Reflecte-se,
estes dias, por decorrer em 2012 o 50º aniversário da constituição da Frente de
Libertação de Moçambique, sobre o que foram esses 50 anos. Comecemos pelo
evento seminal de toda essa experiência: a Independência em 1974. Formalmente,
decorrente dos Acordos assinados em Lusaka no dia 7 de Setembro de 1974,
estabeleceu-se uma trégua militar (Moçambique foi o único teatro da chamada Guerra
Colonial portuguesa onde, após o golpe militar em Portugal ocorrido no dia 25
de Abril de 1974, a guerra não só não parou como de facto recrudesceu, por
opção da Frelimo (e alguma desistência por parte da força militar portuguesa),
cuja forma de abordagem na altura permaneceu essencialmente militar, e
implementou-se algo a que se chamou “Periodo de Transição” (ver o folheto em
baixo).
Mas na
realidade, não houve qualquer transição.
Ou melhor, no
dia 20 de Setembro de 1974, após um breve, vigoroso protesto de principalmente
portugueses e moçambicanos brancos na zona de Lourenço Marques, ainda hoje
conotado como uma tentativa frustrada de UDI (o que considero totalmente
descabido) de que resultaram graves distúrbios até hoje não inteiramente
esclarecidos, e com o apoio activo das forças militares portuguesas, tomou
posse um governo inteiramente controlado pela Frelimo, ainda que se obedecesse
à formalidade de o mesmo ser “liderado” por um alto-comissário português, a
quase patética figura do Almirante Vítor Crespo, um dos Libertadores de Portugal, e de uns portugueses
totalmente colaborantes (como não podia deixar de ser). Na realidade, os
chamados Acordos de Lusaka (celebrados desde então com um feriado nacional em
Moçambique) não foram acordos. Foram uma rendição militar portuguesa, seguida
da entrega imediata do poder de Estado, por Portugal, à liderança da Frelimo. Tal
como o governo colonial, o Governo de Transição, cujo primeiro-ministro era
Joaquim Chissano, administrou o território em estrita coordenação com a Frelimo
em Dar es Salaam, por simples decreto, ou seja, em ditadura. A desconfiança e
os receios da comunidade branca quanto à ideologia, às intenções e capacidades
de governação dos até então guerrilheiros (aparte o detalhe de se passar numa
semana de uma cultura de demonização dos até então “turras comunistas” para os
elogios mais rasgados à liderança do movimento nas páginas do Notícias e da revista Tempo), aclamando os
“libertadores” e denegrindo tudo o que tivesse sido feito no passado,
rapidamente teve efeitos.
Governo de transicao da Frelimo (Joaquim Chissano e Victor Crespos) |
Governo de transição de Moçambique, 1974 |
Pois é.
A reacção do
governo de Transição e da Frelimo foi categórica e pode-se resumir ao seguinte:
por direito, quem manda em Moçambique é o Comité Central da Frelimo e mais
ninguém, e quem não estava com a Frelimo estava contra a Frelimo. É neste clima
de exaltação nacional e também tragédia grega, que se comemora a data da
Independência formal, no dia 25 de Junho de 1975. Na prática, Moçambique passou
de um regime de partido único de índole colonial para outro regime de partido
único, de índole nacionalista e comunista. O povo moçambicano, então quase
totalmente rural (à excepção dos arredores de Lourenço Marques, Beira e
Nampula), pobre e analfabeto, absolutamente encantado com a novidade de ter dos
seus a governar e electrizado por um futuro róseo de independência e ainda pelo
enorme carisma de Samora Machel, cujo deliberado culto de personalidade se
iniciou logo início no chamada “fase” de Transição, não reparou, nem tinha a
mínima noção dos planos da Frelimo de, logo em seguida, envolver o país em
guerras com a África do Sul e com a Rodésia, os últimos redutos de governação
por uma minoria branca na África Austral.
O significado –
e o custo absolutamente formidável em termos humanos e materiais – do lema “a
luta continua”, depressa se começou a entender após a realização, nove meses
mais tarde, da cerimónia formal da proclamação da Independência, por Samora
Machel, recentemente chegado à cidade após uma ritual “marcha” de Norte para
Sul, envergando a farda militar, num estádio de futebol em Lourenço Marques.
Mas não havia quanto a isso discordância, nem era permitido haver. E, afinal, a
razão e as circunstâncias da História há algum tempo pareciam que estavam do
lado dos novos governantes – os “Libertadores”.
A paz, ou
melhor, a ausência de guerra, essa, teria que esperar quase vinte anos,
Entretanto, Moçambique suportou directamente o preço de colocar o Senhor Robert
Mugabe no poder no Zimbabué e de pressionar, sem grande sucesso, o Partido
Nacionalista em Pretória a negociar uma transição para a democracia na África
do Sul. Em Pretória, os boers limitaram-se a demolir tudo em seu redor, jogando
pelo tempo e pelo desmoronamento dos países da Cortina de Ferro, o que começou
a acontecer a partir do início do segundo mandato de Ronald Reagan em 1985, ano
em que Samora, sentindo a mudança de paradigma para vir, o visitou em
Washington. Após uma estrondosa derrota em Cuito Cuanavale em Angola em 1988,
os boers, numa posição de força, trouxeram Frederick de Klerk para a chefia do
governo e negociaram detalhadamente o seu futuro. No seu III Congresso,
realizado entre os dias 3 e 7 de Fevereiro de 1977 no antigo Clube Militar de
Lourenço Marques, corporizou-se a terceira de seis “Frelimos”, quando se
instituiu um regime marxista-leninista de índole populista, em que a
Frente passou a ser o único partido autorizado e a sua palavra a única que
contava. E a cúpula da Frelimo decidiu, à falta de melhor, “refundar”
Moçambique e criar um novo “Homem Moçambicano”.
