectuado com o objectivo de
permitir que as pessoas descrevessem e analisassem a sua própria situação,
avaliassem os constrangimentos e oportunidades no meio em que vivem.
No estudo valorizou-se a inclusão da
experiência das mulheres para revelar outras dimensões do real das quis
normalmente elas são excluídas.
Procurou-se assim desenvolver uma abordagem
que buscasse entender como os homens e mulheres produzem e se apropriam de
modelos explicativos para as categorias de pobreza em função da sua experiencia
social concreta.
Na investigação havia uma intenção
deliberada de tomar as mulheres não como vítimas passivas, senão como agentes
das suas próprias vidas com capacidades para criar propostas alternativas a fim
de compensar as situações de desvantagens que se encontram.
As respostas em relação ao conceito de
pobreza mostraram-se díspares e apontavam para uma distinção entre a pobreza
que afecta a comunidade onde se inserem e a que afecta a família ou o
indivíduo. Para a primeira, são realçados diversos factores, dos quais,
prioritariamente, a falta de serviços e infra-estruturas básicas, que são
externos e estruturais mas que atingem os indivíduos nela inseridos. Para a
segunda, são salientados factores internos que têm a ver com a percepção de
pobreza de cada família.
Das constatações feitas, há ainda a
registar o facto de “estas mesmas percepções apresentarem muitas facetas e têm
uma dimensão local e regional, o que torna complexa a ideia de que existe uma
concepção colectiva de pobreza na qual nos poderíamos basear”.
No tocante aos indivíduos, a associação ao
facto de ser pobre é visto como resultado de pelo menos, quatro situações:
falta de dinheiro, falta de capital social, saúde precária e fraca oportunidade
na educação, e por fim, a falta de bens de consumo e deficiente acesso aos
recursos
produtivos.
A pesquisa revelou que o conceito de
pobreza é diverso, variando de acordo com os informadores, com a posição
socioeconómica e à influência do sistema social onde estão inseridos. Tudo isso
resultou na impossibilidade de avançar com uma única definição de pobreza.
Todavia, certos traços comuns podem ser identificados, pois a as definições
ligam-se à falta de bens essenciais, de dinheiro, à ausência de bem-estar, à falta
de recursos produtivos, à falta de roupas, mas igualmente a elementos não
tradicionais a exclusão social, o infortúnio, o isolamento e solidão.
Estas constatações levaram a antropóloga e
sua equipa a inferir que o conceito de pobreza está associado não apenas à
posse de bens matérias e rendimentos, mas igualmente, a relações sociais mais
estáveis e a uma maior intervenção do Estado na provisão de condições
económicas e sociais conducentes ao seu
desenvolvimento.
A antropóloga considera que é “necessária
uma abordagem que ao leitor reconhecer problemas comuns nas práticas
quotidianas. Abordagens que contribuam para definir com mais clareza factores
muitas vezes esquecidos, no entanto decisivos para o resultado final das
políticas, dos programas e projectos de desenvolvimento”.
Ana Loforte concluiu afirmando que todos os
trabalhos desvendaram nela os limites entre a investigação e o objecto de
estudo, e o investigador que sistematiza o conhecimento num confronto entre
percepções, vivências, emoção e elaboração. Loforte disse também que muitas das
pesquisas em participou remetiam a situações que implicavam o seu
posicionamento frente ao narrado e não permanecer neutra.
In: Noticias, 17 de Outubro de 2012
ANA LOFORTE E A ANTROPOLOGIA EM MOÇAMBIQUE
A
prestigiada antropóloga Ana Loforte reformou-se há alguns meses, deixando de
leccionar na Universidade Eduardo Mondlane, onde foi docente durante mais de
três décadas. A palavra “reforma” é sempre dolorosa nos meios académicos.
Confesso que nestas situações dos colegas mais-velhos prefiro o habitual termo
“jubilou-se”, em desuso em Moçambique, que indicia um cume de felicidade
intelectual (e até existencial), que acompanha o final das preocupações
administrativas ligadas à vida académica e o continuar da biografia
intelectual, assim aligeirada. Como é agora o caso de Ana Loforte, que segue
como investigadora na organização WLSA e presente, assim o espero, no mundo da
docência.
A
semana passada ocorreu a sua “última lição” na Faculdade de Letras e Ciências
Sociais, um costume para estes momentos biográficos no seio de outros meios
académicos, tornado até verdadeiro “ritual de transição”, mas que percebi ser
em Moçambique algo relativamente excêntrico. Certo que o nome dado ao
quase-rito é até chocante, como se obrigando a um final ao que se espera que
não o seja.
Ocorre-me
abordar aqui esta, afinal, “Mais Uma Lição” de Ana Loforte, um momento que foi
de verdadeiro júbilo, nele se extrovertendo o respeito e o carinho que a
professora e investigadora plantou e colheu no seio da comunidade antropológica
nacional. E não só. Como naquele momento disse Emídio Gune, em nome do
Departamento de Arqueologia e Antropologia da UEM, “queremos que o mundo saiba
que a professora é uma excelente profissional”.
Mas
para além do eco dessa calorosa homenagem este momento torna-se indicado para
reflectir sobre o trajecto da antropologia no Moçambique independente, o qual
pode ser acompanhado pela prática de Ana Loforte (ainda que, como é óbvio, e
não poderia ser de outro modo, nela não se esgote). Nesse sentido permito-me
recomendar aqui algumas leituras. Não só o seu “Género e Poder entre os Tsonga
de Moçambique”, livro que reflecte a sua tese de doutoramento e que se tornou
referência na abordagem às questões sociais no sul de Moçambique e, ainda mais,
nas questões relativas à política de “género” no país. E, neste âmbito, convirá
lembrar o quão central tem sido esta questão no processo nacional.
Mas
convido também para uma leitura de uma sua entrevista (para quem acede à
internet está aqui: http://www.flcs.uem.mz/images/pdf_files/revista_gazeta.pdf)
concedida à “Gazeta de Arqueologia e Antropologia da UEM” em 2008. Nela podemos
acompanhar o processo de “reabilitação” da antropologia no país. Com efeito, e
tal como em tantos outros países africanos, esta ciência sofreu uma
desvalorização após as independências. Pois vista como uma ciência colonial,
como um mero saber instrumental destinado à dominação exploratória estrangeira.
Acusações reducionistas, frutos de uma leitura empobrecida, e que em Moçambique
se foram arrastando, inclusivamente em publicações universitárias, até há
poucos anos. Nessa entrevista Ana Loforte recupera o lento processo de
sedimentação da (necessária) pesquisa antropológica no país. Alimentada pelo
trabalho de alguns especialistas estrangeiros nos anos 1980s, e de alguns,
poucos, moçambicanos. Contexto no qual ela foi pioneira e no qual se foi
tornando incontornável referência. Um processo que permitiu um olhar refrescado
sobre a multiplicidade interna do país, já não vista como defeito a alisar, e a
um aceitar e valorizar das suas múltiplas características, estas já não apenas
a modificar.
Foi
sobre essa necessidade de pesquisa, e sobre seus frutos e possibilidades, que
Loforte falou na passada semana. Transformando o que poderia ter sido apenas
uma festa de despedida – e bem merecida teria sido – numa desassombrada sessão
de trabalho, num anúncio de continuidade de reflexão. Percorrendo algumas
investigações cruciais realizadas ao longo dos anos, Loforte lembou aos mais
novos, e relembrou aos colegas ali presentes, da necessidade de uma pesquisa
qualitativa, atenta às características que efectivamente constituem a sociedade
(as relações de parentesco, as questões e estruturas de poder, as práticas e
hierarquias económicas, as dimensões simbólicas, essas que adquirem
materialidade no dia-a-dia). Sublinhando que são essas dimensões da vida, dos
processos sociais, quantas vezes “disfarçadas” de pequeno quotidiano, que nos
permitem compreender o real. E que são também elas que enfrentam as
(apressadas) tentativas de o transformar, essas pretensas engenharias do
social, sempre desiludidas face a um mundo que não é, afinal, tão simples como
o desejam e pintam.
O
que Loforte referiu, ao longo da carreira, e na passada quarta-feira sumarizou,
foi um projecto de investigação que busca compreender as dinâmicas internas à
sociedade moçambicana. Entendendo que a apreensão destas dinâmicas exige
múltiplas abordagens, várias disciplinas científicas em articulação, e que isso
não se obtém apenas com a medição ou a mera descrição, subordinadas ao feitiço
das estatísticas ou ao encanto da boa retórica, esta agitando os termos da
moda. Que é um trabalho certamente lento e analítico, a exigir conceitos,
intenções explicativas. E que tem que ser calibrado, comedido, apesar das
urgências, desconfiando das urgências. Ou seja, que a compreensão incide sobre
parcelas do real, seus fragmentos. E que esta é a única forma competente de
olhar e de concluir. No fundo, a única forma de pensar, de analisar.
É
nesse caminho, frutuoso mas nada publicitário / propagandístico, que se poderá
refutar a visão da sociedade como mero palco de desenvolvimento, como apenas
objecto de um projecto de desenvolvimento, como se matéria-prima fosse.
Encarando-a, encarando o país, pelo conhecimento da sua complexa riqueza. E às
suas múltiplas parcelas, aos seus múltiplos agentes, com as suas
características, saberes e aspirações localizados. Assim, só assim, elegendo a
sociedade como a verdadeira autora, a verdadeira sujeita de desenvolvimento.
Num
mundo apressado, e como tal distraído, convém muito, é até urgente, ouvir e ler
Ana Loforte.
jpt
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