A terceira de seis Frelimos?
A meu ver, sim.
Vejamos em
resumo:
Frelimo
I
A primeira
Frelimo durou entre 1962 e 1969 e resultou de uma coligação de nacionalistas de
várias origens, eventualmente liderados pelo Dr. Eduardo Mondlane, secundado
pelo Reverendo Uria Simango. O ponto de viragem foi o assassinato do Dr.
Eduardo Mondlane em 3 de Fevereiro de 1969 e o banimento de Uria.
Eduardo Mondlane e Urias Simango (Presidente e vice presidente da Frelimo) |
Frelimo
II
A segunda
Frelimo existiu entre 1969 e 1974. Era militarista, hierárquica e marxizante e
liderada por Samora e Marcelino dos Santos. Era basicamente uma máquina de
guerra, financiada pela China, União Soviética e demais países da Cortina
Ferro, com algum apoio não militar sueco. O ponto de viragem foi o golpe de
Estado em Portugal e as subsequentes negociações, realizadas fora de
Moçambique, na cidade zambiana de Lusaka, Lourenço Marques então tido como
“terreno hostil”.
Acordos de Lusaka, 7 de Setembro de 1974 |
Frelimo
III
A terceira fase
decorreu entre 1974 e 1977, em que o movimento de guerrilheiros toma conta do
governo do país e principalmente das cidades, e que termina com o III Congresso
da Frelimo, a partir do qual o partido e o próprio Estado se confundem.
Hastear da bandeira de Moçambique no Estadio da Machava em 25 de Junho de 1975 |
Frelimo
IV
A quarta fase
ocorreu entre 1977 e 1986, caracterizada por um crescendo da guerra e da
ditadura, terminando com a morte por acidente de Samora Machel em 19 de Outubro
de 1986, ao regressar de uma reunião na Zâmbia, tudo indicando que, se não houvesse
ocorrido, grandes mudanças estariam para vir. No entretanto, viveram-se dias
terríveis de medo, morte, privação, e um experimento “socialista”, largamente
falhado. Uma terrível guerra civil estendeu-se ao país, mantendo a Frelimo,
significativamente, o argumento dialético de que a sua oposição, a Renamo, era
apenas um bando de “bandidos armados”. Em 1984, foi a vez da Frelimo se render
a Pretória, sob a ameaça da sua destruição.
Acordos de Incomati, 1984 |
Frelimo
V
A quinta fase,
que decorreu entre 1986 e 1992, na realidade teve início cerca de dois anos
antes do desaparecimento físico de Samora, culminando com os Acordos de Paz
assinados em Roma no dia 4 de Outubro de 1992 e as consequentes alterações no
texto constitucional, de que se destaca a admissão formal do multipartidarismo.
Nesta fase, Moçambique é o país mais pobre do mundo, dilacerado e com mais de
um milhão de mortos e centenas de milhares de refugiados. A Frelimo aceita
fazer o jogo da “democracia” e praticar uma estranha forma de capitalismo, mas,
sob a tutela de Joaquim Chissano, apoiado por uma troika de Libertadores, mantém
firmemente o poder. Para o choque de pessoas como o ideólogo Jorge Rebelo e o
jornalista Carlos Cardoso, os Libertadores, quase todos generais da
nomeclatura, tornaram-se “empresários de sucesso”. Desde então
até esta data, o país vive principalmente de empréstimos, de doações, de
perdões de dívida, de programas estruturados de assistência, de negociatas, com
fortes indícios de corrupção e a mão invisível do FMI e do G19.
Frelimo
VI
A sexta fase
decorre entre 1992 e a actualidade. Com a excepção das municipalidades da Beira
e de Quelimane, a hegemonia da máquina partidária da Frelimo mantém-se e é
massiva, bem como a liderança, dentro dela, dos agora velhos Libertadores, que reclamam para o partido a
totalidade da herança simbólica das Frelimos anteriores, adquirindo para si o
património físico desses símbolos, tais como o Museu da Revolução e as
instalações da primeira e segunda Frelimo na Tanzania (leia-se a interessante
entrevista ao Dr. Egídio Vaz, um historiador moçambicano, na edição de hoje, 8
de Fevereiro de 2012, no semanário Canal
de Moçambique, publicada em Maputo, páginas 16-20). Acentuou-se a economia dos Libertadores enquanto políticos-empresários de
sucesso.
Terminará quando
um moçambicano não “libertador” assumir a presidência ou quando houver alguma
forma de alternância à sua hegemonia, provavelmente dentro da própria Frelimo.
Nesse dia, começará a sétima
Frelimo. Que ainda ninguém sabe o que vai ser, nem quando.
Um comentário:
goitei muito da historia contnue assim....
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